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“É um livro esse que o doutor Goebbels mandaria, certamente, queimar no meio da rua, de cambulhada com as obras de Ludwig, de Thomas Mann, de Remarque e de todos os grandes heresiarcas do nacional-socialismo”. Foi assim, de modo provocativo, que Zeno, pseudônimo de Aníbal Fernandes, saudou, em 6 de fevereiro de 1934, o lançamento de Casa-grande & senzala, no jornal O Estado(Recife). A obra de Freyre saíra em dezembro de 1933 e a noite das fogueiras, aludida pelo jornalista, acontecera em 10 de maio daquele mesmo ano. Fora promovida pelo ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels, quatro meses depois que Hitler chegara ao poder (30 de janeiro de 1933).
As palavras de Aníbal Fernandes explicitavam os motivos que levariam Goebbels a queimar o livro de Freyre: a eugenia, que vinha pautando a ciência desde a segunda metade do século 19, se tornara, agora, política de Estado na Alemanha nazista. Casa-grande & senzala caminhava no sentido inverso: exaltava a miscigenação como a grande contribuição da sociedade brasileira para a civilização moderna. No dizer de Evaldo Cabral de Mello, Freyre transformou “a miscigenação de hipoteca em lucro”. Foi o seu “ovo de Colombo”. Aníbal Fernandes foi também profético sobre qual destino caberia ao livro, caso o Brasil caísse nas mãos dos nazistas. Em Pernambuco, fascistas congregados em torno das revistas Fronteiras (fundada em 1932, de orientação católica, e que reivindicava “para si o direito supremo de ser intolerante; mesmo que corra o risco de ser intolerável”) e Tradição (criada em 1937, de direção monarquista e reacionária) condenaram a obra de Freyre e tentaram promover um auto-de-fé. Neste, exemplares do livro seriam queimados e, com eles, por sugestão do pintor Vicente do Rego Monteiro (editor de Fronteiras a partir de dezembro de 1935), o seu próprio autor.
Talvez por ser uma obra “sempre assentada na melhor documentação”, como observaria décadas depois Darcy Ribeiro, ou pela impressionante capacidade de Freyre alinhavar uma imensa gama de informações e extrair delas análises e interpretações extremamente sofisticadas, o fato é que as teses contra as teorias eugênicas defendidas em Casa-grande & senzala promoveram o ódio dos fascistas tupiniquins. Acrescentem-se ainda, como um tempero a mais, as suas análises e interpretações materialistas da formação brasileira e, por decorrência, a relativização dos valores espirituais e morais. Um bom exemplo dessas críticas é o que Miguel Reale, um dos ideólogos da Ação Integralista Brasileira (AIB), publicou no jornal Ação (São Paulo), órgão da AIB, em 16 de outubro de 1936. Neste, dois reparos “essenciais” ao livro de Freyre. Um, a sua falta de “um conhecimento direto do Brasil meridional”. Outro, por ele escrever “sob a influência de uma filosofia naturalista e mesmo materialista, filosofia claudicante e medíocre, sobretudo porque se esconde sob o manto protetor do mais pretensioso dos ‘cientificismos’”. No caso, a antropologia e a sociologia.
Além desses senões à abordagem materialista, à valorização da miscigenação, ao relativismo moral e religioso, e também, como notou Cid Rebello Horta, na Folha de Minas, em 2 de setembro de 1943, à onda de “afromania” surgida no Brasil depois da publicação de Casa-grande & senzala, vemos outros senões pontuarem a fortuna crítica do livro nos anos 1930 e 1940. A particularidade desses senões é que eles se encontram em artigos favoráveis a Freyre. São restrições a determinados pontos da obra; restrições que, com o passar dos anos, foram, pouco a pouco, sendo vistas como pontos positivos, como pioneirismos no campo das ciências sociais e humanas.
Vejamos três exemplos desses senões: quanto à língua, ao método e ao título.
