Em agosto de 2011, um vazamento no Salão Verde da Câmara dos Deputados, em Brasília, colocou um grupo de bombeiros diante de inscrições feitas nas paredes pelos operários que construíram a cidade, em 1959. Eram frases curtas, mensagens de esperança deixadas em um lugar por onde não passariam políticos, advogados ou jornalistas, um canto esquecido e fechado sob a laje do Congresso Nacional que seria, eventualmente, visitado apenas por outros trabalhadores, como eles. Algumas anônimas, outras assinadas e datadas, as inscrições emocionaram a cidade — e foram esquecidas. De qualquer modo, permanecem lá, narrando subterraneamente a história desses homens e de sua relação com um espaço que, afinal, ajudaram a erguer.
É sobre as narrativas dessa relação — subjetiva, estética e política — entre homens e mulheres desprovidos de poder e o espaço que, a um só tempo, ocupam e os constitui, que pretendo me debruçar aqui. A partir da leitura de quatro livros: Guia afetivo da periferia(2009), de Marcus Vinícius Faustini, Eles eram muitos cavalos(2001), de Luiz Ruffato, Ninguém é inocente em São Paulo(2006), de Ferréz, e Passageiro do fim do dia(2010), de Rubens Figueiredo, discutirei um desses espaços possíveis — o supermercado. Lugar corriqueiro e sem grande interesse para a classe média bem situada, os supermercados impõem aos que não tem dinheiro uma série de constrangimentos, cujos reflexos se inscrevem diretamente no corpo das personagens.
As personagens da literatura brasileira contemporânea são, frequentemente, marcadas pela ambiguidade em relação ao espaço narrativo. Muitas vezes descarnadas e sem rumo, se apresentam como seres confusos, que habitam um espaço não menos conturbado — um espaço que se estreita ou se alarga de modo igualmente sufocante. Talvez porque já não exista mais aquele território comum da epopeia antiga e medieval, o lugar para onde o herói voltava após suas andanças e lutas, resgatando o sentido da vida e restaurando sua existência. Como observa Paul Conrad Kurz, em La nueva novela europea, “a composição épica de nosso tempo, o romance, está sociológica e psicologicamente em estreita conexão com a perda de uma comunidade de apoio, de uma compreensão abarcadora da fé e do mundo, com a individualização e o isolamento do ‘herói’”.
Nunca antes os homens, e as mulheres, possuíram tamanha mobilidade geográfica, o que faz com que os sentimentos comunitários percam centralidade. Michel Walzer, em The communitarian critique of liberalism, lembra que “comunidades são mais do que simples locais, mas elas são melhor sucedidas quando estão permanentemente localizadas”. Dormir em um país e acordar em outro não implica apenas uma espécie de aceleração do tempo, mas também uma possível transformação da identidade do migrante, que, longe de casa, deixa de enxergar no outro o reconhecimento de si, como acontece com o protagonista das Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna, por exemplo, que atravessa imensos territórios em um piscar de olhos, transformando-se sempre num outro homem, com gestos, caráter, personalidade diferentes.
Mas essas personagens circulam por um espaço que também se constrói sobre representações anteriores, embora muitas vezes busquem remeter a um “real-concreto” que as precede. Não é possível desconhecer, na constituição desses espaços, outras literaturas, os quadrinhos, o cinema, a música norte-americana, a televisão, o apelo às mais diferentes marcas de alimentos e objetos, que, segundo Renato Ortiz, compõem nosso território mundializado: “A mundialização não se sustenta apenas no avanço tecnológico. Há um universo habitado por objetos compartilhados em grande escala. São eles que constituem nossa paisagem, mobiliando nosso meio ambiente” (Mundialização e cultura). O que, no final das contas, não torna esse espaço menos concreto do que o chão árido de um Graciliano Ramos, por exemplo, apenas mais adequado ao dia a dia de nossas grandes cidades, feitas de deslocamentos e impressas sob o signo da velocidade.
