Ilustração por Hallina Beltrão

Dom Quixote, ao menos o meu Dom Quixote, é uma longa narrativa sobre um caça-fantasma incansável: homem acredita que o mundo é imagem & semelhança das suas fantasias e teima que, se existe alguma coisa pulsando lá fora, ela não é muito diferente daquilo que se passa em sua cabeça. O amor perfeito, o moinho travestido de monstro, os livros de sempre que pedem para ser relidos, a sociedade que teima em ser binária, são algumas das assombrações que fazem o personagem sair estrada afora com uma fé amoladíssima e sempre em posição de combate. É possível ir além: Quixote é, ao mesmo tempo, a assombração e o assombrado, a cura para a doença já sanada. Quantas vezes não vivemos dessa mesma forma quixotesca, achando que olhar para dentro é olhar para os lados? Esse é só um dos graus, a camada mais visível, da intensa humanidade que forra o clássico de Cervantes.

 

Apesar do meu afeto de leitor pelo Quixote caçador e fantasma de si mesmo, encontrei outras possibilidades de leitura quando passei a estudar, de forma sistemática, a literatura hispano-americana produzida a partir dos anos 1990 – época em que boa parte da América Latina já estava liberta dos fantasmas ditatoriais (corrijo em tempo: liberta dos ditadores; fantasmas são mais insistentes que o pior dos regimes opressores) e os trâmites do boom davam sinais de estarem caducando. A liberdade é uma arma quente e, apesar das mudanças políticas e artísticas, as grandes obras passaram a retratar um mal-estar, um incômodo difuso e uma falta de clareza em relação à identidade do inimigo. É claro que a arte sempre é feita da certeza de que há um monstro lá fora. Mas essa certeza deixou de ser o elemento central. E, se mesmo estando lá fora, não encontrarmos o monstro? Ou pior: se apenas nós enxergamos o monstro, como avisar para quem está ao nosso redor de que há um perigo iminente? Questões que voltaram a nos aproximar do Quixote, revigorado agora por um retorno curioso da figura do detetive.

 

Ao propormos uma aproximação do personagem de Cervantes com a figura do detetive, é bom lembrarmos aqui a definição clássica da figura detetivesca, como primeiro pensada por Edgar Allan Poe. O romance policial é fruto da modernidade, de quando as grandes cidades fizeram o homem perder sua individualidade. Assim, procurar marcas permanece um exercício tão importante (ou melhor: volta a ser um exercício fundamental): é necessário encontrar-se, encontrar o outro, descobrir quem é esse outro ou mesmo questionar os porquês desse outro. “Daí nasce o romance policial que está à caça dessas marcas”, apontou Walter Benjamin num clássico ensaio sobre o autor de Os crimes da Rua Morgue. O detetive é o símbolo maior da grande cidade sem individualidade, mas cheia de marcas que talvez não levem a lugar algum. E mais: o detetive é um estranho na sociedade tanto quanto seus inimigos; um homem que reconhece o mundo a partir de suas próprias regras, sem família e com vínculos obtusos.

 

Um dos livros recentes que mais me remeteram à indefinição como sintoma literário, em que o detetive, esse proscrito, se envolve com um crime cujo desfecho nem é o mais importante, foi Alvo noturno, grande romance policialesco de Ricardo Piglia. O argentino nos injeta num universo de sombras já num primeiro parágrafo de proposições sinuosas: “Tony Durán era um aventureiro e um jogador profissional e viu a oportunidade de estourar a banca quando topou com as irmãs Belladona. Foi um ménage à troisque escandalizou o povoado e ocupou a atenção geral durante meses. Ele sempre aparecia com uma delas no restaurante do Hotel Plaza mas ninguém conseguia saber qual era a que estava com ele porque as gêmeas eram tão iguais que até a letra delas era igual”.

 

Talvez o autor contemporâneo que melhor soube resgatar a problemática quixotesca foi o chileno Roberto Bolaño (1950-2003), cuja obra foi marcada pela diáspora de “detetives” (no caso de Bolaño, as aspas são necessárias) em busca de escritores desaparecidos, que deixaram obras, muitas vezes, apócrifas ou invisíveis. E mais: seus livros, como 2666, Detetives selvagense Estrela distante, tiram o foco acusador de assassinos ou de ditadores. O escritor é sempre o culpado. E o detetive, perceba a ironia, é a grande vítima – é o Quixote da vez, o homem cuja imaginação foi “sequestrada” pela leitura (Seria essa a maldição que sempre se volta contra aqueles que atribuem um sentido maior, um sentido sagrado à ficção?).

 

Com sua imaginação sequestrada, Quixote acreditou que o mundo era o conteúdo de um livro. Mas o nobre cavaleiro mal suspeitava que a Literatura é também um ramo peculiaríssimo do saber, que pode muito bem estar contra o saber comum. A Literatura pode começar onde as noções de “saber” e “oficial”terminam, pode ir em direção oposta, pode desvirtuar certezas.

 

Sem a consciência de tamanho “perigo”, tanta leitura acabou não fazendo mesmo muito bem ao nobre rural de Cervantes. “Guiado” pelos livros, perdeu o sentido de realidade e decidiu tornar-se um cavaleiro andante. Dom Quixoteé a descrição da vida da potência declinante que era a Espanha, sem mais chance de fazer frente ao avanço econômico da Inglaterra. Enquanto o novo poder mundial estaria em breve nas mãos da burguesia comercial inglesa, a nobreza feudal espanhola encarava a decadência frente aos novos ideais desse mundo.

 

Milan Kundera escreveu que Dom Quixote é a descrição daquele momento em que Deus deixa lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, que separava o bem do mal e dava sentido a cada coisa: “Dom Quixote saiu de casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo”. E o mundo, na ausência do Juiz Supremo, surgiu subitamente numa temível ambiguidade; a única verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, nasceram os tempos modernos e, com ele, o romance, sua imagem e modelo.

 

Com o golpe chileno de 1973, Bolaño parece querer dizer que um novo mundo também se iniciou. Assim como o Quixote, Bolaño saiu do Chile e não conseguiu mais reconhecer o mundo sem o seu “trauma de formação”, sem o seu recalque que reapareceu sob uma nova máscara, com menor ou maior intensidade, a cada novo livro. Sua descrição da tomada de La Moneda, no romance Noturno do Chile, resume a tragédia histórica em pouquíssimas linhas e a reconta com elipses e um tom brusco, que arriscamos a comparar com as primeiras cenas do Gênesisbíblico, por sua contenção em narrar o começo de uma nova era: “(…) veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamento militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou”.

 

O Quixote de Cervantes acredita que viaja para restabelecer a unidade do homem, mas na realidade viaja para encontrar a si próprio em uma região onde tudo se transformou em “demolição”, começando pelo romance em que ele próprio é o protagonista, o paradigma do romance por excelência, que se ergue a partir de um total espelhamento com o passado que precisa negar. Já Bolaño viaja para esquecer, mas não consegue parar de lembrar. Por isso ele escreve, por isso o Quixote lê sem parar, ou como alertou Roland Barthes: “Escrever para lembrar? Não para lembrar, mas para combater o dilaceramento do esquecimento na medida em que ele se anuncia, absoluto. Em breve o ‘nem sombra de’, em nenhum lugar, em ninguém”.

 

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