Em artigo de 28 de janeiro de 1934, em O Jornal (Rio de Janeiro), Agripino Grieco faz ressalvas aos “termos crus” encontrados em Casa-grande & senzala, termos que “aranham ouvidos castos, e, a rigor, seria bem melhor que não viesse”. Duas semanas depois, em 15 de fevereiro, no mesmo periódico, Afonso Arinos de Melo Franco reitera a tese de Grieco e defende que a “linguagem” do livro de Freyre dispensaria os termos chulos, impuros e anedóticos: “devia ter um pouco mais de dignidade”. Ainda na mesma linha de raciocínio, lemos, no Boletim de Ariel (dez. de 1934), V. de Miranda Reis criticar as palavras “chulas” empregadas por Freyre e o fato dele querer trazer para a escrita a forma da linguagem falada, aderindo “à tolice de alguns gramáticos, logo aproveitada e explorada pelos que não sabem escrever”.
Ainda no mesmo artigo de O Jornal, Afonso Arinos de Melo Franco faz restrição a um aspecto metodológico de Casa-grande & senzala: a ausência de conclusão — “ao livro de Gilberto faltam dois ou três capítulos finais de síntese sociológica e de conclusões políticas”. Sua crítica corroborava a sentença dada por João Ribeiro, no Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), em 31 de janeiro de 1934. Nesta, o crítico sergipano dizia que Freyre era um autor que não sabia acabar, que “as paredes [da sua obra] esboçam uma cúpula que não existe. Convergem para a abóbada que fica incompleta e imaginaria”.
Por fim, fechando o ciclo dos senões, Roquette-Pinto, no Boletim de Ariel (fev. de 1934), afirma que não gostara do título Casa-grande & senzala, mesmo a considerando uma obra que nascera clássica. O título lhe dava a impressão de que as interpenetrações cultural e racial no Brasil tinham se dado entre a casa-grande e a senzala, quando, para ele, tais interpenetrações se deram entre os brancos da casa-grande e os negros que nela serviam.
Mesmo em um País que sempre foi afeito às modas intelectuais, como é o Brasil, onde ideias frescas provocam entusiasmos na mesma intensidade com que serão, em futuro próximo, substituídas por outras novidades clamorosas, a chave para se ler o novo ainda se fiava (se fia) em um modelo intelectual assentado. No caso brasileiro, um desses modelos, no que diz respeito ao uso da língua, era, nos anos 1930, o gosto bacharelesco pela frase redonda, pela retórica vazia, pelos ouropéis, pela palavra preciosa. Para o Brasil que se inscrevia nessa década — a de 1930 —, Os sertões, de Euclides da Cunha, ainda era o maior monumento intelectual dos últimos 30 anos. Ler a obra de Freyre tomando a de Euclides como chave, revelava não apenas o abismo teórico-metodológico entre os dois livros, mas o quanto, no campo da linguagem, a obra de Freyre era o extremo oposto da de Euclides. Se a obra de Euclides era, entre os livros da sua geração, o ponto alto do purismo e da retórica aplicados a uma obra de ciência, a obra de Freyre inscreve nessa mesma ciência uma das grandes conquistas estéticas da literatura dos anos 1920: o coloquialismo. Assim, o que os seus críticos chamavam de palavras “chulas”, “impuras”, “anedóticas” e “tolice de alguns gramáticos” eram, na verdade, a inversão das regras do “bom gosto” e do “bem escrever” até então predominantes. Ao invés de continuar se subordinando às amarras de uma língua petrificada (antes do papel do que da rua), Freyre, agora, em sua busca por uma linguagem mais plástica e pedestre, sujeitava aos seus ditames a língua pátria. E a subjugava de três maneiras:
Primeiro, trazendo para Casa-grande & senzala o que defendera e praticara nos seus artigos de imprensa nos anos 1920 e, particularmente, no jornal A Província (Recife), quando assumira a sua direção, em 1928: trocar a retórica bacharelesca das redações por palavras de fácil compreensão. Assim, “pai” e “mãe” substituem, respectivamente, “genitor” e “genitora”; “morrer” no lugar de “desaparecer objetivamente”; em vez de “acamar”, “estar doente”; de “pavoroso”, “incêndio”; de “empreendedor”, “industrial”; de “honrado”, “negociante”; de “ilustre causídico do nosso foro”, “advogado” etc.