A cidade
Dentro dessa perspectiva, é preciso ressaltar ainda que essas cidades, tornadas impalpáveis e indistintas pela velocidade, são domínio de poucos. Como lembra Zigmunt Bauman, “em vez de homogeneizar a condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais tende a polarizá-la. Ela emancipa certos seres humanos das restrições territoriais e torna extraterritoriais certos significados geradores de comunidade — ao mesmo tempo que desnuda o território, no qual outras pessoas continuam confinadas, do seu significado e da sua capacidade de doar identidade” (Globalização: as consequências humanas). Daí a necessidade de se olhar o espaço urbano também pelo ângulo daqueles que estão impedidos de se mover, muito embora observem “impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés”. As cidades, então, muito mais que espaços de aglutinação, são territórios de segregação.
Se podemos dizer que hoje, mais do que nunca, o espaço constitui a personagem, que o transporta em si, seja ela nômade ou não (é através de seus gestos, sua dicção, seus dentes e sapatos que sabemos de onde ela vem e por onde não pode passar), convém lembrar que personagens efetivamente fixas na sua comunidade estão quase ausentes da narrativa brasileira contemporânea. Afinal, o Brasil se urbanizou em um período muito curto — o censo de 1960 registrava 45% de brasileiros vivendo em cidades, número que chegaria a 56% em 1970 e a 81% em 2000; já os dados do IBGE para o último censo apontam 84% de população urbana em 2010. E a literatura acompanhou a migração para as grandes cidades, representando de modo menos ou mais direto as dificuldades de adaptação, a perda dos referenciais e os problemas novos que foram surgindo com a desterritorialização. Assim, o espaço da narrativa brasileira atual é essencialmente urbano ou, melhor, é a grande cidade, deixando para trás tanto o mundo rural quanto os vilarejos interioranos, como pode ser comprovado a partir de uma pesquisa coordenada por mim na Universidade de Brasília sobre cerca de 400 romances brasileiros publicados entre os anos de 1965-1979 e 1990-2004: 58,8% dos romances do primeiro período tinham a grande cidade como cenário, número que sobe para 82,6% no segundo período.
A cidade é um símbolo da sociabilidade humana, lugar de encontro e de vida em comum — e, neste sentido, seu modelo é a polis grega. Mas é também um símbolo da diversidade humana, em que convivem massas de pessoas que não se conhecem, não se reconhecem ou mesmo se hostilizam; e aqui o modelo não é mais a cidade grega, e sim Babel. Mais até do que a primeira, esta segunda imagem, a da desarmonia e da confusão, é responsável pelo fascínio que as cidades exercem, como locais em que se abrem todas as possibilidades. Mas a cidade não é um espaço homogêneo. Bem ao contrário, é fragmentado e, sobretudo, hierarquizado, marcado por interdições tácitas, que definem quais habitantes podem ocupar quais lugares. Na base destas hierarquias urbanas, estão as principais assimetrias sociais — vinculadas a classe, sexo, raça, orientação sexual, idade, deficiência física. Para se entender as configurações do espaço na literatura brasileira contemporânea, seria importante, então, observar como ela reage a essa situação. As assimetrias incorporadas na organização do espaço urbano podem ser simplesmente aceitas como dados e, de alguma maneira, naturalizadas; podem ser problematizadas, de forma a revelar os padrões de dominação e opressão subjacentes; ou podem ser tensionadas, por narrativas que as subvertem.
O corpo
Segundo a geógrafa britânica Doreen Massey, em Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, “o espaço é uma dimensão implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos entendimentos do mundo, nossas atitudes frente aos outros, nossa política. Afeta o modo como entendemos a globalização, como abordamos as cidades e desenvolvemos e praticamos um sentido de lugar. Se o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea de outros”. Por isso mesmo é possível dizer que nenhum espaço se define a prioripor si próprio. Ele é sempre o espaço de alguma coisa, uma relação preenchida por outra presença.
