Ilustração por Hallina Beltrão

 

Se não chega a sera mudança de Dom João VI pro Rio trazendo o que viria a ser o acervo da Biblioteca Nacional, a coleção Novíssimos da Leya é um gesto simbólico, que se soma a movimentos como a tentativa (frustrada) da editora Babel de entrar no Brasil e a chegada, há um ano, da editora independente Tinta-da-china.

 

Claro que o significado mais fácil e simples tem a boa e velha chave da economia, do business: Portugal em crise, população menor do que a da cidade de São Paulo e, nos lados de lá, só se fala do crescimento “balangandante” do Brasil: ora, mais do que simbólico, investir por cá, parece óbvio.

 

Mas dá pra ir além disso, ultrapassar questões pragmáticas da vida. Penso que talvez estejamos encarando possibilidades de um passo adiante em nossa vida de (potenciais) leitores de portugueses. Digamos assim: desde o Nobel do Saramago, a impressão é de que há uma aceitação bastante simpática por parte dos nossos (poucos) leitores em relação ao que se escreve na terra de Camões. Por exemplo: não que a Flip seja o termômetro literário do Brasil. Mas não dá pra negar que é irradiadora de escritores e livros, coloca-os, por momentos, nos jornais, na TV, até com mais minutos e linhas do que o Big Brother da vez. E, desde a segunda edição da Flip, em 2004, com a presença de Lídia Jorge e Miguel Souza Tavares, até hoje, uma nau tripulada por Gonçalo M. Tavares, José Luis Peixoto (duas vezes), Pedro Rosa Mendes, Mário de Carvalho, Inês Pedrosa, Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe e Dulce Maria Cardoso passou por Parati. Talvez só EUA e Inglaterra (além do Brasil, claro) tenham enviado mais nomes. Alguns dirão que é resultado de política cultural. Lógico que passa por aí (procure nas contracapas dos seus livros os selos da DGLB — Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas — ou do Instituto Camões, financiadores de muita publicação no Brasil e evidentes inspiradores das ações do nosso Ministério da Cultura). Mas, política cultural ou não, não se nega o interesse e o reconhecimento que os autores acabam recebendo, nem a qualidade e a consistência do que aportou até hoje. O que vem nos chegando de contemporâneo português — em geral autores estreados nas bordas do Século 21 — tem caído no gosto de crítica e público e até de prêmios como Portugal Telecom e Zaffari Bourbon, que já agraciaram esse povo.

 

Falando em prêmios e honrarias, retomo o que propus umas quantas linhas atrás: o tal passo adiante na condição de leitores de autores lusos. Vamos lá: se a literatura multifacetada, especulativa e inclassificável do Gonçalo M. Tavares nada tem a ver com a prosa lírica do José Luis Peixoto; ou se O retorno de Dulce Maria Cardoso e suas questões em torno do 25 de abril passa longe do Portugal arcaico e cruel de O remorso de Baltazar Serapião de Valter Hugo Mãe; quer dizer, se não há marca literária evidente que relacione os autores que já tivemos chance de ler, as circunstâncias em que aqui chegaram se assemelham: a maioria dos portugueses que têm ganhado espaço em livrarias e Flips-Flops-Flups trouxeram Prêmios Saramago, Livro do Ano, Pen Clubs, Prêmios Europeus, às vezes traduções, além de um bom número de vendas em Portugal. Algo que preenche orelhas de livros e apresentações em mesas literárias.

 

De fato, já lemos nomes que muitos portugueses ainda estão lendo lá agora. E creio que avançamos um tanto mais nessa ponte.

 

Pode ser que o passo inicial tenha sido da Tinta-da-china, com E a noite roda, primeiro romance da jornalista e correspondente internacional do jornal Público no Rio de Janeiro, Alexandra Lucas Coelho. Embora já reconhecida por seus livros de viagem, Alexandra ainda não tinha se metido com ficção. E seu romance chegou ao Brasil em agosto de 2012: apenas cinco meses depois de sair em Portugal.

