Não são rarosos personagens históricos — ou anônimos da história — que dão origem a obras de ficção. Em O bibliotecário do imperador(Biblioteca Azul), no entanto, Marco Lucchesi não apenas narra o caso real da morte de Inácio Raposo, responsável pela coleção de livros de dom Pedro II, mas a investigação de um pesquisador em torno da figura de Raposo — e livrarias, bibliotecas e personagens do Rio de Janeiro do final do século 19. Em meio a cartas e documentos que o narrador nos apresenta, e através da própria estrutura narrativa, entramos num jogo que turva os limites entre história, ficção e memória à medida em que este narrador é contaminado por seu personagem e o contrário também acontece: descobrir os fatos que cercam a história e a tragédia final do bibliotecário não é mais suficiente.
Apesar de ter utilizado a ficção “para preencher algumas lacunas da realidade” — como em O dom do crime (Record), livro que dialoga em temas e estilo com a vida e a obra de Machado de Assis —, para Lucchesi não se trata de desenhar um romance histórico, mas se colocar no espaço de risco e liberdade pelo qual entende a literatura: “Simplesmente lanço mão da história como um mote, como volume de certo conjunto em que busco à narrativa certa densidade poética”, diz nesta entrevista. A seguir, o poeta, escritor e ensaísta fala sobre a construção do novo livro, bibliotecas e a associação entre conhecimento, literatura e poética.
Tanto O bibliotecário do imperador quanto seu romance anterior, O dom do crime, têm em personagens e fatos reais, do período do fim da monarquia no Brasil, sua base. Existe algum interesse seu específico por este período?
Sim e não. Precisava de um segundo romance que dialogasse com o primeiro. O bibliotecário agasalha uma cronologia mais recente que o Dom do crime, que se desdobra no arco do Segundo Reinado. Queria que ambos os livros realizassem um feixe de aproximações, apesar de narrativamente irredutíveis. Sem dúvida o século 19 literário no Brasil é de todo fascinante.
E o que o levou não apenas a tratar de fatos e personagens históricos, mas colocá-los de modo a fazer o leitor questionar os limites entre história, realidade, memória e ficção? Para além do livro, na sua opinião, onde está o limite entre realidade e ficção?
Meu interesse narrativo não habita propriamente o romance histórico. Preocupo-me antes com a poética da história, o vigor das formas possíveis, realizadas ou não. Gosto mais da segunda hipótese. Lembro de Huizinga, diante da possibilidade de Napoleão ter vencido a batalha de Waterloo. Como seria o destino da Europa? Meu foco não abrange esse quadro monumental, antes aponta e fixa aqueles fatos pequenos e esquecidos. Quanto menor a escala da história, maior o coeficiente ficcional.
A certa altura do romance, o autor-narrador busca “adiar” a morte de Inácio – ou ao menos sua narração. Até que ponto o senhor se permitiu apropriar-se do personagem, defini-lo e a sua história? Como foi lidar com um personagem real e um personagem-narrador que leva o nome de Marco Lucchesi e guarda semelhanças com o senhor?
Uma tensão de fato. Deter o relógio da narrativa a fim de reunir as pontas de uma geografia perdida ou promover um encontro impossível. O eixo do tempo determina parte da história, sobretudo quando o real se imagina (o narrador) e o imaginado se realiza (a figura de Inácio). Trata-se de um processo de inversão permanente nos dois romances, tornado mais forte em O bibliotecário. O modelo é antigo. E de certo modo começa com a obra maior de Cervantes, de que tudo derivou, quando dom Quixote vai se tornando Sancho, à medida que o romance avança, e o contrário disso também, quando Sancho vai adquirindo traços de dom Quixote.
A mudança de regime político e a impossibilidade de Inácio Raposo cumprir sua tarefa — zelar pela biblioteca do imperador, contra ladrões e traças, pela unidade da coleção — tiveram um impacto terrível em sua vida. Por quais mudanças e adaptações acredita que bibliotecas e bibliotecários terão que passar a partir dos avanços tecnológicos? Sua atribuição principal mudará?
Vivemos hoje a multiplicidade de suportes. Não uma guerra. A tecnologia não exclui o acervo físico, nem chega a propor tampouco o descarte do real pelo virtual. Se o primeiro sofre com a umidade, acidez do papel, incêndio, traças e cupins, o segundo exige renovada migração de tecnologias, como preservar a memória virtual e como defendê-la dos hackers, online. Precisamos fazer a apologia da preservação em nosso país, sem cessar, sobretudo no âmbito das bibliotecas públicas, com maior volume de recursos. E aqui me refiro ao acervo e a seus profissionais. Investimento que, se não gera visibilidade política, produz dividendos imateriais de altíssimo valor. Avançamos neste setor, mas há muito que fazer. Estamos sempre no vermelho.
Além de dom Pedro II, o general chileno Augusto Pinochet é exemplo de homem que não passou para a história como um sábio, mas investiu numa biblioteca particular com cerca de 55 mil volumes, alguns até mesmo tomados do acervo público ou que constavam de sua própria lista de livros proibidos para a população. Em outra escala, muitos leitores insistem em abrigar mais títulos do que conseguirão ler em suas vidas. Que fascínio as bibliotecas exercem sobre nós? É uma forma de concretizar o conhecimento? O que um conjunto de livros diz — ou esconde — de fato sobre seu proprietário?
