Barreira é talvez uma palavra universal, com grafia e pronúncia semelhantes em diversos idiomas (barriere, barrera, baryè, bariéra etc.), conta Amílcar Bettega Barbosa. E nos diz que também são universais as barreiras presentes no seu primeiro romance, Barreira, sejam elas as impostas pela palavra (ou por sua ausência), pela distância, pelas gerações, culturas, ideias de representação do real. Ou mesmo a barreira “entre o livro que se quer escrever e aquele que se consegue escrever”, como diz o escritor, hoje residente em Pequim. Não sei qual livro pretendia Amílcar, mas sei do livro Barreira, que arrisco definir como uma escultura literária, feita sobretudo por sua forma e por seus espaços vazios. Ou como 253 páginas preenchidas com o fracasso da palavra, ou com o “ressabio do fracasso” para citar uma de suas epígrafes. O certo é que este livro que o autor acha “que pede certa parceria do leitor, no sentido de que nem sempre a leitura vai ser fluida, prazerosa, que às vezes ele, o leitor, pode até ser tentado a largar o livro” ou que é “imperfeito, bastante imperfeito, com alguns excessos de um lado e lacunas de outro”, trata-se de um dos grandes romances brasileiros de 2013, que merece ser analisado além da coleção Amores Expressos, que permite diversas e intensas leituras. E motivou a seguinte conversa com o autor.
Nota de rodapé: este é um papo entre dois gaúchos, prepare-se para ler “tu foi”, “tu fez”, “tu escreveu” etc.
Em Barreira, surgem vários níveis de clichês: do turismo (e guias de viagem), das artes plásticas (e sua crítica), contracapas de romances etc. Acha que os dias de hoje são regidos por falas vazias de sentido e automatizadas?
Só não sei dizer se isto é privilégio do nosso tempo. Talvez haja uma acentuação disso agora, não sei. Tenho a impressão que a fala vazia, o bla-blá mecânico, a repetição de clichês, faz parte da nossa, por vezes patética e quase sempre fracassada, maneira de (tentar) comunicar. Para dar um exemplo não muito longe no tempo, Beckett fez desse tema a sua obra (estupenda). Claro que sem a genialidade de Beckett, e à minha maneira, falo disso também no Barreira. A “barreira” na comunicação é uma questão presente no livro inteiro, um dos seus pilares.
Agora, é importante ter em conta que o clichê está sempre baseado em um fundo de verdade, ou de realidade; o problema é quando esse “fundo real” se cristaliza (e justamente vira clichê), como se fosse uma parede, e impede de ver a realidade que continua a se mover por trás. Porque a realidade não é fixa, aliás, toda a tentativa de retratá-la, como um romance, ou um filme ou uma fotografia, tem que levar em conta essa mobilidade.
Mais uma coisa sobre clichês: apesar da nossa crítica, eles fazem parte de uma espécie de estratégia de comunicação, são usados, por exemplo, para preencher silêncios que, se intransponíveis, poderiam pôr fim a uma comunicação que, levada adiante dessa forma, até pode chegar a avançar sobre bases mais autênticas depois. Também servem de terreno comum quando os interlocutores são totalmente desconhecidos, podem servir como espaço de aproximação.
Em 2012, te perguntei “E o título do livro?”. Lembro que tu contou a história que envolve a palavra “barreira”. Pode falar sobre isso?
“Bariera”, assim mesmo, em polonês, é o título do filme que o personagem assiste no final e que lhe permite uma espécie de insight. A descrição que lá está corresponde exatamente às cenas do filme. Ele me marcou justamente porque, quando assisti, praticamente não li as legendas, pareceram totalmente acessórias, até prejudiciais. É um filme tão plástico, imagético, tão bonito nisso, que as palavras ali, pareceu-me, estragavam. Mais tarde, li uma entrevista do Jerzy Skolimowski, diretor do filme, onde ele diz mais ou menos isso, que queria fazer um filme que não sendo mudo, prescindisse das palavras. Como acho que problematizo essa questão da palavra no livro, achei pertinente trazer esse filme pra dentro. Além disso, só por curiosidade, a palavra “barreira” mantém o seu radical em várias línguas, como pude constatar depois. Todo mundo diz “barreira” mais ou menos do mesmo jeito.
Me parece que na estrutura circular, de recorrências, cenas que se repetem por outros ângulos, Barreira(embora romance) traz ecos de Os lados do círculo(embora contos). Consegue ver isso?
Sim. Sou fascinado por narrativas circulares, recorrências, repetições. Não saberia explicar bem o porquê. E essa estrutura circular acaba acontecendo meio naturalmente quando escrevo, seja nos contos ou, agora, neste romance. Nos contos, a estrutura circular, ou uma ideia de circularidade, é ainda mais natural, acho, porque o conto traz um pouco isso embutido no próprio DNA do gênero, é uma das suas características. De uma forma ou de outra o final de um conto sempre acaba remetendo para o seu início.
Robert diz “Mudavam as cidades, mas o que eu via eram sempre as mesmas coisas”. Tu já viveu em Porto Alegre, interior do RS, Paris, Lisboa, agora está em Pequim. E já contou que caminha muito pelas cidades. Também vê as mesmas coisas, ou acha que as pessoas em geral estão anestesiadas com “familiaridades postiças”?
