Ilustração por karina Freitas

 

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O trauma persistentea farejar todos aqueles que contavam por volta dos 20 anos quando do 11 de Setembro Chileno; a pobreza absoluta pelo México e por um esquecido balneário espanhol; manifestos literários que tentaram em vão ultrapassar o real; fantasmas; a percepção de que nada vivo tem remédio e que, amém, essa seria nossa salvação; cigarros; mais fantasmas; a certeza da morte prematura; mais cigarros; a escritura urgente para registrar essa coisa fugidia que só aparece quando não estamos olhando.

 

O parágrafo acima não é a tentativa de fixar alguma estética de Roberto Bolaño; e, sim, o desejo de traçar um mapa que nos ajude a “encontrar” o escritor chileno, ou melhor: o fascínio que sua literatura — repleta de rotas de fuga e armada sobre uma arvore genealógica em que a escrita é paraíso e perdição — exerce. Alguns tentam seguir seus rastros pelo sol mofado de Blanes, cidade onde viveu suas duas últimas décadas, localizada a 22 estações de trem de Barcelona.

 

Tomar uma infusão num dos restaurantes de frutos do mar de Blanes ou tentar arriscar a sorte e descobrir se alguém hoje ocupa seu antigo apartamento (“estrategicamente” localizado no último prédio de uma rua sem saída), é itinerário obrigatório da “rota Bolaño”. Eu próprio caminhei, e tropecei, por esses passos, que decepcionam quem procura a visão de pontos turísticos fáceis e reluzentes, quando é justamente a ausência de pistas óbvias o grande atrativo da viagem. E convenhamos: nem sempre existe falta na ausência.

 

Este ano, o Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB) entrou na “rota Bolaño”, ao inaugurar a mostra Arxiu Bolaño 1977-2003, que ficou em cartaz até junho. Pela primeira vez, seus objetos pessoais foram colocados à mostra. Nos dois dias em que visitei a exposição, um detalhe me despertou a atenção: a baixa faixa etária do público (a maioria no auge dos seus 20 e pouquíssimos) em busca de se localizar no sinuoso labirinto literário deixado pelo escritor. Bem perto dali, na Fnac da Plaza Catalunya, seus livros eram expostos em primeiro plano na livraria da loja. Ainda que chileno, Bolaño é um “legítimo” orgulho espanhol.

 

Mas retorno à pergunta: qual a razão de tamanho fascínio? Ofereço algumas rotas de localização.

 

Bolaño escreveu não apenasalgumas das obras mais importantes em língua espanholado começo desteséculo. Também “criou”(e seus herdeiros e editores estão ajudando a disseminar) uma vida pública cercada de incertezas. Ganhou aura de herói das letras: o latino-americano exilado, que viveu de maneira errante, como um sobrevivente da repressão política, até se estabelecer na Espanha e fazer nome como ficcionista. Certos episódios de sua biografia ocupam uma zona indecisa entre a lenda e a realidade. É o caso da história de que teria sido preso no Chile, em 1973, logo depois do golpe de estado que levou o general Augusto Pinochet ao poder.

 

Amigos de Bolaño, ouvidos em uma reportagem do jornal norte-americano The New York Times,acreditam que ele estaria a salvo no México durante o 11 de Setembro Chileno. A mesma reportagem fala de um suposto vício em heroína, mas nãosão poucos os que desmentem a fama de junkie. Em quem confiar, quando nada real, ou forjado, é mais fascinante que uma dúvida?

 

Na primeira biografia do escritor, lançada este ano, para aproveitar as efemérides (10 anos de morte e 60 anos do nascimento), El hijo de Mr. Playa, a jornalista mexicana Mónica Maristain põe terra tanto na fama de junkie quanto na de bebedor inveterado de Bolaño. Segundo a biógrafa, ele preferia mesmo uma boa e inocente infusão e teria vivido uma existência normalíssima, dedicada à escrita e à leitura. Seu único vício seria a arte do flerte.

