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Não é fácil falar sobre José Luiz Passos. Tanto já foi dito (ou exaltado) desde sua estreia como romancista, em 2009, que se corre o risco de soar repetitivo e pouco convincente quanto a seu valor. Mas o grande “problema”, na verdade, é que escrever sobre sua obra parece nunca parece ser suficiente: em 966 páginas, ou quatro livros, o universo de Passos é inesgotável.

 

Há quem se diga encantado pela beleza da escrita do pernambucano, costurada com toda a riqueza da língua portuguesa; uns destacam a construção das personagens, em especial Vicente, de Nosso grão mais fino (2009), e Jurandir, de O sonâmbulo amador (2012); outros se entusiasmam com a originalidade, a clareza e a elegância do crítico no recém-lançado ensaio Romance com pessoas (todos editados pela Alfaguara) – gênero a que também se dedicou em Ruínas de linhas puras, de 2008, sobre Macunaíma. Seja como for, não cessam de surgir críticas, resenhas e leituras para seus livros, tanto os dois romances, ambientados entre os anos 1930 e 1960 em Pernambuco, em que os protagonistas vivem um embate com o passado, a perda e a construção de suas vidas; ou o novo ensaio sobre Machado de Assis, que nos mostra, entre tantos aspectos, a profunda dimensão moral das personagens – ou pessoas – machadianas.

 

Entre a breve passagem pelo Brasil para lançar Romance com pessoas e o retorno aos EUA, onde é professor de literaturas brasileira e portuguesa da Universidade da Califórnia, José Luiz Passos respondeu, por e-mail, algumas perguntas sobre as origens e preocupações de sua ficção, o novo livro e a polêmica em torno de Machado de Assis.

 

Para Jurandir, protagonista de O sonâmbulo amador, narrar é acertar as contas com o passado e encontrar seu lugar no presente. O que você busca na escrita de ficção?

Em parte, a pergunta já aponta para uma resposta. Tem razão. Em ambos os romances, há um acerto de contas com o passado: não necessariamente com o meu passado, mas com o da região, do estado, da família; ou o passado de gente que não conheci pessoalmente e que, mesmo assim, me cerca ou acompanha. Em Nosso grão mais fino, os amantes Ana e Vicente encontram na reminiscência um modo de se consolarem e potencializarem o desejo que sentem um pelo outro, dentro de uma triangulação amorosa imaginada ou vivida retrospectivamente. Já n’O sonâmbulo amador, procurei retratar um homem comum, um pequeno burocrata prestes a se aposentar, e para quem o passado nunca havia sido um problema; até que, de repente, ele precisa prestar mais atenção a traumas, glórias de antes e, também, aos sonhos. Busco o que esses personagens buscam: tornar visível, para mim e para outros, emoções e circunstâncias que de outra forma passariam batido e jamais sairiam daquele poço de clichês que torna nossa rotina confortável demais.

 

E o que encontrou na elaboração dos romances?

Depende do momento, depende da obra. Sinto grande prazer na redação do texto e na vida autônoma que o texto ganha, após sua publicação. E tem também a satisfação de se tentar imaginar por dentro a vida de outros – e encontrar aí aspectos alheios à minha própria vida.

 

Você se refere a Jurandir com uma expressão que me parece carinhosa e, hoje, pouco usual: “meu herói”. A longa convivência os aproximou, mas o que admira na personagem?

Apesar das circunstâncias adversas, Jurandir tenta se entender e entender os outros, da melhor maneira possível; ele não deixa ninguém para trás, muito embora chegue atrasado, quando finalmente decide enfrentar questões cruciais em sua vida. Admiro seu humor e a graça ranzinza que ele exibe em situações perante às quais eu próprio cruzaria os braços, mudaria de assunto ou passaria a página. Jurandir fica remoendo. E isso é um talento.

 

Já nos tempos de graduação em sociologia você escrevia poemas e breves narrativas. Quando soube que era hora de escrever seu primeiro romance? Ou em que momento ele se impôs?

Quando meu pai faleceu, em 1999, senti que precisava escrever alguma coisa a respeito. Não necessariamente a respeito dele, mas daquilo que eu julgava fazer parte da paisagem interior dele, na conexão com meu avô, com o açúcar, com as viagens e certa noção de vida como paixão, que aos meus olhos o definia.

 

Certa vez, perguntado sobre como se tornou escritor, você brincou que ouviu “Vai, Zé!, ser escritor pernambucano na vida”. O que significa ser um escritor pernambucano?