A ideia de espaço como vazio a ser ocupado contribui para a ocultação das relações de poder que o caracterizam. No lugar dessa imagem, Massey propõe sua compreensão como dimensão de múltiplas trajetórias, de “histórias até então” em uma interpenetração espaço-temporal. Assim também o lugar, idealmente concebido como sistema fechado de uma comunidade essencializada, deixa de ser local de coerência para significar ponto de encontro de diversas temporalidades, histórias e identidades. Qualquer espaço define-se, portanto, como termo constitutivo de uma relação sujeito-objeto (sujeito enquanto individualidade ou coletividade). Pensar o espaço implica, neste caso, pensar a maneira como os sujeitos o praticam: sua situação, localização e/ou habitação.
A escritora Carolina Maria de Jesus tinha uma percepção aguda dessa relação já nos anos 1960, no seu Quarto de despejo: “Quando estou na cidade tenho a impressão de que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão de que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. É especialmente reveladora, aqui, a aproximação entre espaço e corpo. O fato de ser obrigada a morar num lugar feio e sujo faz com que ela se perceba como um trapo descartado. Talvez porque, como diz Pierre Bourdieu em La misère du monde, “as imposições mudas dos espaços arquitetônicos se dirigem diretamente ao corpo, obtendo dele a reverência e o respeito que nascem do distanciamento”. De qualquer forma, a metáfora da escritora é bastante pertinente para a situação de milhões de brasileiros(as) hoje, para os(as) quais a cidade, com tudo aquilo que tem de positivo, continua sendo um lugar muito distante.
Para essas pessoas — ao contrário do que acontece com as personagens de classe média de autores como Bernardo Carvalho ou João Gilberto Noll, por exemplo, que se deslocam sem impedimentos de um país a outro —, ocupar um espaço é sinônimo de se contentar com os restos: as favelas, a periferia, os bairros decadentes, os prédios em ruínas. Mesmo o trânsito por determinados lugares e ruas lhes é vetado, como se houvessem placas, visíveis apenas para elas, dizendo “não entre”. Afinal, retomando Bourdieu, “não há espaço, numa sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deformada e sobretudo mascarada pelo efeito de naturalização que proporciona a inscrição das realidades sociais no mundo natural: as diferenças produzidas pela lógica histórica podem assim parecer surgidas da natureza das coisas”.
Talvez por isso mesmo seja tão comum em nossa literatura que cada personagem esteja “em seu devido lugar”. No romance, como nas telenovelas, no cinema, na publicidade, no jornalismo, em suma, nas diferentes representações da realidade brasileira (ainda que não necessariamente nela própria), a divisão de classes, raças e gênero é muito bem marcada: pobres e negros nas favelas e nos presídios, homens brancos de classe média e intelectuais nos espaços públicos, mulheres dentro de casa, negras na cozinha... Nas narrativas, os contatos entre os diferentes estratos são, em geral, episódicos. Quando representados, quase sempre estão marcados pela violência — mas, aí, costuma-se privilegiar a violência aberta com que por vezes se expressam integrantes das classes subalternas, em detrimento da violência silenciosa, estrutural, que é exercida sobre os dominados. Desaparecem as humilhações sofridas pelas personagens pobres, que saem da periferia tomando vários ônibus para chegar a uma cidade que não lhes pertence, nem as acolhe. Desaparecem os constrangimentos diários, as ofensas miúdas, o embate com as autoridades, a necessidade constante de explicações para a sua simples presença.
Por isso mesmo, é importante observar tanto o desconforto vivido pelas personagens nesses espaços hostis quanto as respostas possíveis experimentadas por corpos insubmissos que decidem ocupar lugares que não lhes são destinados. Afinal, o confronto entre corpos socialmente construídos para ocuparem espaços diferentes é um aspecto relevante quando está em discussão a representação de grupos sociais — mulheres, negros, pobres, velhos, homossexuais, deficientes físicos — que costumam ser marcados pelo discurso dominante justamente por suas características corporais. Discurso que constrói esses corpos como o “diferente” e, a partir daí, os assinala como “feios, sujos, manchados, impuros, contaminados ou doentes”, forçando-os a lidar, muitas vezes em silêncio, com a aversão ou a condescendência dos grupos privilegiados, como lembra Iris Marion Young em Justice and the politics of difference.