 

Não é um movimento planejado, mas, quase junto com a aposta da Tinta-da-china (lançar aqui alguém que recém estreava no próprio país), está a coleção Novíssimos da Leya que faz jus ao batismo, motiva esse texto e, confesso, ao ser divulgada no fim do ano passado, me surpreendeu em algumas das suas escolhas. Explico: entre os dez nomes anunciados (cinco foram lançados agora, outros cinco serão ainda em 2013), constam autores que recém estrearam. Arrisco dizer: alguns livros com os quais os portugueses ainda se familiarizam, em ligação quase direta, chegam por aqui. Eis a surpresa.

 

Belíssima (em muitos sentidos) ilustração disso é o físico, professor, agora escritor com carreira internacional e recentemente vencedor do Prémio Leya 2012, Nuno Camarneiro e seu No meu peito não cabem pássaros. O primeiro — e ainda único livro do autor — saiu em 2011 e, apesar da qualidade e de elogios recebidos, não estava nas vitrines das livrarias enquanto morei em Lisboa, de setembro de 2011 a outubro de 2012. Até o fim do ano passado, segundo sua editora Maria do Rosário Pedreira, “vendeu moderadamente” e, me parece, estava ainda na 1ª edição (pra ter ideia, O retorno, de Dulce Maria Cardoso, entrou em 2ª edição no mês de lançamento; Hugo Mãe esgotou algumas edições de O filho de mil homens enquanto vivi por lá). A Leya, fazendo valer o batismo da coleção, traz ao Brasil um livro ainda sem vendas expressivas, críticas ou prêmios (basta ver a bio do Nuno na orelha do livro: fala muito mais da sua formação do que da trajetória literária). Que bom que a Leya fez isso.

 

Se esperássemos a praxe da consolidação de Camarneiro em Portugal, ou um grande prêmio por lá, talvez demorássemos um tanto mais a ter contato com uma prosa que é explosão de linguagem, em que facilmente se pinçam trechos como “A fome mata-se, muitas vezes, com números de circo, ser equilibrista ou palhaço é só uma questão de oportunidade” ou “As palavras saem-lhe umas atrás das outras, postas em fila já há muito tempo”. Isso numa proposta bastante audaciosa pra uma estreia: o estudo de três personagens metaliterários: Fernando (Pessoa), Jorge (Luis Borges) e Karl (Rossmann, personagem de Amerika, do Kafka), linhas de vidas ficcionais que correm paralelas, cruzando-se só no infinito das personalidades de um, da circularidade e da biblioteca de outro, e do sem fim do terceiro, mas com ecos umas nas outras. Nuno faz isso segurando a linguagem que é sua, mas que (em especial nos capítulos dedicados a Borges e Pessoa) concede ou se funde com os personagens, provocando grande efeito.

 

Tem outro estreante na coleção. Porém, este com um já surpreendente sucesso e números de fazer autor veterano (ainda mais se brasileiro) se morder de inveja: João Ricardo Pedro, o sujeito que levou o Prêmio Leya 2011 (portanto, passará o bastão a Camarneiro). Com O teu rosto será o último, faturou 100 mil euros e se converteu num sucesso de vendas que, segundo pesquisas informais com amigos “portugas”, não é regra com galardoados por esse prêmio. Falo de, em menos de um ano (o livro saiu em março de 2012), mais de 35 mil livros vendidos, contratos de tradução e direitos vendidos pro cinema. Isso na estreia de um autor que não fazia parte da vida literária portuguesa e só tomou impulso pra escrever o romance após sua demissão em 2009, quando a tal crise já mostrava os dentes.

 

O teu rosto será o último, em outro registro, também traz, especialmente no seu primeiro terço, uma força narrativa que faz parar, olhar e checar: mas, vem cá, é mesmo o primeiro livro do rapaz? É. E, creio, isso vem à tona em alguns momentos que soam um tanto maneiristas, aquela espécie de mal de todo escritor em começo de estrada: mostrar todas as ferramentas duma vez só. Ainda assim, o painel de quase um século de Portugal, feito com cenas fragmentadas que o leitor deve unir ao ler é, sim, estreia daquelas que profissionais de orelhas de livros diriam que “demonstra a maturidade e o domínio narrativo de João Ricardo Pedro”.