Segundo, ao trocar a retórica bacharelesca por uma linguagem plasticamente mais próxima daquela das ruas, Freyre não hesita em dizer com todos os “ff” e “rr“ que desbocados da colônia juravam “pelo ‘pentelho da virgem’”; que cristãos-novos metiam “crucifixos por baixo do corpo das mulheres no momento da cópula ou deitando-se nos urinóis”; ou mesmo que “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão”. Não media palavras, nem se valia de eufemismos, para afirmar que senhores mandavam “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”; ou que sinhás-moças “mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco”; ou ainda que baronesas “espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas”. Não só: quando vencido na batalha, o índio era amarrado pelos portugueses “à boca de peças de artilharia que, disparando, ‘semeavam a grandes distâncias os membros dilacerados’”; ou amarravam-no “a duas canoas, correndo estas, à força de remos, em direções contrárias até partir-se em dois o corpo do supliciado”.
Terceiro, o uso da língua como meio de expressar, a partir da realidade em estudo, as suas vivências interiores. Essa valorização pelo ato de exprimir-se, Freyre foi encontrar na linguagem expressionista. Por meio dela, ele buscou ultrapassar as fronteiras entre o sujeito e o objeto de estudo.
O fato é que a linguagem expressionista em Freyre não se limita apenas ao ato de valorizar a expressão, mas, ao seu modo, termina por ser parte do seu próprio método. Se uma das características do expressionismo é uma “tendência para o hermetismo e o alogicismo, uma vez que o mundo interior é alógico e marcado por obscuridades” (Domício Proença Filho), ao tomar a decisão de nunca concluir os seus livros, Freyre estava dizendo que, diverso do que defendia o velho cientificismo dos oitocentos (o mesmo que calçara Os sertões: o positivismo, o evolucionismo social e o determinismo), as manifestações do humano não se reduzem a nenhuma teoria, e que nada é mais inconclusivo do que o conhecimento produzido por aqueles que tentam apreender o humano. Ao proceder dessa maneira, Freyre não só encerra a sua obra em um work in progress, como se afasta tanto do cientificismo quanto do que ainda existia de positivismo nos estudos etnográficos que aprendera na faculdade de antropologia. Desse modo, ele termina por relativizar tanto os estudos de campo quanto os de gabinete (as macroexplicações). Ambos, agora, serão contrapostos ou submetidos às vivências interiores e expressionais do cientista social. Estranho é observar que esse caminho trilhado por Freyre o faz um cientista muito mais próximo do nosso tempo (tempo em que se discute se a realidade é passível de ser desvelada por este ou aquele método ou teoria) do que do seu.
Por fim, e apesar de ser um título que desgostava Roquette-Pinto, Casa-grande & senzala terminou por se alinhar às fileiras daquelas raras obras que, pela força das teses que encerram, terminam por se transformar em adjetivos (como quixotesco, hamletiano, bovarismo, macunaímico). O livro de Freyre tornou-se sinônimo das dicotomias sociais e dos antagonismos que se perpetuam na nossa sociedade, frutos, segundo ele, da “tradição conservadora no Brasil [que] sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas — a da Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia — é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos”. Assim, por traz do adjetivo Casa-grande & senzala, esconde-se o espírito patrimonialista; o direito individual em detrimento do coletivo; as relações de mandonismo entre patrões e empregados; o equilíbrio dos opostos; a banalização da violência; o antagonismo entre a casa e a rua; a ausência de consciência de classe.
