Foto por Francisco Perosa/Divulgação

Apesar de escrever ficção desde a adolescência, foi somente aos 41 anos que a paulistana Beatriz Bracher publicou seu primeiro livro, o romance Azul e dura (2002). Bracher conta que talvez lhe faltasse coragem para publicar, para considerar sua escrita parte de algo que tinha tamanha importância para ela, a literatura. Hoje, doze anos e cinco livros após sua estreia, a autora é considerada dona de uma voz perturbadora e intensa, e uma contista em permanente experimentação.

 

Ao passo em que seus personagens questionam a insuficiência da linguagem para dar conta de suas histórias e sentimentos, Bracher a explora, ao lado de diferentes formas e registros, justamente em resposta a esse desafio: “As formas narrativas diferentes que uso nos contos me possibilitam inventar histórias que só poderiam ser contadas dessa maneira”, explica sobre seu novo livro, Garimpo (Editora 34), que reúne contos escritos e publicados entre 2009 e 2012.

 

Na entrevista a seguir, a autora fala sobre seu processo de escrita, o trabalho como romancista e contista, narrativas cuja linguagem acompanha personagens fragmentados e em crise, e o novo livro, premiado ano passado pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

 

Garimpo”, conto que dá título à coletânea, é o diário de viagem de uma escritora a uma área de exploração de ouro no Pará, viagem que você mesma realizou. O que veio antes: a ideia para o texto ou a viagem? De que forma a experiência real afetou a escrita, e como a literatura afetou essa experiência?

Eu iria visitar esse garimpo antes de qualquer ideia literária, por motivos afetivos, como o da narradora do conto. Mas ficava sempre adiando a viagem. Então veio a possibilidade de uma encomenda para escrever um romance que se passaria em Belém. Foi o motivo que arrumei para me decidir a fazer a viagem, já iria conhecendo o Estado. O diário, que realmente fiz, tinha a intenção de anotar coisas para que me lembrasse mais tarde e, eventualmente, pudesse usar no tal romance. É um tipo de escrita muito diferente da que tenho nos diários que costumo a manter no meu dia a dia e nas viagens “comuns” que faço. Nesse sentido, o diário já nasceu não literário, mas como texto de trabalho. O tal romance não foi encomendado e, por outro lado, o editor da revista Granta me encomendou um conto. Estava envolvida na escrita de um roteiro, não podia parar, e queria atender a encomenda, pois admiro muito esta revista. Digitei todo o diário da viagem exatamente como o escrevi. Então acrescentei a introdução, ou seja, a morte da escritora. Apenas isso já mudava quase tudo. Depois suprimi alguns trechos, modifiquei outros, reli, reli, entendi o que havia de interessante ali dentro como literatura e fui mudando mais algumas poucas coisas. Diria que o fio principal tem a ver com o envolvimento dela, bastante perdido e sincero, com o irmão e a natureza. O tom de normalidade e ameaça, de familiaridade e estranheza. E o fato de sabermos que ela irá morrer paira sobre a leitura, por isso a modifica bastante. Essa ameaça e esse amor foram coisas que eu efetivamente vivi na minha visita, junto com muitas outras. Para a literatura, foi o veio que me pareceu mais interessante.

 

Você afirmou que considera o conto “mais elevado” que o romance, e que só foi capaz de escrevê-los quando sentiu que tinha um “treino maior, quase muscular, de escrever ficção”. Atualmente, que desafio o conto lhe coloca? Você se sente mais livre nesse gênero, onde a crítica aponta uma experimentação da linguagem e da forma mais forte em seu trabalho?

No conto, de fato, eu me sinto mais livre para experimentar, mas não necessariamente eu acerto mais. São trabalhos de linguagem completamente diferentes dos romances, que, do ponto de vista formal, se parecem bastante entre si. As formas narrativas diferentes que uso nos contos me possibilitam inventar histórias que só poderiam ser contadas dessa maneira, sinto como se fossem blocos mais compactos de narrativa, uma história mais “coisa”, e isso me agrada. Não consigo imaginar a história de um romance dessa maneira, que pedisse um formato assim “coisa”.

 

Os contos “Garimpo” e “Para um filme de amor” fornecem o mínimo acesso direto e descrição dos personagens; somos atraídos pelo que não está escrito: tentamos descobrir quem escreve o roteiro e com quem ela dialoga a partir do próprio esboço do roteiro, e quem seria a narradora de “Garimpo” através de suas anotações de viagem. Como trabalha a construção dos personagens no conto?

As personagens-narradoras dos contos “Garimpo” e “Para um filme de amor” são parecidas, poderiam ser até a mesma, ambas são mulheres e escritoras, não seria inverossímil se tivessem a mesma idade, parecem ter a mesma formação cultural e ser da mesma classe social. Isso tudo a gente consegue presumir pelas palavras que usam, a maneira como a narradora de “Para um filme...” se dirige ao diretor e como Adriana Mendes faz os registros em seu diário, em “Garimpo”. Apesar de estruturas narrativas muito diferentes, e uma se referir à montagem de um roteiro, ou seja, à criação de uma história de ficção, e a outra ser o registro de vivências pessoais, conseguimos descobrir várias características semelhantes entre essas mulheres que não estão ditas nos textos.

