Há alguns meses uma pessoa muito próxima a José Saramago e Pilar del Río contou-me que conheceu a casa do escritor antes da chegada da jornalista espanhola em sua vida. Segundo a descrição, era um lugar escuro, carente de decoração e alegria. Até que um furacão cruzou o caminho do português, abriu as portas, deixou entrar vento fresco, e coloriu a morada e a vida do homem que tinha fama de fechado e mal-humorado. Isso foi em 1986 e a partir de então e até sua morte Saramago dedicou todos os seus livros à mulher que o fez rejuvenescer, como ele mesmo confessara várias vezes. “A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar”, escreveu na dedicatória de Pequenas memórias. “A Pilar, minha casa”, disse nas Intermitências da morte. Chamou-a também de “seu pilar” e agradeceu-a, na A viagem do elefante, por não haver deixado que ele morresse. Durante quase 25 anos estiveram juntos, unidos pelo amor e pela mesma convicção de que há demasiadas coisas erradas no mundo para calar-se.
Agora, passados quase três anos da morte de Saramago (18 de junho de 2010), Pilar, que tem 63 anos, mantem-se firme na tarefa de perpetuar as ideias do ex-marido: é a presidenta da fundação que cuida da obra do autor. Quando ficou viúva, mudou-se para Lisboa, fez-se portuguesa, e assumiu a direção da entidade a fim de cumprir o pacto que fez com o escritor dias antes dele partir. Perguntou o que deveria fazer quando ele já não estivesse mais. Escutou como resposta: “continua-me”. É o que ela tem feito.
Pilar me recebeu na Casa dos Bicos, o prédio de cinco séculos e de amplas janelas voltadas para o Tejo, no centro de Lisboa, que desde o ano passado é a sede da Fundação José Saramago. Na semana seguinte passaria dez dias na Colômbia, onde José Saramago seria o principal homenageado da prestigiada feira do livro de Bogotá. Em agosto estará no Brasil para o lançamento de livro.
Você estava em Turim naquele dia? Por que foi tão especial essa conferência?
Eu estava sim. José estava cômodo, rodeado de amigos, de pessoas conhecidas, e se desnudou. Obviamente que essa conferência foi revisada e anotada por ele depois (alguns meses antes de morrer), mas o essencial está no livro. José não sabia o que ia falar naquele dia, falaria de improviso e dependia do que havia sido dito antes, das conferências anteriores. Não levou anotações e de repente começou a se abrir.
E as pessoas que estavam presentes se deram conta de que eram testemunhas de um momento importante?
Acredito que sim. Havia uma sensação de que era um momento especial. É difícil que um escritor fale de sua obra, e mais ainda que saiba falar de sua obra, que consiga fazer uma reflexão com essa profundidade. E ficamos muito felizes quando soubemos que havia sido gravado.
Se pode dizer que é a primeira vez que Saramago faz essa reflexão sobre sua obra, sobre essa mudança de fase?
Sim, sem dúvida. É a primeira vez que ele se debruça sobre sua obra e detecta essa intenção de mudança da estátua para a pedra. É a primeira vez que verbaliza isso, que o diz publicamente.
Até que ponto e em que medida a ida a Lanzarote influencia essa mudança de rota?
Escolhemos morar em Lanzarote porque tínhamos amigos lá e gostávamos da paisagem. Saramago dizia que aquilo era o cenário do começo de tudo e do fim de tudo. Isso passa para sua escrita, sem dúvida. Encontra uma beleza formal. [Em sua escrita] não faz concessão, é a beleza da pedra.
Há ainda uma última fase, que ele não aborda no ensaio, mas que no epílogo, escrito pelo Fernando Aguilera, há referência. Como você lê esses livros?
As pequenas memórias era um projeto antigo que ele tinha e faz referencia a ele em vários momentos. Já A Viagem e Caimsão livros que venceram a morte, que foram escritos em um estado de pura exaltação, é de onde vem o humor.
É curioso que no começo da conferência ele diz que cada vez gostava menos de falar de literatura, e de repente o discurso todo é sobre literatura. Por que é que não gostava de falar de si? Era uma posição política, de quem achava mais importante denunciar as mazelas do mundo?
Sim. Ele ia dar uma entrevista e conduzia a conversa a outros assuntos. Lembro-me, por exemplo, de uma entrevista na Colômbia em que ele começou dizendo: esse país tem que vomitar seus mortos. Vamos ver, qual jornalista vai tentar falar de literatura depois de uma frase dessas?
E nessas entrevistas e nos seus livros antecipou muitas das questões que hoje nos aflige...Saramago era um profeta? Não! Era um intelectual, uma pessoa muito bem informada e que avisava: não somos altos e loiros como querem que acreditemos que somos. Agora [com a crise na Europa] estamos percebendo que ele tinha razão. Há mais ensaios como esse a serem publicados?
Sim, há uma conferência que Saramago fez em Cartagena de Índias titulada O lado escuro da lua que vamos publicar em breve, mas já não é Saramago falando de literatura.