A primeira vez quefalei com Benjamin Moser ele estava em meio à divulgação da sua biografia de Clarice Lispector (1920-1977). Era então um momento limite, em que o escritor passava de pesquisador devotado para se tornar uma espécie de embaixador clariceano, monumento ambulante para a legião de seguidores dessa que permanece sendo um dos nomes mais enigmáticos da literatura mundial. Atualmente, o biógrafo norte-americano está às voltas com outra personalidade feminina chave para entendermos o século 20: Susan Sontag (1933-2004), objeto do seu próximo livro.
A pesquisa em torno da obra de Susan Sontag tem ajudado Moser a compreender a forma como os Estados Unidos tratam seus intelectuais. “A imagem que eu tenho dela é mesmo MUITO diferente da imagem que se teve nos Estados Unidos: da fria, arrogante, meio francesa Rainha-Imperatriz da Cultura. Os republicanos, que são a pior coisa que tem no nosso país, aproveitaram para atacá-la depois do 11 de setembro. Foi a primeira pessoa vítima desses ataques, mas não, infelizmente, a última. Aproveitaram para calar os nossos intelectuais mais importantes”, comentou o autor em entrevista por e-mail para o Pernambuco.
Nessa conversa, Moser falou de como anda a pesquisa para a biografia de Sontag, fala da relação sempre polêmica entre biógrafos e familiares dos seus objetos de pesquisa e da repercussão internacional da obra de Clarice, que sua biografia levou a suscitar.
No Brasil, tivemos há pouco uma confusa polêmica em relação às biografias, o que colocou em foco a expressão “biografia autorizada”, ou seja: as implicações por trás da palavra “autorizado”. A sua biografia de Susan Sontag, pelo que andei lendo, é uma biografia autorizada. O que a palavra “autorizada” quer dizer para você?
Neste caso, quer dizer uma coisa muito específica, que tenho a autorização de falar com quem eu quiser e de citar as obras da Sontag sem a interferência da família. Depois de ler a minha biografia de Clarice, eles entraram em contato para pedir que eu fizesse a de Sontag, pois fazia tempo que queriam encontrar um biógrafo. Mas os nossos contratos especificam que eu tenho liberdade total. O filho, por exemplo, tem o direito de ler e comentar o meu manuscrito — mas não de censurar. Isso é uma coisa bem diferente da que fiz com a Clarice (sem autorização, embora com a colaboração da família dela) e é uma coisa bem diferente do que se discutia no Brasil, onde a questão era se todo biografado tem que aprovar e até gostar de uma biografia antes da publicação. O filho da Susan não é burro. Ele sabe — ele já falou — que não vai gostar do meu livro. Pela mesma razão que as pessoas nunca gostam de se ver em fotos ou de se ouvir na secretária eletrônica. Porque a gente se imagina sempre diferente da maneira dos outros nos verem.
Na época dessa polêmica das biografias, você chegou a escrever uma carta aberta para um jornal criticando a postura do grupo Procure Saber. Em seu texto, você criticou especificamente Caetano Veloso (“Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o lado do bem. Um abraçaço do seu amigo, Benjamin Moser”, dizia um trecho da carta aberta publicada na Folha de S. Paulo). Você acha, pelo que conhece do Brasil, que o brasileiro tem mais pudor na hora de ser biografado, de ter sua intimidade revelada, do que os americanos ou europeus?
No Brasil as biografias quase não existem. Há certas biografias, mas não há uma tradição de biografias na literatura brasileira, o que tem sido um grande problema para a continuidade e para a divulgação da cultura nacional. Mas não é por pudor. É pelo desejo que muitas pessoas poderosas têm de controlar e de manipular sua imagem. Como eu falei, a liberdade de expressão não existe para proteger elogios porque todo mundo gosta de elogios. Na Coreia do Norte tudo é passível de ser publicado — à condição de que elogios sejam feitos às autoridades. Essas liberdades existem justamente para criticar, para desafiar, e são o fundamento do que é um país livre: um jornalismo sem medo, um espírito crítico desenvolvido. Biografias fazem parte disso.
O que a imagem de Susan Sontag lhe desperta? Como era sua relação com o pensamento dela antes de começar o processo de pesquisar para essa biografia?
Na verdade, eu não sabia muito sobre ela. Ou seja, todo americano um pouco formado tem lido certos ensaios dela. E sabia da “celebridade” dela, pois era durante décadas uma das mulheres mais famosas do nosso país. Aliás, famosa num campo em que não havia quase “celebridades”. Não era uma estrela de Hollywood ou uma bilionária, mas uma pessoa que escrevia sobre coisas muito difíceis, literatura polonesa, filme japonês, até sobre Machado de Assis. Mas quando recebi o pedido — estava inclusive no Rio de Janeiro — comecei a ler, e fiquei maravilhado com a pura quantidade de coisas que aquela mulher fez durante uma vida extraordinária. Estou aprendendo com ela diariamente.
