Ilustração por Karina Freitas

 

O auditório da Universidade de Turim já era um lugar familiar para José Saramago. Em 1991 o escritor português havia percorrido aqueles corredores e subido as mesmas escadas para que lhe entregassem o título de doutor honoris causa— a primeira das 38 condecorações do gênero que receberia durante a vida. Naquela tarde de maio de 1997, a plateia era composta por estudantes de literatura, professores e vários amigos, a maioria literatos. De maneira que havia uma cumplicidade entre aquele que falaria e os que ali estavam para escutá-lo. E provavelmente por conta disso o escritor fez algo que não era do seu costume: durante mais de uma hora falou sobre literatura e, em especial, sobre a sua construção literária. “Prefiro falar mais da vida do que de literatura, sem esquecer que a literatura está na vida e que sempre teremos perante nós a ambição de fazer da literatura vida”, avisou no início de sua intervenção e logo após afirmar que cada vez gostava menos de falar sobre literatura. Ainda assim, foi este o tema de seu discurso. Naquilo que chamaria de “uma conversa entre escritor e leitor”, o autor de Todos os nomesfez um detalhado repasso de sua trajetória como escritor. Livro por livro, analisando cada um deles, Saramago foi explicando aos presentes como concebia seu ofício. Como alguém que se olha no espelho e começa a descrever-se, abordou cada um de seus romances. Como alguém que se olha no espelho e nota uma mudança, adivinha uma calvície que se avizinha, compartilhou uma intuição que nos últimos tempos dava voltas em sua cabeça e que nos anos seguintes se demonstraria certeira. A percepção de que sua escritura passava por um momento de mudança. Uma mudança que, mais do que uma secura na escrita (que tornar-se-ia menos barroca), significava uma aproximação ao indivíduo. “Durante anos tenho vindo a construir a estátua, o edifício que são meus livros. E até uma certa altura, até O Evangelho segundo Jesus Cristo, estive a trabalhar nesse edifício”, explicou Saramago naquela conferência em Turim. “Até que, de repente, notei que a operação de construir, de continuar a levantar o edifício, se quisesse prosseguir o trabalho, para mim estava acabada. Que não poderia acrescentar mais adornos à estátua, que pelo contrário eu deveria penetrar mais a fundo na singular matéria da estátua, que deveria escavar a pedra com que tinha construído a estátua”, completou.

 

José Saramago estava em um processo de mudança e os presentes naquela conferência em Turim foram os primeiros a serem avisados.

 

Por conta de reflexões como essa, o discurso ganhou importância entre aqueles que estudavam a obra do Nobel português. Por sorte, havia um gravador que registrou a fala de improviso do escritor. Um ano depois, em nova visita à universidade, o manuscrito do seu discurso lhe foi entregue, como um agrado feito pelos organizadores do colóquio. Saramago voltou àquele documento tempos depois. Fez anotações e transformou-o em um ensaio intitulado: A estátua e a pedra, para que um dia fosse publicado.

 

Agora, passados mais de 15 anos da conferência e quase três da morte do escritor, a Fundação José Saramago, que administra o legado do literato, publica em uma edição bilíngue (espanhol e português) o ensaio. Além das reflexões do único prêmio Nobel da nossa língua, o livro traz um epílogo do escritor espanhol Fernando Gómez Aguilera, 51, autor da biografia Saramago: a consistência dos sonhos(2009).

 

“Esse ensaio”, explica Aguilera, “é uma reflexão muito lúcida que acrescenta um eloquente ponto de vista de Saramago sobre sua própria obra. Oferece uma visão articulada do autor sobre sua produção, destacando as chaves que ele considerava relevantes”. Antes de tornar-se escritor, José Saramago exerceu durante anos o trabalho de crítico literário, em especial na década de 1960, aponta o biógrafo. É com esse olhar que o autor de Memorial do conventoanalisa sua própria produção. “Saramago faz esse discurso na fase inicial do novo ciclo, mas já tem clara consciência do novo horizonte que estava explorando. Estava a caminho de completar 75 anos quando participa dessa conferência. Nessa idade ninguém pode saber se terá vida para escrever seis romances mais, como ele, por sorte, pôde fazer. Saramago pensava que esse ciclo chegaria a uma trilogia”, conta ao Pernambuco o ensaísta e escritor espanhol.

