Ilustração por Hallina Beltrão

 

Acaba de ser lançada no Brasil uma nova tradução do mais célebre romance escrito em língua espanhola, com tradução do escritor Ernani Ssó, pela Companhia das Letras no seu selo Penquin. Dom Quixote passa a contar com mais uma edição, que provavelmente haverá de multiplicar a circulação e as interpretações de uma obra que já parece ter sido lida em todas as partes e de todas as formas. Se um clássico, categoria arbitrária e nem sempre consensual, já foi definido como uma obra que é lida com prévio fervor e com misteriosa lealdade por diversas gerações, dificilmente poderá ser questionado o pertencimento do romance de Cervantes a essa consagrada esfera formada por textos que, por algum ou por vários motivos, são considerados canônicos, exemplares ou “universais”. Se no caso do Quixote há sem dúvida, como em clássicos de outras línguas, um trabalho consciente e secular que tende a transformar um livro em manifestação suprema de uma nação e de um idioma, é também verdade que o romance de Cervantes foi ganhando seu estatuto de clássico por causa de um compartilhado e devoto fascínio que soube provocar ao longo do tempo.

 

Diversos e incontáveis leitores atravessaram suas páginas com fidelidade e com encantamento, e encontraram nas extravagantes peripécias do fidalgo manchego toda classe de inspiração. E o mais interessante é que essa fidelidade e esse encantamento não surgiram por causa de alguma posição privilegiada do autor dentro dos círculos literários da época nem por algum trabalho de resgate operado pela crítica, que poderiam ter outorgado um impulso maior à difusão da obra. Dom Quixoteparece ter provocado esses efeitos a partir do momento mesmo da sua publicação, e essa efusiva resposta foi evidente tanto na Espanha quanto nas colônias americanas. Como se sabe, a circulação de livros nas colônias era bastante restrita, especialmente quando se tratava de obras que não fossem edificantes, filosóficas ou teológicas. Romances e textos de invenção eram vistos como eventualmente nocivos para a conformação do consenso nas sociedades coloniais, pois podiam oferecer maus exemplos e interferir nas políticas de evangelização. Já no Livro primeiro das provisões e ordenançasreferentes ao bom governo das Índias, de 1596, ficava instituída uma interdição que poderia ter sido dirigida ao romance que Cervantes iria publicar quase uma década depois. O Livroindica que:

 

de llevarse a esas partes libros de romance de materias profanas y fábulas, así como los libros de Amadís y otros desta calidad, de mentirosas historias, se siguen muchos inconvenientes; porque los indios que supiesen leer, dándose a ellos, dexarán los libros de sancta y buena doctrina y, leyendo los de mentirosas historias, deprenderán en ellos malas costumbres y vicios.”

 

Mesmo pertencendo à categoria das “mentirosas histórias” que promoviam vícios e maus hábitos (ou quiçá justamente por isso), a obra de Cervantes foi lida com fruição nos círculos letrados coloniais; no mesmo 1605, o ano da primeira edição, havia na América mais de 1.500 exemplares do romance. Essa repercussão imediata, longe de ser um fenômeno limitado às preferências dos leitores barrocos, já assinalava uma constante, que tenderia a ser confirmada e ampliada durante os séculos seguintes.

 

No mundo atlântico, como em outras partes do planeta, o Quixote manteve sua inconteste vigência e foi, em diversas circunstâncias, sempre capaz de interpelar os tempos presentes de cada momento histórico particular. As memoráveis figuras dos errantes personagens, a extravagante sucessão de aventuras, as satíricas postulações sobre livros e projetos impossíveis, a crítica social foram alguns dos aspectos que fizeram que Dom Quixoteacabasse sendo muito mais do que um romance. Alonso Quijano (o leitor desvairado que é incapaz de diferenciar entre as palavras e as coisas, o leitor para quem o Real é a Literatura) evoca com suas andanças os modos em que opera a imaginação, os mecanismos que permitem que a fantasia transite pelo mundo e amplie sem pausa suas fronteiras.

 

Esse elogio da ficção e esse questionamento permanente acerca do estatuto do real influenciaram em grande medida as práticas da arte de narrar e favoreceram a consolidação do gênero romanesco. Não surpreende então que a crítica tenha se ocupado tão profusamente da obra até os dias atuais. As transformações da mímese nas maneiras de representar a vida quotidiana, as relações entre os elementos ficcionais e biográficos que se espelham e se reescrevem no romance, as formas da paródia e os elos intertextuais que vinculam a obra com as tramas da tradição literária, as considerações teóricas propiciadas pela estrutura do texto, as variantes estilísticas e os jogos de vozes narrativas, as representações dos conflitos e classes sociais da Espanha da época foram alguns dos tópicos abordados, a partir dos mais diversos enfoques críticos, por autores da importância de Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset, Menéndez Pidal, Erich Auerbach, Leo Spitzer ou Francisco Rico, entre tantos outros.

 

Por outro lado, se observarmos a evolução do romance moderno, é evidente que os rastros do Quixote estão por toda parte na Literatura ocidental. De Sterne e Voltaire a Flaubert e Faulkner, as técnicas e os recursos cervantinos vão reaparecendo constantemente, diversificando as estratégias narrativas e as possibilidades de contar uma história. Como não podia ser de outra forma, as luzes e sombras do Quixotejamais deixaram de se projetar sobre a ficção espanhola, e marcaram também uma notável e permanente presença nas letras latino-americanas.

 

Através da influência direta, da citação ou da reinvenção, essas marcas retornam por exemplo na alegórica Quijotania de Juan Bautista Alberdi e nas Memórias póstumas de Brás Cubasde Machado de Assis. Nas interpelações ao leitor e nas notas de rodapé de Macedonio Fernández. Nos reinos encantados e nas personagens farsescas de Ariano Suassuna. Nas funambulescas aventuras do professor Landormy, de Arturo Cancela. Nesse mundo real (que é apenas simulacro e mera permanência ilusória) criado por Bioy Casares na ilha de A invenção de Morel. Nas maquinarias barrocas de Lezama Lima e nas experimentações de Carlos Fuentes. E em Borges, evidentemente.

 

Borges soube muito bem apreciar as magias parciais do romance, e sonhou, como sabemos, com um escritor simbolista francês que pretendia escrever o Quixote, o mesmo de Cervantes, não para criar uma cópia, mas para produzir algo infinitamente mais complexo e mais ambíguo. Esse escritor se chamava Pierre Menard, e era antes de tudo um leitor. Um leitor que lê de outro modo, e cujas operações de leitura acabam desembocando necessariamente na escrita. Pierre Menard é o leitor de todos os leitores do Quixote; é o precursor de um Roberto Bolaño, que leu Borges do mesmo modo em que Borges leu Cervantes. Bolaño é o Pierre Menard que leu Cervantes para escrever tudo outra vez. Ou para escrever um novo, gigantesco Quixote, que agora conhecemos com outro título: Os detetives selvagens

 

 

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