Antes de mais nada, há um abismo intransponível entre os dois nomes. Dom Pedro foi um habitante da biblioteca, um leitor voraz e apaixonado. Em outros casos, há bibliotecas que parecem latifúndios, ao mesmo tempo vastos e virginais, cujos volumes dormem eternamente. Podíamos comparar as bibliotecas de Ruy Barbosa e de dom Pedro: paralelo interessante que constituiu certa parte do imaginário brasileiro, fronteira entre a República e a Monarquia, entre duas formas de ler o Brasil. Mas claro, concordo em cheio com a sua questão. Volume de conhecimento não gera sabedoria. A erudição que não se interroga e que não se deixa atravessar pela beleza da luz apolínea e, portanto, poética, não produz uma forma de conhecimento real. Não se trata de volumetria, mas de articulação. Como dizia Vico — e depois Nietzsche —, é preciso passar da filologia para a filosofia, do material disperso a um princípio geral que o organize.
E como é a sua biblioteca? Quais gêneros, autores, períodos constituem seu principal interesse?
É uma biblioteca de leitor. Tenho algumas obras raras (um bom número, talvez), mas estas não formam sua identidade. Tenho livros anotados, sublinhados, de muitas partes do mundo. Alguns trazem meu ex-libris. Boa parte dos quais autógrafos. Mais de 80% anotados.
Um crítico sugeriu que o prefácio e as notas do Revisor, personagem que retorna à narrativa denunciando “falhas” da obra — como o autor que “ama citações” e “gosta de mostrar o que leu” —, em O bibliotecário do imperador, podem ser tanto uma provocação como refletirem suas preferências literárias e inquietações em relação ao livro. O senhor concorda com a segunda proposta? Foi este o caso?
A ideia do Revisor responde pela estrutura do livro. Confesso que não li a crítica em questão, mas não sinto nenhuma inquietação ou dúvida. O alvo é outro e se pode bem acompanhar nas páginas do livro. Sobretudo a ironia, quanto à ideia de um romance histórico. Um endereço que não procurei com meus livros.
O senhor diz que na juventude procurava, em obras de diversas áreas, por respostas, por Deus. A criação literária dá continuidade a esta trilha? O que deseja obter da escrita de poesia e ficção?
Se não estiver errado, essa abordagem vem de um livro que escrevi na juventude, intitulado Saudades do paraíso. Tratava de meus quinze anos, quando a dúvida e a incerteza queimavam a garganta e não me davam paz. Lia muitos livros de teologia e filosofia, tratados de lógica formal e dialética. Naquele mesmo livro abordo a crítica desse processo e de sua despedida. Porque para mim a literatura significou sempre um espaço de risco e liberdade, fora de qualquer compromisso e resgate de conteúdo.
Hoje fala-se muito da especialização do conhecimento, enquanto o senhor possui uma formação e interesses amplos — história, literatura, línguas, filosofia, teologia, matemática, música, tradução, o clássico e o contemporâneo, ocidente e oriente. Como sua formação e seus interesses tomaram esse caminho?
Amo intensamente o que não me é, as feições misteriosas do outro. O rosto e os olhos me são profundamente caros. A alteridade é um princípio de atração, um polo magnético. Não me interessei jamais em tesouros (aparentes) de uma perspectiva meramente erudita, marcada por um narcisismo vazio, de quem guarda para ostentar (como insiste meu “Revisor”). Disse mil vezes e repito que cheguei a chorar nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano, porque o árabe me ajudou a ver aquela região dolorosa, na companhia de velhos, mulheres e crianças, que me agradeceram de saber naquele momento doloroso uma língua transpassada de dor.
Tanto em O bibliotecário quanto em O dom do crime o senhor se volta à história brasileira para fazer literatura. Mas e quanto à história da literatura brasileira? Ela está bem registrada?
Há livros de grande relevo. Obviamente a história literária vive dos desafios de sua metodologia e recorte. Não tanto o catálogo, mas a proposição de estruturas e perspectivas. E, portanto, ela não cessa de escrever-se e nem poderia deixar de fazê-lo. É de sua própria condição. As monografias de alta qualidade ajudam atualmente na revisão e no alargamento do quadro ou sistema. E o registro das obras já não depende de um cartório central, mas de um conjunto de vozes, textos e janelas.
O narrador de O bibliotecário do imperador afirma, a certa altura: “A vida e o livro são inimigos ferozes”. Como o senhor lida com esta questão?
São as palavras de um narrador aborrecido com as poucas pistas sobre Inácio, enganado por Jurujuba, que erra de propósito algumas datas para confundir o buscador de Inácio. Eu mesmo descobri mais detalhes sobre o bibliotecário do que o narrador (mas decidi elaborar uma lógica do menos). De minha parte, não vejo como separar o livro do mundo e o mundo dos livros, a página do planeta e da história, a biblioteca dos homens e da natureza. Saímos dessas páginas e a essas páginas havemos de regressar algum dia.