 

A trilogia a que se refere Aguilera é composta pelo O ensaio sobre a cegueira(1995), Todos os nomes (1997) e A caverna(2000). Depois ainda viriam mais três livros pertencentes à fase nomeada como “período da pedra”: O homem duplicado(2002), Ensaio sobre a lucidez(2004) e As intermitências da morte(2005). Formando assim um conjunto de doze romances. Seis da fase da estátua (que se inicia com Levanto do chão, de 1980), e outros seis da fase da pedra. Há ainda um período inicial, de formação, onde encontram-se Terra do pecado(1947), Claraboia(escrito em 1952, mas que só vem à luz em 2011, depois da morte do autor) e Manual de pintura e caligrafia(1977). Por fim, existe o trecho final, composto por outros três romances: Pequenas memórias(2006), A viagem do elefante(2008) e Caim(2009). Para Aguilera, esta última etapa de Saramago, que compõe um ciclo de encerramento, pode ser lida como um projeto de despedida. “Eu leio esses últimos três livros como um testamento moral, um ato de afirmação da identidade do escritor e do homem fiel às suas convicções”, aponta o biógrafo.

 

Ilustração por Karina Freitas

 

O autor se reinventa

Uma escavação até a matéria-prima, uma viagem até o interior do ser humano. Esse foi o movimento que fez José Saramago a partir de o Ensaio sobre a cegueira. Provavelmente não exista apenas uma explicação, mas várias, para esse novo enquadramento adotado pelo escritor. A ida para Lanzarote em 1993, depois de ter um de seus livros (O Evangelho) impedido pelo governo português de concorrer a um prêmio europeu, sem dúvida, interferiu em sua escritura. Ao tomar contato com uma paisagem seca e pedregosa — Lanzarote é uma ilha vulcânica —, Saramago transforma sua maneira de escrever, deixando-a mais austera e essencialista. “Menos barroca e mais envolvida nos problemas sociais, morais e humanos”, destaca Aguilera e acrescenta: “Eu acredito que a perspectiva é mais ampla e que esse novo ciclo coincide com fatores variados em relação à circunstâncias da vida que surgiram nessa etapa de plena maturidade. A ida a Lanzarote, como o próprio Saramago disse mais de uma vez, foi uma delas”. Para o escritor espanhol, também morador da ilha do arquipélago das Canárias, a fase da pedra foi um passo que levou José Saramago a “crescer como escritor” e a se vincular com mais força, e a partir da literatura, com o “pulsar do seu tempo”, “cimentando palavras e consciências a partir do desenvolvimento de grandes metáforas sobre conflitos contemporâneos”.

 

Outro fator que sem dúvida influenciou o “comunista hormonal”, como gostava de se definir, a rumar para essa nova fase foi a necessidade de denunciar o que lhe parecia ser um caminho equivocado, que estava a ser tomado pela nossa civilização. “É como se o mundo me incomodasse no sentido mais profundo e eu, através de um romance ou fábula, o deixasse exposto”, explicou certa vez Saramago. Por meio de metáforas (ou fábulas) como uma cegueira branca, o Nobel português, nas palavras de Aguilera, “começa a perguntar-se o que e quem somos nós, em que nos convertemos, o que é viver”. Ao questionar-se dessa forma, termina por instigar seus leitores a fazer o mesmo, a buscar dentro de si — dentro da pedra — as respostas. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos”, diz uma das personagens de Saramago no Ensaio sobre a cegueira.

 

No discurso que agora vira livro, Saramago afirma que sua preocupação (provavelmente desde sempre, mas que se reforçara a partir daquela nova fase) era “considerar o ser humano como prioridade absoluta”. “Por isso, o ser humano é a matéria do meu trabalho, a minha cotidiana obsessão, a intima preocupação do cidadão que sou e que escreve”.