 

Mas eu não pensei nelas antes de escrever. Elas foram se formando a partir da história. Pois o que interessava aqui era menos a personagem da narradora e mais como a forma de contar a história e a história propriamente dita iriam se montando juntas. Contar a história, que é, também, o assunto desses contos, é um movimento envolvente em si mesmo, além da própria história. Queremos saber todos os elementos que compõem esse universo, pois tudo passa a ser personagem. Em um romance eu sei muito mais do personagem do que o que está escrito. Do personagem do conto eu sei muito menos do que o que está escrito. Mesmo assim, depois de escrito um romance, às vezes um leitor me conta uma coisa sobre um personagem que eu não sabia.

 

Uma das características mais comentadas sobre seus livros é a intensidade. Ao mesmo tempo, você destaca, do seu processo de escrita, a edição do texto. De que maneira emoção e intensidade se relacionam com o processo cerebral de edição?

Não penso que, para mim, a intensidade tenha a ver com espontaneidade, e sim com concentração. Normalmente acontece de a primeira escrita ser descuidada, e isso resulta em um texto pouco pessoal e muito social, daí sua falta de densidade, sua característica mais diluída, pois acredito que quando escrevemos envolvidos com nossas próprias histórias estamos ainda entregues às censuras e costumes da fala diária. No trabalho de edição é que consigo entender o que há de original, no sentido de específico, no que escrevi, e a partir desse fio desenvolvo a história que me interessa e que julgo ser interessante também para os outros. Para isso preciso estar como que “limpa” de toda espontaneidade, de todo sentimento de responsabilidade entre mim e o mundo, e me colocar frente à frente apenas com o próprio texto, o já escrito e o futuro.

 

A carta de amor de uma adolescente completamente apaixonada por seu namorado, tão apaixonada que se ele não responder em um dia ela talvez se mate, poderá ser, se lida sem que a gente conheça sua história, uma carta aguada, boba. Quer dizer, o que faz a intensidade da coisa escrita não é a história que a gerou, nem o estado do coração de quem a escreveu.

 

O trabalho de edição dos meus textos me é, em geral, mais prazeroso e exaustivo do que o da primeira escrita, sendo que, nesta segunda etapa, escrevo incomparavelmente menos do que escrevi antes. Prazeroso porque mais autoral, já tenho ideia de para onde estou indo, raramente tenho paradas longas sem saber o que estou fazendo, e exaustivo porque me envolvo muito, descubro do que trata aquele livro, às vezes são coisas difíceis para mim, fico emocionada.

 

Em determinado ponto de “O que não existe”, uma pesquisadora se dá conta de que não há nada a se decifrar, não há enigma nenhum nas fotografias que estuda para sua tese: “Os mistérios que ela possa criar naquele quarto serão dela e não da fotografia”. Seus contos, que frequentemente passam a sensação de que “não fecham” ou suprimem muito, operam como essas fotos, sendo “acionados” mais pelo que o leitor coloca neles (pelo que não existe) do que pela história em si? E o que dizer então da intenção do autor?

Acho que o interessante é o que não existia antes de o leitor ler aquela história ou ver aquela fotografia. Interessante para aquele leitor. Claro que uma história não contém infinitas possibilidades, dependendo do leitor. A leitura não é capaz de criar qualquer livro. Existe um campo que o livro delimita dentro do qual a arte irá acontecer quando for “apreciada”. Esse campo existe antes de qualquer leitor, está lá, pronto assim que o livro terminou de ser escrito, antes mesmo de ser impresso, ou surgir na tela. E nesse momento, quando ele terminou de ser escrito, a intenção do autor é letra morta, interessa ao biógrafo, ao historiador, ao amigo, mas, da maneira como eu entendo a criação que acontece no ato da leitura, a intenção do autor não interessa mais, morreu, é uma curiosidade.

 

E uma grande curiosidade. Ocorre-me agora um bruxo que quer transformar uma donzela em uma fonte, mas a transforma em uma ponte. A ponte não tem nada de líquido nem de cantante, passa sobre a água. O que importa a intenção de quem a transformou? O erro do bruxo é uma boa história, e quem gosta de literatura adora boas histórias, a intenção do autor é mais uma delas. Muito diferente do que o leitor faz. É como se o leitor, ao ler o livro, criasse a cada vez uma nova ponte. Ele jamais poderá criar uma fonte, e menos ainda libertar a donzela, somente e sempre criará uma ponte, mas ele será o seu criador, recriador, e sempre, da sua ponte, da qual a intenção do autor não terá mais nada a ver.

 

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