 

Claro, Novíssimos não se trata só de estreias — talvez aí o nome fosse Estreantes. Mas Sandro William Junqueira, com Um piano para cavalos altos, não está longe disso. Sandro tem um primeiro romance (O caderno do algoz), e sua segunda obra, que a Leya trouxe em novembro pro Brasil, reparem, saiu em Portugal entre fevereiro e março de 2012. Dá pra dizer que a editora realiza uma aposta — publicar quase sempre é. Sem consagrações pra gritar numa cinta na capa pra ver se chama nossa atenção, o livro de William Junqueira chegou aqui mais rápido que muito best-seller.

 

Ilustração por Hallina Beltrão

Sobre o livro em si, pode ser que eu esteja errado, mas o fato de a apresentação dele em Lisboa ter sido feita por Gonçalo M. Tavares talvez reforce a impressão que Um piano para cavalos altos me deixou: a fortíssima presença de Gonçalo M. Tavares. Com sua cidade sem nome (de localização jamais conhecida) cercada pelo Muro que a separa da floresta, com o Primeiro Ministro Calvo que busca controlar e classificar tudo e todos, e o conflito entre o Mensageiro e o Diretor, o romance pode ser metáfora do confronto razão/instinto, do Salazarismo, da Rodésia natal de Sandro, dos nossos tempos, de outros. É texto rico, sim (inclusive na linguagem), de amplas leituras e belas passagens. Mas não escapa da comparação com a tetralogia O reino de Gonçalo M. Tavares, suas investigações sobre medo, violência, loucura, razão (se bem que Sandro investe com mais agudeza em trechos de humor negro e crueldade explícita). E os capítulos Breve súmula dos mais importantes ditados do Ministro Calvo (poderiam ser um livro a parte), em que as ideias do personagem são expostas, lembram os disparates do Chefe de O senhor Kraus, da coleção O bairro.

 

Na fronteira entre novíssimo e não novíssimo, está a dramaturga, performer e, claro, escritora Patrícia Portela. Explico a fronteira: Patrícia já é conhecida em terras portuguesas. Tida como uma das autoras mais inquietas de lá, tem cinco livros (quase no mesmo momento em que a coleção chegava aqui, saía em Portugal seu quinto título, O banquete). No entanto, pra brasileiros e brasileiras, Patrícia é mais do que novíssima, é desconhecidíssima.

 

A escolha de Para cima e não para o norte pra apresentá-la ao Brasil é ousado acerto. Obra resultante de um espetáculo escrito pela autora, traz intensas interferências gráficas e é de difícil resumo. Uma tentativa, dizer que trata de um homem plano que vive entre páginas de livros e descobre a terceira dimensão, não dá conta da ironia, por vezes do deboche, e da riqueza de leituras que Para cima e não para o norte produz. Faz pensar em nosso dia a dia como homens planos, ansiosos por atenção e olhares pra nos sentirmos com relevo. Sem falar nas homenagens a Flatland, de Edwin Abott, a Ovídio, a Hermes Trismegisto e tantas referências que Patrícia oferece.

 

Destoa do time o quinto nome selecionado. Atenção: destoa porque Patrícia Reis, apesar de ter lançado seu primeiro romance em 2004, não é descoberta aqui no país tropical. Amor de segunda mão e Morder-te o coração (segundo e terceiro livros) foram publicados pela Língua Geral em 2006 e 2007. E Morder-te o coração até ficou entre os 50 finalistas do Portugal Telecom. Tá, ela não esteve na Flip, nem seus terceiro e quarto livros saíram por aqui, porém, em comparação com a xará Portela, não chega a ser novidade.

