Em 1998, um livro fininho surpreendia pela “promiscuidade de gêneros”. Poema em prosa, ensaio, confissão e autobiografia misturavam-se em O filantropo, primeira incursão ficcional do crítico de arte Rodrigo Naves. Dezesseis anos, vários livros sobre arte e um grave problema de saúde depois, é a falta de surpresa que ele questiona em A calma dos dias (Companhia das Letras).
Aqui, Naves coloca em stand by a análise de cores e formas para buscar significados no mundo. Pode soar ambicioso, mas é a resposta de quem espera mais do que a tal “pasmaceira” com que experimentamos o mundo, e de quem ainda acredita na potência da arte e da vida. Assim, aos 59 anos, o autor passeia por diversos temas — moda, sexo, cotidiano, a própria arte — em ficções novamente breves e híbridas, além de ensaios e retratos de artistas, sempre com sutileza e abertura para o pessimismo, a dúvida e o humor.
Na entrevista a seguir, realizada via e-mail, Naves fala sobre o novo livro, a relação com a crítica de arte e os achados em suas caminhadas diárias por São Paulo, onde vive.
Vilma Arêas, quando questionada sobre os “longos” períodos entre a publicação de seus livros, disse: “Na verdade, trabalho o tempo todo, só penso em literatura, mas custo a me satisfazer com os resultados”. O que o motivou a reunir esses textos que ecoam quase um pessimismo em relação à arte e à sociedade, ainda que tenham humor e leveza?
Não é o meu caso. Ganho a vida com um curso livre de história da arte. E também escrevo sobre arte contemporânea (o que não dá dinheiro algum, mesmo porque só escrevo sobre o que gosto). Essa situação me forçou a me ocupar fortemente com as artes visuais. Invejo a minha amiga Vilma, escritora poderosa. Publiquei o livro em parte para provar para mim mesmo que estava vivo (quase morri ano passado), e, para mim, estar vivo parece supor pessimismo e humor, peso e leveza.
Apesar de ter feito carreira no meio das artes visuais, li que sua relação com a escrita é anterior a ela. Como foi sua formação enquanto leitor? Como este gosto pela escrita resultou em produção literária?
No meu caso, acho até difícil falar em “formação literária”. Fiz o que consegui fazer. Nunca tive muito tempo. Fui revisor de texto até perto dos 40 anos. Sempre gostei de escrever. E a crítica de arte me forçou a ter uma grande disciplina: horas e horas parado diante de objetos que não falam, esperando encontrar um significado para cores, materiais, figuras e gestos. O vínculo com a superfície do mundo é que me levou a tentar essas prosas curtas.
A hibridez dos gêneros textuais — ou não gênero — foi destacada nas críticas de O filantropo. A calma dos diastraz essas ficções que mesclam prosa poética, experiência, reflexão e uma porosidade do enredo. Como o senhor chegou a esse viés que em 1998 produziu um “choque bem moderno”?
A bem dizer, eu não cheguei a ele. Apenas faço o que posso. Não tenho pulmão de fundista, daqueles que conseguem correr longos percursos. Então obedeço minha toada. No entanto, suspeito já não haver longas aventuras a serem narradas.
A prosa breve é sua preferência enquanto leitor? Ainda que não se possa falar em “formação literária”, quais autores foram fundamentais para o senhor e como ajudaram a criar o escritor?
Não consigo vislumbrar no mundo de hoje uma trama de acontecimentos que permita tornar verossímil epopeias ou épicas. É curioso como a crescente complexificação da vida, a ampliação das relações e do acesso a pessoas, lugares e informações não teve como consequência a produção de uma dinâmica social que ampliasse o “ruído” do mundo. A música de fundo de nossa época é realmente música de fundo. Tende a igualar os fenômenos, em vez de diferenciá-los e pô-los em contato de maneira reveladora. Não me parece fácil lidar, em arte, com uma realidade assim, que escorre entre os dedos. Se a própria realidade não produz diferenciações, conflitos e tensões, a imaginação, ao tentar criá-las à força, corre o risco de produzir ficção científica.
Um livro importante para mim, justamente por sublinhar essa tendência, foi O fio perigoso das coisas, de Michelangelo Antonioni. Nele, personagens e acontecimentos são fragmentários a ponto de não se converterem em história. Afinal, há algo nos nossos dias que tenha começo, meio e fim? Ainda que não nessa ordem. Curiosamente, um dos autores de que mais gosto, Joseph Conrad, vive justamente de uma matéria oposta: um jogo de oposições e conflitos que te acompanha por toda parte, ainda que os personagens tentem se esconder no território mais remoto possível.
Uma entrevista de 2005 me deu a entender que o senhor não só havia parado de escrever crítica de catálogo como havia diminuído o ritmo da escrita de crítica de arte em geral. Se for este o caso, o que o tem motivado a escrever crítica de arte?