 

De Turim a Estocolmo

“O homem mais sábio que conheci em toda minha vida não sabia ler nem escrever”, disse José Saramago no dia 7 de dezembro de 1998, em Estocolmo, no início de seu discurso de aceitação do prêmio Nobel de Literatura, na Academia Sueca. O avô Jerónimo Melrinho — esse sábio analfabeto — e a avó Josefa Caixinha foram apresentados ao mundo naquela oportunidade, graças às memórias do neto escritor. Mas quem havia estado na conferência de Turim, um ano e meio antes, já conhecia o humilde casal de pastores de Azinhaga. As intervenções de Turim e Estocolmo guardam semelhanças em vários pontos, entre eles a recordação dos avós. Na Itália as lembranças são evocadas no final da fala: “Este neto, insisto, quando escreve sobre seus avós está a impedir que morram definitivamente. Creio que compreender isso é avançar no caminho que vai até o interior da pedra, onde o meu avô sempre esteve sem que eu o soubesse.” Na Suécia as memórias abrem o discurso. Em ambos os casos o neto letrado e admirado por sua erudição e capacidade de escrever faz reverência a uma gente que conhecia a vida por vivê-la, sem metafísica. Um avô que ao intuir que chegava a hora de sua morte se despediu com abraços das árvores que tinha no quintal. Uma avó que em uma noite, sentada na porta de casa, a olhar estrelas, confessou ao neto: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”.

 

Em ambos discursos Saramago afirma que ao escrever sobre aquelas pessoas estava a impedir que elas morressem definitivamente.

 

Pilar del Río (leia entrevista acima), viúva de José Saramago, esteve presente em ambos os discursos e é quem alerta para a continuidade entre uma fala e outra. “Esse discurso de Turim estava muito fresco na cabeça dele quando foi preparar o de Estocolmo”, conta. Pilar, que assistiu de camarote a “transformação” de Saramago da “fase da estátua” para a “fase da pedra” destaca a valentia do Nobel em escrever um livro tão complexo como A cavernalogo após ter recebido o máximo prêmio das letras. “José não se senta a ver passar o mundo, escreve A caverna, protagonizado por pobres, expulsos do sistema, mas que tinham capacidade de reagir. Um livro que, ele mesmo disse muitas vezes, deixará claras as prioridades dos nossos tempos: os novos templos. Agora, as universidades são os centros comerciais, o saber e a democracia se apressam aí. E quem não tem poder aquisitivo para entrar é um excluído do sistema”, aponta Pilar.

 

A preocupação pelo outro faz Jose Saramago viajar o mundo. Em abril de 1998 o escritor visita Chiapas, no México, e denuncia os horrores de um massacre contra indígenas indefesos. Em 2002, vai à Palestina e critica a política de “apartheid” imposta por Israel. Um ano depois, em Madri, grita não à Guerra do Iraque. Em 2005 Saramago viaja a Porto Alegre, participa do Fórum Social Mundial e alerta que as democracias estão “amputadas”, foram “sequestradas” e que os cidadãos cada vez têm menos poder de decisão. Nem mesmo a doença, que começa a dar sinais em 2006, impede Saramago de continuar a viajar o mundo com o intuito de espalhar sua obra e suas ideias. Em 2010, aos 87 anos, morreu em Lanzarote. Suas cinzas foram levadas para Lisboa e agora descansam diante da Casa dos Bicos, sede da fundação que administra sua obra. Ao lado dos restos do escritor está uma oliveira quase centenária que foi trazida de Azinhaga, sua terra natal, para fazer-lhe sombra. Foi de árvores como essa que o avô Jerônimo se despediu com abraços ao pressentir que chegava sua hora. No documentário José e Pilar(2010), dirigido pelo português Miguel Gonçalves Mendes, Saramago diz que via como ideal de vida uma árvore. “A árvore está ali, alimenta-se diretamente do chão, da terra, cresce, abre-se, dá flores se é árvore de dar flores ou frutos se é de frutos. Vive o tempo que tenha que viver. E depois tudo acaba”. No dia 18 de junho completa-se dois anos que as cinzas de Saramago e a oliveira foram colocadas no passeio diante do rio Tejo, em frente à Casa dos Bicos. Após um período de adaptação ao novo espaço, a árvore começa a dar seus primeiros frutos.

 

Em breve no Brasil

Por tratar-se de um ensaio e não de um livro de ficção, A estátua e a pedrafoi publicado em Portugal pela Fundação José Saramago e não pela Caminho, que edita toda sua obra no país. A mesma lógica será usada no Brasil. O ensaio será publicado pela editora da Universidade Federal do Belém do Pará e não pela Companhia das Letras. O lançamento deve acontecer em agosto, quando Pilar del Río estará no Brasil para uma série de homenagens ao escritor no Pará e em São Paulo.

 

 

Veja a segunda matéria de capa: O pilar de Saramago