 

Mas novidade é a incursão pela distopia com momentos de metaficção: Por este mundo acima passa-se numa Lisboa pós-hecatombe, algo entre A estrada e Ensaio sobre a cegueira. E nos mostra um, até então, editor de sucesso agora em um mundo depois do fim, onde o que importa é sobreviver. Isso traz algumas ideias sobre, por exemplo, a urgência da Literatura, provoca pulgas atrás da orelha. Mas fica a sensação de que Patrícia apressou o livro. Embora o personagem diga que grandes obras cabem em 90 páginas, no caso de Por este mundo acima, o desenvolvimento, especialmente do último capítulo, que mais sugere um grande epílogo, parece dizer que grandes livros também podem ter mais do que as 176 páginas do romance.

 

Semanticamente novíssimos ou não, a coleção e outros movimentos da Literatura portuguesa em nossa direção dão o que pensar. Primeiro: essa oportunidade que parece se abrir: acompanhar em tempo, quase real, muito do que pinta dos lados de lá do Atlântico. A Leya promete pra ainda este ano mais cinco autores, em combinação semelhante à da leva inicial: do já lançado no Brasil João Tordo, passando por Rui Cardoso Martins, Andre Gago, David Machado, até o recém estreado em Portugal (setembro de 2012) Bruno Margo.

 

Pra além disso, recordo uma sensação que os títulos da Leya, da Tinta-da-china, ou de editoras nacionais que lançam portugueses, reforçam: parece que eles não levam jeito pra fazer best-seller. E estranhamente isso dá certo. Lembro de ter lido uma matéria sobre a inauguração da livraria lisboeta Ler Devagar e de separar um trecho que achei engraçado (e um tanto verdadeiro): “Embora não sejam uma prioridade, a Ler Devagar de Alcântara ‘vai ter alguns best-sellers, como Saramago ou Lobo Antunes. Mas o que queremos mesmo ter é os catálogos inteiros das pequenas/médias editoras’”. Some-se a isso ver a mesma livraria, em novembro de 2011, com portas adesivadas não com a capa de Harry Potter, mas de O filho de mil homens, do Hugo Mãe; sem falar dos livros de João Tordo, Gonçalo M. Tavares, Mário de Carvalho & cia sempre bem exibidos em vitrines e gôndolas da independente Pó dos Livros e do hipermercado que é a Fnac. Lógico, As 50 sombras de Grey (é como se diz 50 tons de cinza em Portugal) bombou em 2012, há José Antônio Rodrigues (ao que parece um Dan Brown luso que frequenta anualmente as listas de mais vendidos batendo na centena de milhares de exemplares) e há o jovem escritor, da microeditora, que reclama de falta de espaço. Mas vi esse jovem escritor, num evento, reclamar justo que as livrarias só queriam exibir Valter Hugo Mãe no Natal. E há uma série de autores de ficção de qualidade que alcançam mais de uma (quando não bem mais de uma) edição de suas obras. Nesse universo em que A máquina de fazer espanhóis passa por literatura pop, só consigo pensar nessa falta de vocação pra best-seller. Ou alguém tentará me convencer de que as metáforas das metáforas de Lobo Antunes, ou os cantos de Uma viagem a Índia de Gonçalo M. Tavares ou os livros aqui descritos se encaixam numa ideia de publicações que obviamente terão sucesso de público?

 

Chego a pensar, ainda, que nosso maior acesso à escrita mais-que-atual portuguesa também ajuda a desmoronar tentativas de generalização de “produções nacionais”. Não é raro ver críticos tentando comparar produção brasileira e lusa, definir o que se faz lá e cá, o que distingue as literaturas. Acho isso insano. Basta observar as diferenças temáticas, de forma e estilo só entre os autores aqui citados. Ou ler a introdução de O romance português contemporâneo, de Miguel Real, na qual Real generaliza que “a superior característica da nova narrativa portuguesa do século 21 consiste justamente no cosmopolitismo”, mas, em seguida, destrincha essa definição em 24 itens diferentes, quase um pra cada autor que ele lista.

 

Seja pela novidade, pela qualidade, ou pra verificar mesmo que a Literatura contemporânea portuguesa não cabe numa caixinha, há muito pra ler. E pra descobrir imensas variações não só de temas, mas de usos e estranhamentos da língua portuguesa. Problema é que, além dos novíssimos, ainda há que se ler os novos, os nem tão novos e, bem, o drama do leitor sempre será esse.

 

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