Susan Sontag sofreu várias retaliações ao criticar os Estados Unidos durante o choque do 11 de setembro, quando ela publicou um artigo afirmando que o país deveria aceitar a responsabilidade pelos seus atos. Como os Estados Unidos hoje enxergam a memória de Sontag? Você acredita que sua biografia pode mudar um pouco a visão das pessoas em relação à Sontag que nós acreditamos conhecer?
Sim, com certeza. A imagem que eu tenho dela é mesmo MUITO diferente da imagem que se teve nos Estados Unidos: da fria, arrogante, meio francesa Rainha-Imperatriz da Cultura. Os republicanos, que são a pior coisa que têm em nosso país, aproveitaram para atacá-la depois do 11 de setembro. Foi a primeira pessoa vítima desses ataques, mas não, infelizmente, a última. Aproveitaram para calar os nossos intelectuais mais importantes. Até músicos foram atacados por não apoiar a louca política de Bush, a invasão do Iraque em que morreu pelo menos 500.000 iraquianos... Hoje, quando relemos as coisas “controversas” que ela falava, paira no ar um choque sim. Mas o choque é que ela não falou nenhuma palavra que não nos pareça completamente lógica. Mas o clima de medo e de nacionalismo histérico que vivemos é difícil, hoje, de imaginar.
A postura de Susan Sontag, com suas opiniões políticas, com sua sexualidade aberta, sempre foi alvo de polêmicas. Qual a falta que um pensamento como o de Sontag faz em dias como hoje, quando estamos assistindo a uma ascensão do pensamento reacionário em várias partes do mundo?
Eu ando dizendo que a solução para o mundo — se é que há solução — é o desenvolvimento de intelectuais muito sérios. Se o mundo tivesse mais cinquenta — mais vinte — pessoas como ela, este planeta seria diferente. Pessoas com a capacidade de ver além dos provincianismos, dos políticos que mantêm os povos num estado de quase ignorância, de combater o patriotismo reacionário, o ódio, a vulgaridade. É uma luta de que — pelo menos eu tenho a impressão — quase todos desistiram. No Brasil, por exemplo, desistiram, mas não só no Brasil. Como podemos viver num mundo que é só dinheiro, dinheiro, dinheiro, consumo, consumo, um prédio com churrasco e varanda e oito vagas?
Você está no processo de tradução da obra de Clarice Lispector (a autora está sendo publicada pela prestigiada Penguin Books). Como está a carreira de Clarice Lispector no exterior e a recepção dos seus livros?
Clarice está bombando e tenho o maior orgulho de ter participado disso. Lancei uma nova tradução de minha biografia e da obra dela na Alemanha em outubro. Em janeiro meu livro e mais cinco novas traduções chegaram à Inglaterra. Está sendo retraduzida na Holanda. E nos Estados Unidos está cada vez mais lida e conhecida. Aqui em Los Angeles fiquei louco de felicidade de ver Perto do coração selvagem no #7 dos mais vendidos da livraria principal da cidade. Fiquei bobo.
Quando eu lhe entrevistei na época do lançamento da biografia de Clarice aqui no Brasil você me falou um pouco do estado de possessão clariceana que esse trabalho lhe trouxe. Da mesma forma como você virou uma espécie de “embaixador de Clarice”, sendo procurado por inúmeros fãs da autora. Como está atualmente sua “relação” com o universo de Clarice? Você em algum momento procurou se afastar dela?
Pelo contrário! Para mim é um honra fazer tudo o que tenho feito, que ainda estou fazendo. Porque uma obra precisa de embaixadores. Precisa de professores, jornalistas, tradutores, biógrafos, atores, para ajudar as pessoas a chegarem à obra. Senão fica perdida. Agora, é verdade que não posso fazer tudo. E fico com a maior sensação de culpa, como aconteceu em janeiro, quando não pude ir a Londres para lançar a nova tradução lá. Mas estou aqui na Califórnia para Susan, e Londres não fica exatamente ao lado. O compromisso que eu tenho é de editar, em boas traduções, toda a obra dela em inglês. Depois poderá caminhar, espero, sozinha.
Eu li há algum tempo um artigo incrível seu sobre a cantora Chavela Vargas, sobre sua figura forte e enigmática. Chavela poderia ser um futuro projeto seu de biografia?
Interessante que você fala sobre Chavela. Eu pensei muito em fazer alguma coisa com a Chavela, que era minha amiga e que era talvez a maior cantora da América Latina. Uma mulher vulcânica, tremenda. Mas... e espero que não soe antipático, porque eu a amava. Chavela era uma pessoa muito doce, muito fofa, até. Mas não era, do ponto de vista intelectual, interessante. Não como a Clarice ou a Susan. Era uma mulher do povo, que tinha tido uma vida fascinante, mas não era uma vida de ideias. E afinal das contas são as ideias que me interessam.