No final de 2009, chamou atenção um inusitado romance sobre morte e linguagem, protagonizado por um ser incorpóreo: ao longo de 156 breves capítulos, o narrador buscava dar conta da morte através da linguagem — enquanto habitava um lugar de passagem, à espera de um corpo. A mesma equação de originalidade, ensaísmo, humor e boa história reaparece agora em A cidade, o inquisidor e os ordinários(Companhia das Letras), novo livro do mineiro Carlos de Brito Mello. Aqui, temas como moral e religião habitam a cidade em questão, sob o constante julgamento de um inquisidor. Ao condenar a falência da sociedade, esta voz que se faz lei conta com toda uma trupe de personagens — os ordinários — pronta a apontar o dedo em prol do decoro.
Tanto o narrador do novo livro como o de A passagem tensa dos corpos (Companhia das Letras, 2009) se creem superiores: são seres que observam a imundície da humanidade e esperam ordená-la. No entanto, eles se mostram extremamente ordinários em seus medos, ambições, taras e dúvidas — talvez resida aí, enquanto rimos destas fraquezas humanas e nos deparamos com suas crises, o principal elemento dos livros de Brito e Mello, a perturbação.
Nascido em Belo Horizonte, em 1974, o autor estreou na literatura em 2007 com o livro de contos O cadáver ri dos seus despojos (Scriptum), em que também tinha a morte como tema principal e no qual já buscava a integração entre forma e história. Nesta entrevista, Brito e Mello fala da articulação entre esses elementos, discute os temas do novo livro e a dose de ficção na existência de todo dia.
Em seu novo livro, um inquisidor percorre a cidade investigando e condenando os cidadãos. Em A passagem tensa dos corpos, um ser incorpóreo ronda a casa de um defunto insepulto. Apesar dos temas “pesados” — morte, religião, moral —, eles contêm muito humor. Como se dá a escolha dos temas e o uso do humor?
Esses temas são muito importantes para mim: a morte, a moral, o corpo, a desilusão... Fazem parte de questionamentos permanentes, configuram estados de crise, de insatisfeita indagação. Neles, o humor aparece de maneira não programada (não escrevo com o objetivo de ser engraçado), mas ligado, acho eu, ao indisfarçável ridículo, à bisonhice, ao estabanamento do viver, que nem os grandes propósitos nem as gloriosas realizações culturais conseguem eliminar.
A cidade, o inquisidor e os ordinários critica os costumes, a suposta moral da sociedade, o controle que exercemos uns sobre os outros, a perda do livre-arbítrio e da identidade. A crítica à sociedade estava entre seus objetivos iniciais? Como equilibra as ideias e a história que deseja contar?
A abordagem de determinadas questões estava prevista desde o início do projeto, sobretudo com relação à dimensão política e religiosa da vida social. Mas a crítica que o livro traz conformou-se durante a escrita, articulada ao desenvolvimento da trama. Não desejei que os personagens e os acontecimentos se tornassem simplesmente a aplicação de determinadas formulações de natureza mais conceitual ou de uma visão de mundo previamente estabelecida. A crítica pertence à narrativa, valendo-se das mesmas forças que movem a história a ser contada, e as diversas vozes que ali se manifestam produzem igualmente destinos, impasses, crises e falência.
No livro, cuja história não sabemos onde se passa, não só o Decoroso impõe sua lei, mas todos os cidadãos atuam como inquisidores, a observar, denunciar e julgar o comportamento alheio. Na vida real, de onde vem essa atitude, se vivemos sob a lei de um Estado por definição laico e democrático?
Essa definição de Estado não observa ou contempla os incontáveis modos de vida — uns, libertadores, outros, pérfidos — que se controem no seu interior, em suas imprevisíveis esferas informais, nos seus interstícios, nas suas dobras. Somos, com muita frequência, invejosos e mesquinhos, vigilantes incansáveis da vida alheia, somos juízes impiedosos das atitudes dos que nos cercam, sejam eles nossos vizinhos ou colegas de trabalho, nossos parentes mais diletos ou ocasionais personalidades de programas televisivos. Clandestinamente, nossas inquisições se estabelecem em nossas salas de estar, quartos, cozinhas e escritórios. Somos peritos em armar uma fogueira punitiva, desde que sejam os outros os queimados, e nos apresentamos bastante prontos a reagir como imbecis às coisas que nos contrariam.
Em uma entrevista, você afirmou que iniciou A cidade com referências realistas — a história deveria se passar em Belo Horizonte, por exemplo. Por que isso lhe pareceu artificial e foi modificado?
Ajustar a narrativa a uma realidade exterior — já, pelo menos em parte, conhecida —, como considerei durante algum tempo enquanto escrevia A cidade, o inquisidor e os ordinários, me forçava a um determinado tipo de relação com o texto que mais me prendeu do que me ofereceu alternativas. As referências a ruas e praças reais mostraram-se avulsas e, a partir de certo momento, dispensáveis. Além de não convencer como parte significativa da história que eu buscava contar, elas me traziam indesejável familiaridade, justo numa hora em que eu estava buscando — para mim mesmo, ao escrever — estranhamento.
Originalidade e inovação são características associadas à sua obra. Qual a importância delas para a sua escrita?