No supermercado
Um lugar significativo para se observar esse impacto do espaço físico nos corpos de personagens pobres é justamente o supermercado. Local de excessos, por onde os consumidores de classe média transitam com a desenvoltura que o dinheiro lhes oferece, ele se apresenta como acessível a todos, embora não passe de mais um território cercado, com regras rígidas e etiqueta própria, como todo estabelecimento comercial. Não é um lugar para quem não tem dinheiro — o que pode ser denunciado muito antes de se chegar ao caixa, seja pela forma como se está vestido(a), seja pelos gestos, demasiado expansivos ou excessivamente constrangidos. Mas também não é um espaço impermeável, como algumas lojas caras de um shopping center, por exemplo. Por isso mesmo, é o ambiente ideal para se analisar as inúmeras possibilidades de representação das experiências de inadequação vividas por personagens pobres em determinados espaços, nas poucas obras literárias que se detêm a narrá-las.
Em Guia afetivo da periferia, Marcus Vinícius Faustini nos leva para o supermercado no fusca do seu padrasto, logo que chega o salário do mês. O autor conta da alegria que era para ele, menino, entrar no carro com o padrasto e a mãe, sair de Duque de Caxias e ir para a Casas da Banha na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, para fazer as compras. No caminho, o padrasto contava a mesma história, todas as vezes: “Eu vi a Avenida Brasil no barro”. É daí que se constrói a memória afetiva desse lugar para o narrador, uma memória que se soma à memória mais antiga do padrasto. A descrição do espaço do supermercado passa pela expectativa do leite condensado, que nem sempre era comprado, pelo passeio cauteloso com o carrinho nos corredores, pelas dimensões gigantescas do prédio, pela quantidade de produtos e, finalmente, pela refeição feita na lanchonete do supermercado: macarrão com carne e catchup.
A cena é curta, mas compõe esse espaço como um lugar de lazer regrado. As possíveis ansiedades dos pais se revelam na contagem do dinheiro antes da saída, na declarada impossibilidade de comprar o que iria além do absolutamente essencial, na proibição do menino de subir no carrinho (para não amassar as compras). O supermercado aparece, em contraposição ao mercadinho perto de casa, como o espaço da fartura, com suas dimensões ampliadas, as várias marcas de produtos expostos. Espaço que o menino, de algum modo, parece poder dominar – ao menos em sua rememoração escrita muitos anos depois.
É bem diferente a situação do jovem trabalhador do supermercado no conto “Pão doce”, do livro Ninguém é inocente em São Paulo, de Ferréz. Em vez de um espaço de lazer com a família, o lugar é fonte de desgaste e humilhação. Os longos corredores e a infinidade de produtos são o martírio do rapaz, que tem de percorrê-los ininterruptamente para fazer a reposição do que era levado pelas pessoas: “quanto mais eu repunha a mercadoria, mais as pessoas compravam. Acabava o macarrão, eu buscava o palete e, quando chegava, o arroz também estava no fim. Logo que repus o arroz, o feijão e o óleo estavam no fim também. Toda vez que eu tentava passar com o carrinho, as pessoas reclamavam. Estava incomodando todo mundo”.
Ao contrário de um local de passagem — como pode ser vivenciado pela perspectiva dos consumidores —, o supermercado nos é apresentado pelo olhar dos que trabalham ali, como espaço de exploração e de hierarquias profundamente marcadas e todo dia reencenadas. O jovem que, como no outro livro, nos narra em primeira pessoa, precisa conviver com as humilhações diárias de gerentes e seguranças. Não só sobre si, mas também com os que frequentam o supermercado, uma vez que ele nos descreve a diferença entre o tratamento dado aos ricos que furtam e aos pobres. O tom da narrativa, que reflete, obviamente, os sentimentos do rapaz, é de constante revolta e cansaço, culminando com o momento em que o gerente se aproxima para reclamar do cheiro de suor de seu corpo. É quando ele joga tudo para o ar e vai embora — mais um desempregado pelas ruas de São Paulo, como o homem que entra no supermercado em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato.