Apesar de todos os senões recolhidos por Casa-grande & senzala nas décadas de 1930 e 1940, não concluiremos este artigo sem atentarmos para um dos seus pioneirismos mais importantes (desapercebido dos seus contemporâneos e dos críticos venturos): o de encerrar uma “História da sociedade patriarcal no Brasil” não pelo método econômico, político ou historiográfico e, sim, pelo antropológico. Se a economia, a política e a historiografia estão presentes em Casa-Grande & Senzala, estão como conhecimentos subsidiários e não como teorias ou métodos. Assim, da economia interessa a Freyre antes a “influência considerável, embora nem sempre preponderante, da técnica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades”, do que os aspectos monetários ou os números das riquezas produzidos pela Colônia. Da política, seu foco é antes a política de Estado e seus reflexos na organização social (a segregação indígena, a língua geral, a catequese jesuíta, o degredo como mecanismo colonizador) do que a política de governo, partidária, comezinha.
No caso da historiografia, a ponta do lápis é um pouco mais fina. E aqui vale uma pergunta: por que a fortuna crítica da obra, escrita, em grande parte, por historiadores e críticos literários, não observou que Freyre abordava os primeiros três séculos da formação social do Brasil antes pelo método sincrônico do que pelo diacrônico (histórico)? Temos duas hipóteses. A primeira, é que a antropologia moderna, inaugurada por Franz Boas, era uma área do conhecimento de pouca ou nenhuma familiaridade entre os nossos intelectuais (salvo algumas raríssimas exceções). A antropologia predominante à época era a evolucionista, de raízes oitocentistas. Segundo, talvez a crítica tenha ficado prisioneira (ou se deixou aprisionar) do título que batizava a tetralogia prometida: “História da sociedade patriarcal no Brasil”.
Diverso do método historiográfico, Freyre passa de um fato ocorrido na primeira metade do século 16 para outro do final dos setecentos, e, não raras vezes, se vale de uma documentação referente ao século 19 para explicar fenômenos sociais dos séculos anteriores. Temos aí o método sincrônico da antropologia cultural aprendido nos livros de Boas e aplicado à nossa formação social. Por ter nascido nos estudos das sociedades ágrafas, o método é descritivo. Isso, segundo Evaldo Cabral de Mello, deu à antropologia a habilidade de “reconstruir as estruturas, no sentido de imbricação dos vários níveis sociais, dessas sociedades, com um êxito de dar água na boca às demais ciências sociais, cujos métodos haviam sido até então os métodos diacrônicos convencionalmente encarados como os próprios às sociedades históricas. A originalidade metodológica de Gilberto residiu em aplicar no estudo de uma sociedade histórica, a brasileira, a perspectiva sincrônica da nova antropologia”.
“Originalidade metodológica” à parte, assim como a crítica dos anos 1930 leu a linguagem de Freyre tomando Os sertõescomo modelo, o seu método continuou sendo lido pelos críticos pós-1930 dentro da nossa velha tradição de abordar sempre o passado e o presente brasileiros a partir da chave historiográfica ou da historiografia política e econômica. Isso levou Casa-grande & senzalae, por decorrência, as demais obras escritas por Freyre, a serem, dentro do conjunto das interpretações do Brasil, as que mais provocam ruídos, deslocamentos e controvérsias. Seja entre os marxistas, seja entre os weberianos e liberais. Talvez esteja aí o viço que faz com que oito décadas depois a sua obra continue, apesar de todos os senõesque acumulou e continua a acumular, a ser uma das mais inovadoras do século passado (tanto na metodologia quanto no campo da linguagem) e que, como todo clássico, continue a nos ajudar a pensar o nosso passado e a nossa contemporaneidade. Afinal, não é todo dia que uma obra não literária tem o seu título — título mais do que substantivo — transformado em adjetivo de uma sociedade histórica, sociedade esta que ele, Freyre, considerava a maior dentre as civilizações surgidas nos trópicos.
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