Para mim, a obra é, entre outras coisas, uma maneira de investigar as potências da escrita. Não perco isso de vista, pelo contrário, essa dimensão do trabalho literário é uma das forças que me ligam ao texto. Se essa investigação, ao fim de determinado tempo, resultar em algo original e inovador, ótimo. Mas tenho dificuldade em fazer, eu mesmo, essa avaliação, sobretudo quando ainda estou tão próximo do livro recentemente publicado. Acredito que cada obra coloque em questão, quando iniciada, sua própria configuração. Mas, também nesse caso, a narrativa é condutora de todo o processo e apresentará, cedo ou tarde, suas alternativas e exigências.
A única personagem que se faz livre do julgamento do Decoroso, ainda que esteja sob seu escrutínio, não pode ser definida, é imprevisível: a Impostora: “Não existe melhor disfarce do que ser exatamente como se é”. Os demais não agem a não ser no escopo dos seus deveres e direitos, cumprindo papéis pré-determinados. A sociedade está padronizada? É possível ser “exatamente como se é”?
A sociedade se vale de uma série de padrões para se constituir e se manter. O padrão não é, necessariamente, uma coisa ruim: não seria possível supor a existência de uma comunidade, por exemplo, sem um conjunto de acordos padronizados — que devem ter estatuto de lei — entre seus indivíduos. Logo, a lei deve — ou deveria — ter uma dimensão comum, e não discriminatória (para ele, sim; para aquele, não; em favor deste, sim; em favor daquele, não), empregada como instrumento de coação de um grupo sobre outro, como ocorre com frequência. Por outro lado, a lei não pode ser de tal modo instituída que venha a substituir a voz de alguém. Quando um indivíduo se omite em favor de um padrão que fale por ele, em nome dele, às costas dele, oferecendo-lhe uma determinação na qual ele possa descansar, acomodado e resignado, de ser um sujeito crítico e participativo, temos um grave problema.
Quanto a “ser exatamente como se é”, o que a Impostora coloca é um problema cujo encaminhamento ocorre em âmbito bastante pessoal. Entramos, aí, no campo das ficções individuais, aquelas que nos tornam quem a gente é, seja isso o que for. Na minha opinião, nesse terreno, seria esperto de nossa parte deixar para lá as supostas essências ou a busca pelas imaginárias verdades incontestáveis do ser. Talvez “ser exatamente o que se é” seja o mais ficcional dos modos de existir, e só possa ser formulado a partir da equivocidade, da ambiguidade e da mentira.
Não é mais a religião, mas uma moral que se impõe como lei e forma de união para as pessoas em A cidade. Ela se mostra, entretanto, tão falha quanto o Decoroso acredita ser Deus, ao mesmo tempo em que procura provas de sua existência, num impasse entre busca e negação da fé. Há um substituto para a religião?
Já se apostou no fim — ou, pelo menos, na diminuição da importância — da religião nas sociedades. Não parece que isso tenha acontecido, nem que esteja próximo de acontecer. A religião já surge, em parte, como uma forma de substituição, seja do amor, seja do terror, via culpa (embora seja sempre necessário lembrar que as religiões variem entre si e que muitos indivíduos mantenham relações variadas e inventivas com suas próprias crenças, formuladas de maneira mestiça e original, como se fossem interessantes ficções). Mas é possível construir formas de existência individual e coletiva que tornem a experiência religiosa menos invasiva ou totalizadora, e desvinculada, se possível, do oportunismo político. Acredito, entretanto, que, para isso, cada pessoa tenha de aprender a lidar melhor com parte de seu próprio desamparo — e suportá-lo, pelo menos um pouco, sem precisar recorrer tão prontamente a um papai-todo-poderoso ou a uma mamãe-cheia-de-graça.
Em A passagem tensa dos corpos, a palavra não dá conta do tema central, a morte, e seu narrador, um ser em forma de língua, desiste da linguagem, voltando-se para um corpo como forma de afirmar sua existência. No novo livro, a inquisição usa a palavra para “salvar a humanidade” — apregoa, denuncia, invoca, confessa —, mas no final se vê dependendo “tanto, quase somente, daquilo que pode nosso esfíncter, adiando, enquanto conseguirmos, o nosso desfazimento”. O que você espera da palavra?
Eu espero muito da palavra. Espero que ela torne possível o amor. Mas também espero que ela nos traga um pouco de destruição e que nos possibilite, com isso, abertura. Espero que a palavra, muitas vezes, fracasse. Espero que, noutras vezes, ela dê conta de se sustentar. Eu espero que se apresente quem a utilizar. Espero mentiras e verdades. Espero, com a palavra, vinho, corpo e alegria. Eu espero que ela mantenha o Kafka, entre outros, a circular entre nós. E espero, claro, escrevê-la muitas vezes nos próximos livros.
Para o Decoroso, são tristes tempos os que vivemos, de cidadãos ordinários e bobos sem moral que, para além do ambiente privado, infectam e destroem a cidade. Qual é o seu julgamento e a sua sentença?
Sou leal aos meus personagens, sou um homem ordinário. Quando chegar a hora de ir para o matadouro, tentarei fazer como diz o Torquato Neto: berrar.