A resposta tem muito a ver com o que descrevi acima. Pernambuco é a arena que decido lembrar; e relembro tal espaço imaginando o que eu próprio não vivi. Note que na minha ficção não está o Pernambuco da década de 1980, vivido por mim na intensa consciência do adolescente. Meus romances se passam entre as décadas de 1930 e 1960. Ora, nasci em 1971. O estado é parte da minha identidade quase em igual medida que a Califórnia; afinal, estou aqui faz 19 anos e vivi no Recife apenas até os 24. Mas acho que não há como negar nas artes em Pernambuco certo espírito de inconformação para com as bandeiras, grupos e escolas do momento, em diferentes períodos. A poesia de João Cabral, por exemplo, tinha laços fortes com a lírica anglo-saxã e espanhola de sua época; divergia de tendências comuns a grupos propriamente nacionais. Como encaixar Osman Lins ou mesmo Hermilo Borba Filho? Em parte, destoam de seus contemporâneos como destoou o movimento Mangue anos atrás e o cinema de Kleber Mendonça Filho e Hilton Lacerda atualmente. Não creio que haja nisso nenhuma “pernambucanidade” imanente. Isso não existe. O que há é um exercício deliberado do artista que não evita os fardos de uma tradição marcada pela exclusão, pela violência, e que ao mesmo tempo se abre a uma mescla de tempos, transformando a aspereza dessa mescla em rigoroso método de composição.

 

Como você une a necessidade de representar seus demônios particulares com a relevância que o livro deve ter para o outro? Até que ponto considera importante discutir, na literatura, temas como desigualdade social, o cotidiano do pequeno operário e ditadura militar?

Escrever é um demônio particular. Escrever para chegar ao outro, para emocioná-lo, tocá-lo de algum modo, convencê-lo a rever seu mundo, tudo isso é reconhecimento da relevância desse outro no processo mesmo de feitura e circulação do texto. Há maneiras de ser mais (ou menos) sutil com relação ao lugar que pautas particulares ou coletivas têm para a escrita. Puxando um fio da resposta anterior, na medida em que a narrativa de ficção é a imaginação de situações humanas plenamente complexas, ela invariavelmente discute os limites impostos à realização de sujeitos e grupos. Em meu primeiro romance, por exemplo, quando o químico Vicente Campelo faz o repasso da crise afetiva e econômica da família sucroalcooleira, é o homem do quadro técnico, o pequeno elo, que dirige uma mirada nostálgica e ao mesmo tempo crítica à grandeza do período Vargas e às restrições impostas pelos valores da região à liberdade dos protagonistas. No caso de Jurandir, em O sonâmbulo amador, a crise de sua consciência é índice da mescla entre o patrão e o amigo, entre o filho e o inimigo, entre uma colega de trabalho e a esposa. Atuam, na confecção de cada um desses personagens, marcas de geração, classe e ideologia política. O pequeno funcionário da indústria têxtil tenta recompor sua visão de mundo frente ao desencantamento da vida, sem excluir a graça. Nos dois romances, a caracterização da desigualdade, do privilégio, da revisão política deve existir – precisa existir – como expressão singular e intransferível de uma consciência (e de uma forma de linguagem) que se encontra em risco, seja Jurandir ou Vicente. Mas eles não são bandeiras das minhas convicções, nem querem dar lição a ninguém.

 

W. G. Sebald diz que com o passar dos anos, esquecemos muitas coisas, e assim as memórias que permanecem conosco adquirem grande peso e densidade. O que você faz dessa memória, como evita sucumbir a ela?

Tomo a memória como um exercício, como uma prática que tem por alvo a construção de laços com eventos e pessoas que não estão mais aí; ou com situações que já se esgotaram. Esse canal para um suposta retomada do passado é ao mesmo tempo arena convidativa e perigosa, porque existe como mecanismo da imaginação. Concordo que o peso dessas memórias – invocadas deliberadamente ou não – pode nos fazer refém. Mas o adensamento das memórias é conquista da linguagem; é no plano da enunciação que essas imagens e sensações ganham sentido, tornam-se mais robustas, eloquentes, podem ser compartilhadas em confissões, sessões de análise, relatos etc. Então, é aí também que elas se transformam naquelas “abelhas domésticas” cuja companhia vai do incômodo ao proveito. Parto de memórias específicas, mas não escrevo sobre elas. Um pai morto torna-se o filho morto, que nunca tive. Uma namorada de outra era volta como a amante que não tenho e dou a Jurandir. Se a memória é um ponto de partida, como o feijão, por sua vez a literatura é o feijão com técnica – é a feijoada; sucumbo ciente de que ela (a memória) existe para ser minha cria.