Ali, não há experiência de lazer possível, nem lugar para algum diálogo desaforado. O protagonista, descrito em terceira pessoa como o “negro franzino, ossudo, camisa de malha branca surrada calça jeans imundo tênis de solado gasto que empurrava um carrinho de supermercado havia cerca de meia hora”, é seguido nos corredores pelo “segurança, negro agigantado, espadaúdo, impecável dentro do terno preto”. A tensão vai crescendo enquanto o “negro franzino” coloca leite em pó, fraldas e mamadeira dentro do carrinho, depois retira, devolve à gôndola, volta e coloca tudo de novo no carrinho. Os gestos de desconforto e insegurança do homem diante dos produtos, e talvez das câmeras do supermercado, são interpretados pelo “negro espadaúdo” e pelo chefe de segurança como uma tentativa de camuflagem para um roubo. Daí a violência contra ele e o recurso direto à polícia, mesmo com o homem se explicando enquanto apanha: que estava ali porque lhe nascera o filho, que estava desempregado, que pensava em pedir que alguém lhe pagasse as compras, apesar da vergonha.
O supermercado, assim, muito mais do que um espaço com pé direito alto, longos corredores e uma imensidão de produtos a serem infinitamente levados e repostos, é o lugar da vigilância, das câmeras de segurança, sempre prontas a encontrar o gesto suspeito, o movimento indesejado. E a personagem de Ruffato, sem dinheiro, com roupas inadequadas e com um corpo que revela seu desconforto, está ocupando um espaço indevido; por isso o “negro franzino” será expulso e, mais do que isso, punido. É a ciência dessa possibilidade que torna alguns espaços proibidos, mesmo quando nos pareçam relativamente abertos a todos.
Nos três exemplos acima, as narrativas dessa relação do pobre com o espaço do supermercado, apesar de significativas, são muito breves. A situação é tratada com mais vagar, e muita sutileza, em Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Como no Guia afetivo da periferia, temos ali toda a preparação anterior para a ida ao supermercado. No lugar do menino e seus pais, um velho aposentado por invalidez e sua cunhada, também doente e idosa. Em vez do dinheiro contado, o vale de compras, arduamente conquistado num programa de assistência social do governo. No lugar do fusca, “o brasão masculino do padrasto”, eles vão à pé até o supermercado, para economizar as passagens do ônibus e poder voltar de táxi com as compras do mês. O homem se empolga com a cena que visualiza: chegar em frente à casa e retirar do porta-malas, diante do olhar dos vizinhos, as inúmeras sacolas de plástico cheias de produtos.
Dentro do supermercado, o velho e a cunhada ficam extasiados com a quantidade e variedade de produtos a que teriam acesso: “Havia uma satisfação, uma sensação de força, um alívio que passava para o corpo e que eles tratavam de aproveitar ao máximo”. Assim, “retardavam o passeio do carrinho, iam e voltavam pelos corredores, retiravam alguns produtos que já haviam apanhado e punham outros em seu lugar”, estavam “tão atentos às mercadorias, que ficavam mais vistosas por causa das luzes brancas e brilhantes lá do alto, que mal se davam conta da presença de outras pessoas”. Estão, até este momento, vivendo o prazer do menino de Guia afetivo da periferia, mas a situação muda quando eles chegam na fila do caixa e começam a ser olhados e se veem sendo vistos, no contraste entre o seu carrinho “irregularmente” cheio e a sua aparência irremediavelmente pobre.
A ansiedade vai sendo construída de forma paulatina, num crescendo: o movimento impaciente das outras pessoas na fila, a cara feia da caixa, a certeza — reafirmada para si mesmos — de que podiam estar ali porque tinham como pagar. O ápice da tensão se dá quando a caixa do supermercado, tão mal-humorada quanto o carregador do conto de Ferréz, não consegue passar o cartão do benefício e descobre que sua validade havia expirado no dia anterior. Então tudo desmorona em torno dos dois velhos, o corpo esfria, o ar lhes falta, eles são esmagados pela vergonha. É quando a moça do caixa, munindo-se de uma autoridade nova, que só pode ser exercida sobre aqueles que nada têm, exige em alto e bom tom que eles devolvam todos os produtos ao seu lugar nas prateleiras.