Evidente que hoje em dia, com a “diminuição” das distâncias geográficas, a circulação da comunicação, tudo está muito uniformizado, inclusive as cidades, ainda que isso funcione muito na fachada. Alguém me disse esses dias que um livro tem seu próprio tempo de resposta. Acho que isso se aplica também às cidades. Não é passando uma semana percorrendo os pontos indicados pelo seu guia que você vai conhecer uma cidade. Ela tem o seu tempo, exige esse tempo para começar a te dizer alguma coisa. E não se trata nem de conhecer aqueles lugares que não estão nos guias, que “só locais conhecem” (aliás, os guias já trazem seções só com estes lugares). Trata-se de sentir como seus habitantes se movem lá dentro, como usam a cidade, seus espaços, sua geografia, sua luz etc.
Barreira está longe de ser policial, mas por vezes, nos mistérios, buscas e investigações, faz lembrar livros sobre detetives. E em Os lados do círculo há contos que passam perto do gênero. Tu é leitor de policiais?
É verdade, me dei conta desta levada policial quando escrevia a terceira parte, quando Robert volta a Istambul e se vê no rastro dessa figura volátil de Ahmet. E concordo que em Os lados do círculo aparecem alguns contos com esse “ar” policial. Mas a verdade é que não leio, nem nunca li policiais. Não me atrai muito essa coisa de ler para descobrir quem é o assassino. Claro que faço aqui uma baita generalização, mas muito do gênero polical passa por aí. Por outro lado, há aquilo que o Piglia (acho que é ele) diz: mais ou menos, seria que toda narrativa ficcional funciona em uma estrutura próxima da de um inquérito policial, a linguagem literária assemelhando-se a uma linguagem cifrada que constrói o texto como uma série de pistas deixadas pelo autor a um desconhecido leitor que, interpretando e relacionando as pistas entre si, poderá clarificar pelo menos algumas das zonas de sombra do texto, extraindo-lhe sentidos. Seria como decifrar uma mensagem após longo estudo dos indícios.
Tu tem três livros de contos. Barreira é o primeiro romance. A impressão, pela estrutura não convencional, pelos riscos narrativos que tu corre, é de que tu te sentiu confortável fora dos contos. Foi assim?
Sim. Apesar de ter sido difícil a mudança dessa prática do conto, a qual eu já estava habituado e até meio viciado, a partir do momento em que comecei a avançar no texto, me senti muito à vontade. Acho que porque o romance oferece uma liberdade muito grande, muito maior do que o conto, que é um gênero mais rigoroso, inclusive no que diz respeito à sua forma. Se tu estiver disposto a deixar de lado a estradinha bem asfaltadinha e segura das narrativas convencionais, o romance oferece uma elasticidade incrível.
Barreira integra tua tese de doutorado em Escrita Criativa (PUCRS, cotutela com Sorbonne Nouvelle – Paris III). A estrutura lacunar, a variação da voz do mesmo narrador na primeira parte, o mais (muito mais) perguntar do que oferecer possiblidades de resposta, o questionamento do lugar comum, entre outros aspectos, trazem em si uma ideia de crítica ou reflexão literária sobre limites e forma do romance?
Se há reflexão sobre a forma do romance, é consequência. O fato de o livro fazer parte da minha tese em Escrita Criativa não quer dizer que foi pensado nos termos da teoria literária ou para se enquadrar em um trabalho acadêmico. Está totalmente desvinculado disso. Tanto que o ensaio que acompanha a ficção na minha tese não tem o Barreira como tema. É algo que aborda a formação do escritor, relação entre leitura e escrita, oficinas literárias, e também a escrita de contos e romances, mas sem nunca entrar em uma análise dos mecanismos adotados no Barrreira. Por outro lado, parece-me impossível escrever sem pensar na forma, sem questioná-la a todo momento. É isso que dá o caráter estético ou literário (no bom sentido da palvra) à coisa. Costumo dizer que literatura é forma. E entendo por forma a linguagem, a manipulação de elementos da linguagem e de elementos da narrativa de maneira a construir um universo único e autônomo e, esteticamente, intrigante. A expressão literária é estética, antes de ser de ideias. Não é a historinha que interessa.
Poucas cidades se prestam tanto ao clichê quanto Istambul, e tu diz isso no livro. E, em um mês, creio ser impossível superar os chavões da cidade. Criar personagens com olhar estrangeiro sobre a cidade foi estratégia para, mais do que evitar o risco do clichê, utilizá-lo a favor da narrativa?
As duas coisas. Em certo momento, vi que não tinha saída: não tinha como falar desde o ponto de vista de um turco que viveu a vida inteira em Istambul, impossível, o ponto de vista tinha de ser do estrangeiro que sou. E, como estrangeiro, também era impossível não passar pelos clichês. Fatalmente apareceriam. Então pensei neste autor de guias de viagens, pois não há mais forte reprodutor de clichês do que a indústria do turismo, sobretudo o turismo de massa, do qual os guias de viagem que a gente compra em aeroportos e megalivrarias são um dos produtos. Foi a maneira que encontrei para trazer o clichê, inevitável no caso, para o meu lado.
Escrever é também impor barreiras ao leitor?
As barreiras estão aí para o escritor e para o leitor. O importante é fazer a viagem juntos, é o trajeto, não importa se todas as barreiras serão ultrapassadas.