 

O fato é que, talvez sem as drogas, talvez sem a suposta resistência a Pinochet, Bolaño – ou melhor: sua persona midiática – não seria tão interessante, o que não causaria, obviamente, arranhões no valor de obras como Detetives selvagens e 2666, que injetam movimentados arquétipos da literatura universal nos traumas de pobreza e repressão política da América Latina. Bolaño é hoje tanto um escritor quanto um mito, um produto bem-sucedido do marketing selvagem do mercado literário, e a recepção da sua obra sofre o impacto disso. A Fnac não nos deixa mentir.

 

No trabalho que desenvolvi como pesquisador da obra de Bolaño, quebrei a cabeça durante muito tempo em busca de uma rota segura para encontrá-lo, algum caminho que me levasse a compreender o impacto tamanho dos seus livros. A procura começou a ficar mais clara quando notei que precisava encontrar o “meu” Bolaño, antes de encontrar “o” Bolaño. Foi quando percebi que meu interesse de leitor residia justamente na recorrência de personagens fascinados por ausências (Perceba a inversão de fatores: não estou falando em personagens que buscam meramente encontrar alguém; e, sim, em personagens fascinados pelo vazio, pela casa abandonada ejá sem rastro dos seus antigos moradores. Não se trata de encontrar; e, sim, sobre como se perder. Sobre omo flagrar, como reter, a ausência?).

 

Bolaño fez o melhor da sua obra ao desenhar o contorno (e não o perfil) de desaparecidos. O mais importante é o túmulo vazio e não o autor do crime – e o túmulo vazio é uma das heranças mais fortes deixadas pordécadas de repressão política para a história comum da América Latina. O autor soube revitalizar a matiz do romance policial - o que ajuda a compreender o apelo dos seus livros no competitivo mercado norte-americano, que, em geral, não é lá muito interessado em traduções e que até então resumia a literatura hispano-americana ao clichê do realismo mágico.

 

O CORPO AUSENTE

Estamos de volta ao local do crime, ao momento em que Roberto Bolaño revelou que seu desejo maior não era a escrita, mas a investigação policial. Que ele gostaria de ter sido alguém capaz de retornar sozinho, no meio da madrugada, em busca de mais e melhores pistas. Ficar parado diante do corpo, antes da chegada de outros colegas ou de testemunhas. Escorregar em poças de sangue e descobrir os porquês do criminoso, talvez mais que sua identidade. A literatura como investigação é uma das marcas de Bolaño, tanto em sua poesia, quanto em romances como Detetives selvagens e Estrela distante.

 

O romance policial é fruto da modernidade, de quando as grandes cidades levaram o homem a perder sua individualidade. Assim, procurar “marcas” permanece um exercício tão importante: é necessário encontrar-se, encontrar o outro, descobrir quem é esse outro ou mesmo questionar os porquês desse outro. Daí nasce o romance policial que viveà caça dessas marcas. Mas a investigação na literatura de Bolaño tem um elemento diverso, quando pensamos no romance policial clássico, na tradição erguida por Edgar Alan Poe no século 19, em que há mais conexões lógicas do que em um caso banal. Uma das diferenças é que Bolaño, o escritor, parece saber tanto quanto nós, seus leitores. Há uma inquietação e um hesitar em sua escrita que é próprio da literatura contemporânea.

 

No romance Estrela distante, a questão não é quem cometeu o assassinato, mas quem criou a memória dessa morte, quem persiste com essas mesmas cenas na cabeça, apesar de terem passado tanto e tantos anos do crime? O assassino é tanto uma aparição fantasmagórica quanto o próprio morto e, quem sabe, até mesmo o detetive em questão. Papéis que se misturam, porque não há a certeza de um grand finale clássico. A investigação se dá em torno de lembranças e fantasias, e não em pistas e rastros, como no conto de Poe que formulou nossa ideia primeira de investigação na literatura, Os crimes da Rua Morgue (1843). “Poe mostrou que os atos humanos obedecem às mesmas leis que os fenômenos físicos, logo são previsíveis, logo podem ser deduzidos, logo o mistério é apenas aparência. E eis-nos no coração do romance policial”, explica a pesquisadora Bella Josef.