 

O sonâmbulofoi terminado numa cabana no deserto Mojave: “É o mais perto do sertão que consigo chegar num fim de semana, indo de carro, a partir de Los Angeles...”. Qual o efeito que a distância do seu espaço de origem e local onde transcorrem seus livros tem na sua escrita? O que significa ser brasileiro em país de língua inglesa?

Significa que tenho duas casas e estou sempre longe de um centro ou de uma origem estável, uniforme, única. A distância para mim é essencial. Ela potencializa a sedução da nostalgia e ao mesmo tempo aciona a desconfiança em relação à nostalgia. Mas a distância também é mediação necessária na narrativa de ficção: é o controle sobre a matéria narrada e o fato de que as emoções ali são evocadas; são e não são as nossas emoções, daí o prazer de se deparar com circunstâncias que, se vividas, seriam banais ou terríveis, mas que lidas, ao correr da página, nos trazem contentamento e certa perspectiva. O deserto Mojave é e não é meu; é e não é o sertão. Ser brasileiro em país de língua inglesa é estar ciente dessa condição de duplo finca-pé, a cada minuto. No início, isso me cansava; hoje, procuro tirar proveito da tensão.

 

Sobre a recente polêmica em torno de Machado de Assis: substituir palavras supostamente incompreensíveis por outras mais próximas do nosso vocabulário pode contribuir para a formação de leitores ou para a aproximação da obra?

Não sou contra a existência de adaptações, versões, transcriações, resumos etc. São modos válidos de participarmos no jogo do encantamento literário. O primeiro livro que tenho memória de ter lido foi aquela famosa adaptação, em tradução resumida, que Monteiro Lobato fez de Robinson Crusoé. Hoje tenho carinho especial pelo romance de Defoe, por causa dessa primeira leitura. Agora, trata-se do mesmo caso? Não sei, não tenho certeza. Não li o texto modificado de O alienista. Mas se a dificuldade percebida para uma maior divulgação de Machado é apenas de léxico, então por que não incluir um glossário? Assim, a cada vez que o leitor encontrasse uma palavra mais curiosa (digamos, “sagacidade”) ele ou ela iria ao glossário (e encontraria, por exemplo, “esperteza”). Neste caso, o leitor alargaria seu vocabulário. Mas entendo a sedução de uma adaptação mais plenamente transparente... Tudo depende, a meu ver, do uso e do objetivo que se tem para essa publicação. Então, não sou contra novas versões de Machado. Mas acho que há maneiras de se colocar textos inteligentes e criativos nas mãos de mais leitores, em vez de simplesmente reduzir a variedade de léxico e estilo do autor. Pois resta a questão central: não a das palavras, mas a das ideias. Mesmo um texto que faça uso de palavras plenamente correntes pode produzir um mundo complexo, de difícil síntese, e avesso a formas de simplificação. Penso, por exemplo, em Beckett. Esperando Godot foi escrito com poucas palavras, praticamente todas são comuns, e há muita repetição. Em tese, seria um texto simples, transparente. E, no entanto, algo que resiste à tentativa da transparência está lá... Tenho uma filha de 8 anos. Trouxe para ela, há pouco, da Bienal de Brasília, uma versão do conto machadiano “Ideias de canário”. O livro é ilustrado para crianças. O texto é integralmente o de Machado. Lemos aos poucos. As ilustrações ajudam. E eu esclareço o que ela me peça para esclarecer. Isso nos dá prazer e é parte fundamental da construção de uma nova leitora, que saiba pedir ajuda ao pai ou ao dicionário, e que se acostume a não temer obstáculos a seu entendimento.

 

Aos seus romances, ainda que contemporâneos, poderia ser proposto procedimento semelhante – não só em relação a determinadas palavras, mas à própria construção das obras, que demandam “cumplicidade e empenho”, como disse Raimundo Carrero. Que concessões e exigências você faz ao leitor?