Estou achando que você sabe demais da minha vida... rs rs. De fato, praticamente parei de escrever para catálogos. Abri umas poucas exceções apenas. Eu me dei conta que muitas vezes os artistas ou os galeristas só estavam interessados na minha assinatura (eu já tinha uma posição no meio de arte). Poderia terceirizar os textos numa boa... Isto me incomodou muito. Além do mais, a forma catálogo tem algo de terreno minado: um lugar em que não se caminha à vontade, pois a simples disposição de escrevê-lo já implica um aval difícil de ser posto em causa. Continuo escrevendo sobre arte sobretudo porque gosto muito dela. E por vezes me animo a tentar compreender o que me encanta tanto em alguns trabalhos.
Em diversos textos, inclusive do livro anterior, o senhor parece empregar métodos de análise de obras de arte para abordar outros assuntos. Mas até que ponto busca trazer para os seus textos mais ficcionais o olhar, as opiniões e as preocupações do crítico de arte?
Acho que já toquei nesses pontos antes. Tenho verdadeiro fascínio pela aparência das coisas e seres, mesmo porque não acredito em essências. Penso que o treino e a disciplina que alcancei com a crítica de arte podem me ajudar a perceber as realidades de uma maneira mais clara, relacionar coisas muito diversas a ponto de poder escrever sobre elas.
André Goldfeder escreve que a beleza dos seus textos está mais relacionada à “capacidade de materializar uma experiência do olhar” através das palavras do que a “uma vontade inquestionável de dizer”. Que experiências são essas?
Até onde entendo a afirmação do André, ele diz que minha prosa tem mais a ver com a fugacidade, a distância suposta pelo olhar do que com o controle de quem diz rigorosamente o que quer dizer. Espero que seja isso.
À exceção dos retratos, em que o senhor recorda alguns artistas, o interesse deste livro parece estar muito mais focado no presente. Qual o peso, ou de que forma memória e passado estão presentes em sua escrita de ficção? Quando eles batem à sua porta como em Tango, o que faz?
Minha ambição é que eles entrem sem bater. Ou seja, gostaria que a minha prosa carregasse nas costas algo do peso da realidade que elas supõem. Não tenho com a vida uma relação fácil. As coisas pesam para mim. Por mais que o presente e a exterioridade do mundo sejam decisivos para minha prosa, também a dimensão material e opaca do mundo têm uma grande importância nela. E gostaria que isso passasse para o leitor. Não como algo rançoso, e sim como uma factualidade que intensifica a força e a importância dos sentidos.
“A calma dos dias” poderia ser algo desejável num mundo que, apressado e excessivo, tem também muito de banal. Mas é a planura, o mundo cristalino, a continuidade que o senhor critica no livro. Essa “calma” decorre de não sabermos mais olhar, experimentar e perceber?
Penso que o problema central de nossos dias esteja justamente na dificuldade de experimentar o mundo. O título do livro tira seu interesse (se é que ele existe) dessa convivência entre serenidade e calmaria, tão difusa no nosso cotidiano. Acredito que a experiência supõe um esforço para dar sentido a algo, seja isso um acontecimento, uma esperança ou uma frustração. E todas essas situações implicam um enfrentamento que a pasmaceira (a má calmaria) praticamente impede. Já a boa calmaria (a serenidade) parece conter nela mesma uma relação com o mundo de ordem diversa. Um contato generoso em que abdicamos da pretensão de domesticar a realidade. Ou seja, uma abertura igualmente intensa para o mundo.
Além disso, nossa vida passou a ser muito mediada por imagens. A experiência pessoal tornou-se quase quimérica. É isso que tornou a arte de Andy Warhol tão reveladora. Te confesso, porém, que todo esse discurso que faz a apologia da imagem, a ponto de tornar a noção de realidade quase uma fantasia, também tem um lado enganoso, ideológico, pois evidentemente a vida não pode ser corrigida num photoshop. Então, trata-se de conseguir reverter pela arte a natureza do nosso vínculo com o mundo, tornando-o o lugar de uma experiência possível, sem perder de vista que essa experiência, a meu ver, se diferencia daquela de um escritor como Guimarães Rosa, cujo mundo praticamente desapareceu.
A dificuldade da produção de arte está na experiência da realidade? O que espera da arte em resposta a essa calma?
Se entendi bem sua pergunta, a dificuldade de se produzir arte reside sobretudo no que o [Luigi] Pirandello chamava “o demônio da experiência”, que implica simultaneamente realizar uma experiência e torná-la também uma experiência possível para o leitor. É mais ou menos isso que entendo por arte. E o que espero dela.
Atualmente, é o campo da arte ou a realidade que tem lhe proporcionado experiências mais gratificantes? O que o tem surpreendido?
Eu caminho muito. Todo santo dia. Quatro, cinco quilômetros. E parece que minha saúde voltou com força. Nessa situação é difícil não se comover com a realidade. De tal modo que às vezes tenho até vontade de falar dela. Como dizia o Platão, o belo faz falar.