Com as pontas dos dedos, a senhora “empurrava de leve a mercadoria em seu lugar, fazia questão de alinhá-la de acordo com as outras. Cada produto de que se desfaziam causava mágoa. A garganta apertada. Nenhum, nem o mais barato deles, foi deixado para trás com indiferença. O tato, o manuseio dos frascos de vidro, dos potes de plástico, o formato das caixinhas na mão dos dois um momento antes de abandoná-los em seu lugar aumentavam a pena”. Angustiados com os olhares que os cercam, com a zombaria que pressentem, eles também são punidos por estarem em um lugar que não lhes cabe. E é só quando se veem do lado de fora, na rua, em meio ao movimento dos carros e ao lixo acumulado pela cidade, que podem expressar sua dor, e lembrar de sua identidade: “No fim, um cansaço pesava sobre os dois e no caminho de volta para casa, a pé, ficaram em silêncio o tempo todo. Até que pararam na beira de uma rua, perto de alguns sacos pretos de lixo amontoados em redor de um poste. Os dois à espera de que o sinal fechasse e os carros e motocicletas passassem. Só aí o pai de Rosane olhou para a esquerda e percebeu que a cunhada fungava, puxava para dentro algum resto de choro. E viu que ainda estava com o cartão magnético seguro na mão. Ele então pegou o cartão, abriu o zíper da bolsa da bolsa da cunhada e o colocou lá dentro, junto da carteira de identidade”.
Violências
Muitas representações da experiência dos pobres na sociedade brasileira privilegiam a exposição da violência aberta, na forma da criminalidade ou da brutalidade policial. Basta lembrar de um romance como Cidade de Deus, de Paulo Lins, dos contos de Rubem Fonseca, ou mesmo de filmes como Carandirue Tropa de elite, por exemplo. Esse tipo de violência não é estranha aos grupos privilegiados. Eles sofrem, talvez, modalidades diferentes dela, possuem outras formas de proteção e mantêm outro tipo de relação com os poderes públicos; ainda assim, há uma identificação possível. Sobretudo, a violência aberta encontra uma condenação moral unânime — há uma resposta comum e sem maiores ambiguidades a ela.
Mas outras formas de violência convivem no mesmo espaço. O filósofo esloveno Slavoj Žižek (em Sobre la violencia: seis reflexiones marginales) distingue três tipos de violência. O que chamei de violência aberta e ele chama de “violência subjetiva” é a mais evidente, aceita como tal, possui um perpetrador individual identificável, um “culpado” que podemos condenar. Mas há também uma violência simbólica (encarnada na linguagem) e uma violência sistêmica, que é fruto das estruturas sociais. Essas duas últimas determinam a vivência cotidiana, criando entraves e limitando possibilidades, impedindo as pessoas de decidir suas próprias vidas, constrangendo-as a privações e humilhações. Justamente por construírem o cotidiano, passam despercebidas, como algo próprio da natureza das coisas — e não são vistas como manifestações de violência. A condenação a elas não é automática, nem categórica; ao contrário, tem de ser disputada politicamente.
A violência simbólica e a violência sistêmica atingem de maneira muito mais específica os diferentes grupos sociais. O(a) leitor(a) de classe média bem estabelecida se encontra em situação de completa exterioridade em relação à experiência daquele(a) que vai ao supermercado contando os trocados, que tem que devolver produtos no caixa ou que sabe que o segurança desconfia de sua presença ali. A literatura pode ser um espaço onde essa perspectiva tenha lugar, permitindo uma aproximação a realidades que são, reiteradamente, silenciadas. Pode ser um espaço de acolhimento, o que implicaria na construção de novas estruturas narrativas, mas pode ser também um lugar de reflexão, impulsionando leitores(as) a repensarem o modo como ocupam o mundo.