 

Num artigo sobre a relação entre literatura e psicanálise, Ricardo Piglia apontou que uma das melhores chaves para se compreender o mundo em que vivemos seria justamente o romance policial. Para o autor, trata-se do gênero moderno que melhor teria sobrevivido. Segundo Piglia, olharíamos hoje o mundo pautados pelas demandas do gênero policial; veríamos a realidade sob a forma do crime, tentando fazer relações entre lei e verdade ou mesmo entre a falta de coincidência entre a verdade e a lei.

 

Piglia continua sua abordagem lembrando que o gênero policial tem sido capaz de discutir o mesmo que a sociedade discute, mas de uma “outra maneira”.
E é isso justamente o que a literatura faz: discute a realidade de outra maneira. Se não entendermos tal mecanismo de abordagem, estaremos pedindo que a literatura faça algo que, digamos, o jornalismo faria melhor. Para Piglia, um detetive policial é uma espécie de “filósofo”, que questiona a razão dos fatos o tempo inteiro. Um dos detetives do seu romance Alvo noturno chega a conclusões mirabolantes apenas a partir das conexões guiadas por sua intuição, descartando a suposta “concretude” dos fatos. Ainda assim, é respeitado por todos. Há uma “lei” própria a guiar suas deduções. O detetive seria uma espécie de filósofo, talvez por isso o escritor carioca especializado em livros de mistério, Luiz Alfredo Garcia Roza, tenha batizado de Espinosa o investigador que percorre sua obra.

 

As características do detetive de Piglia nos remetem ao clássico texto de Walter Benjamin sobre o flâneur. Segundo Benjamin, a ociosidade do flâneur fez dele, ainda que de forma não deliberada, um “detetive”, alguém que captaria as coisas em “pleno voo”, podendo assim imaginar-se mais próximo do artista. O pensador alemão acredita que, incógnito em meio à multidão das cidades grandes, o flâneur sabe que a massa “desponta como o asilo que protege o antissocial contra os seus perseguidores. Entre todos os aspectos ameaçadores, esse foi o que se anunciou mais prematuramente; está na origem dos romances policiais. Em tempos de terror, quando cada qual tem em si algo de conspirador, o papel do detetive pode também ser desempenhado”.

 

Ilustração Karina Freitas

 

A investigação de Estrela distante é guiada por uma instituição bastante controversa, a memória. O alterego de Bolaño é envolvido na trama a contragosto: já não sabe mais se precisa voltar ao local do crime, embora tenha vivido à sombra desse trauma do passado por décadas, e mais: parece se alimentar do trauma. Vive o (real) paradoxo de que, para esquecer, é preciso relembrar, relembrar o tempo inteiro. E relembrar com a utopia de estar relembrando “certo”.

 

Outra questão chama a atenção no romance de Bolaño: todos procuram um alguém incerto, um duplo incerto, sem rosto, que não faz falta, para além de lembranças pontuais. Não há como provar o crime, porque nem todos os corpos foram encontrados. Também por isso, esses anos de chumbo da América Latina permaneçam tão assombrados. Tão à espera de detetives que sigam suas próprias intuições.

 

Em Detetives selvagens, a busca é por uma escritora que não mais escreve há décadas, alguém que abandonou a obra e, por isso, sua função no mundo, além de ter abandonado também o próprio mundo. Mas como seguir alguém que não se mexe? Por que seguir alguém que deixou de importar e que, fantasias à parte, talvez nem tenha sido assim tão importante? Mas como não se deixar levar por fantasias, quando a realidade é uma grande traidora? Talvez a partir dessas constatações possamos nos aproximar da diferença, grande diferença, entre um conto clássico de Poe e um romance de Bolaño: Detetives procuram assassinos; escritores-detetives caçam fantasmas.

 

No best-seller 2666, tamanha busca pelo Vazio ganha contornos épicos: a desesperada caça de críticos pelos rastros de um escritor alemão desaparecido acaba se confundindo com o (real) genocídio de mulheres a ocorrer numa cidade industrial mexicana. Bolaño aproxima a autoria criminosa da autoria literária, ao mesmo tempo em que funde duas tragédias históricas (o horror da Segunda Guerra com os assassinatos em massa no México). O livro é ameaçador já pelo seu título, marcado por um milenarismo satânico. “Há livros que inspiram medo. Medo de verdade. Mais que livros, parecem bombas-relógio ou animais falsamente empalhados, dispostos a pular no seu pescoço, se você se descuidar”, apontou certa vez Bolaño, que parece ter escrito uma obra com a finalidade de entrar na categoria de “livros bombas-relógio”.

 

Gosto muito de um comentário que o escritor argentino Alan Pauls fez sobre 2666. Segundo ele, o romance estaria entre as “obras que inventam mundos e formas que só alguém que já não é deste mundo nem se reconhece nessas formas pode inventar. Obras afetadas, doentes, inconsoláveis, que não se encaixam de modo nenhum no mundo em que aparecem. Obras-zumbi a que sempre falta algo, ou que sempre têm algo a mais, um extra, um suplemento que as impede de se adaptar. Daí a unidade estranha, ao mesmo tempo poderosa e frágil, monumental e desajustada, de 2666. Daí o tom que perpassa todo o livro: essa modulação distante, como que velada, ao mesmo tempo fúnebre e feliz”.

 

Bolaño, o meu Bolaño, o Bolaño possível que acredito ter descoberto, é um autor que sabe que já não é mais possível encontrar o corpo ou o assassino, porque o crime talvez tenha prescrito. Seus personagens fingem procurar alguém, sabendo que, na verdade, o mais importante é saber como se perder da forma mais exemplar. Suas obras me lembram de uma passagem da crítica argentina Beatriz Sarlo, que tão bem soube apontar a incerteza sobre a qual somos hoje obrigados a caminhar: “A memória e os relatos de memória seriam uma ‘cura’ da alienação e da coisificação. Se já não é possível sustentar uma Verdade, florescem em contrapartida verdades subjetivas que afirmam saber aquilo que, até três décadas atrás, se considerava oculto pela ideologia ou submerso em processos pouco acessíveis à simples introspecção”.

 

DETETIVES POÉTICOS

Nste ano de efemérides, o Bolaño-poeta começa a emergir. O volume, reunindo boa parte da sua produção poética, La universidad desconocida, foi traduzido para o inglês. Bolaño começou sua carreira como poeta, em edições caseiras, que acabaram se perdendo com o tempo. Sua obra inicial foi escrita e publicada sob o signo do jovial movimento Infrarrealismo (1975-1977), fundado em parceria com Mario Santiago, na capital do México, durante o governo do presidente Luis Echeverría, que promoveu um incremento nas áreas de humanas das universidades, como forma de reatar a relação com os jovens, após a repressão do líder anterior, Gustavo Díaz Ordaz.

 

O Infrarrealismonão gerou qualquer obra significativa ou causou maior impacto durante seu período de vigência. Foi apenas um pedido de atenção, uma provocação, como costumam ser todos os manifestos. O seu argumento descartava a existência de qualquer cânone literário chileno ou latino-americano. A ilusão/função maior do “novo” é sempre prescindir do passado, assassiná-lo, realizar um parricídio. Numa passagem do manifesto infrarrealista, os autores proclamam que seus pares literários são simplesmente “os francoatiradores, os planeiros solitários que assolam os cafés dos mestiços da latino-américa, os massacrados em supermercados, em suas tremendas desjuntivas indivíduo-coletividade”.

 

O desejo de Bolaño em ser um investigador de polícia tem seu registro inicial justamente numa série de poemas sobre detetives, que, primeiro, apareceu no livro Los perros românticos(publicado pela primeira vez em 1998, mas reunindo textos dos anos 1980). Esses poemas, segundo o pesquisador Matias Ayala, seria o registro inicial do que compreendemos por um “estilo Bolaño de escrita”. “A série sobre detetives provavelmente é o melhor da poesia de Bolaño, formada por textos que combinam o imaginário da novela policial, delirio e terror”, destaca Ayala.

 

Publicamos, nesta edição, essa série de poemas sobre detetives, com tradução do músico, tradutor e escritor Rodrigo Garcia Lopes. Apesar da Companhia das Letras estar fazendo um ótimo trabalho em publicar Bolaño no Brasil, sua obra poética continua inédita por aqui.

 

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