Quase nenhuma. Aliás, não me lembro de ter mudado nada nos livros a fim de que mais pessoas entendessem o que quero dizer. Como disse o próprio Carrero, o estilo pertence ao narrador; é preciso haver um casamento funcional entre a voz que enuncia aquele mundo e a matéria enunciada. Escrevo tentando alcançar a máxima adequação entre quem fala e aquilo que é dito. Quando – como autor – corto palavras ou me cerceio, é porque penso: Jurandir não diria isso; não cabe na boca dele. Quanto ao resto, vale tudo. O escritor que subestima o leitor já perdeu a parada e não sabe. Espero do meu leitor um esforço comparável àquele na produção do livro. (Há livros para todos os fôlegos.) Em troca, ponho ali tudo de mim, absolutamente tudo; uma grande fatia de vida: cada livro me levou mais ou menos seis anos de redação. Sabedores disso, que concessões ou exigências os leitores fariam a mim? Eis a questão. Faço tudo para não desapontá-los.

 

A linguagem de O sonâmbulo– amplamente elogiada –, aparenta uma beleza mais simples do que a de Nosso grão, sem que haja necessariamente uma mudança de estilo. Mas que mudança foi essa e o que a motivou?

A voz de Jurandir é a de um homem sem educação superior, nascido no começo do século 20 e narrando-se no final da década de 1960. Portanto, o tom é mais monocórdio; a perspectiva, mais reservada; o pulso mais regular, marcado pela desconfiança. Por outro lado, as vozes de Ana e Vicente, no primeiro romance, são vozes de pessoas que escrevem, digamos, profissionalmente. Expressam-se com os arabescos de um colóquio amoroso; existem ao longo de várias décadas; a adjetivação intensa justifica-se pela presença da “paixão”. Então, em O sonâmbulo amador, quando optei por um narrador mais reservado – aposentando-se – busquei maneirar o tom no estilo, a fim de deixá-lo consoante a uma voz para a qual o desbunde vocabular não faria nenhum sentido. A beleza, sim, torna-se mais discreta. Só espero que nos dois casos o poço das aflições em questão façam sentido e tenham coerência interna.

 

Machado de Assis conferiu dinâmica moral e uma rica vida interior a seus personagens, e fez do “modo como indivíduos conduzem suas vidas” sua grande investigação. De que forma essa inovação foi recebida e incorporada pelos pares do autor? Ela se mantém como preocupação central do gênero romance?

Existe uma diferença radical entre a maneira como Machado de Assis concebe a vida interior de seus personagens e aquela como os outros escritores do século 19 no Brasil fizeram a mesma coisa. Machado cria uma noção de interioridade para o personagem brasileiro, o que chamo de vida moral, ou seja, experiências e sentimentos que associamos a uma avaliação de nós mesmos: emoções reflexivas como a culpa, a vergonha o remorso ou o ressentimento. Os personagens de Machado são ambivalentes, problemáticos, ardilosos, volúveis. Não há como colocar o dedo e dizer que “essa pessoa é isso”, porque ela não é só isso. Ela nos encanta precisamente por causa da grande variedade de emoções e experiências vividas, e é nessa variedade que se constitui uma forma mais robusta de se retratar a pessoa humana: sujeitos contraditórios, que não se conhecem de fato, que são múltiplos e desiguais. Tal capacidade radical de mudança no sujeito (e do sujeito para com os demais) é algo característico da modernidade. A loucura, o descontrole, a incontinência da imaginação são algumas das questões trabalhadas por Machado. Suas pessoas possuem relações contraditórias e complexas com o passado, e assim o reinventam e o manipulam para entenderem suas motivações, levando em consideração aquelas dos demais. Isso pouco existe em José de Alencar, por exemplo. E é parcamente explorado pelo Naturalismo. O dinamismo moral é uma prerrogativa fundamental do sujeito machadiano. Vai influenciar Eça de Queirós e também a ficção psicológica do século 20, como Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos etc. Mas não creio que se mantenha como preocupação central do gênero. Nosso romance do século 20 se manteve preso às questões da política e da identidade.

 

Para escrever o ensaio Romance com pessoas, você analisou os livros que pertenceram a Machado de Assis, com as anotações do autor, e referências literárias em sua obra (principalmente a Shakespeare). Caso um pesquisador realizasse uma busca similar na sua biblioteca, o que lhe chamaria atenção?

Guardou a pergunta mais difícil para o final, não foi? Bom, olhando de relance minhas estantes, agora, aqui, às costas, vejo pequenas pilhas de livros, na vertical e na horizontal, dedicadas a preferências ou projetos em andamento. Viajantes estrangeiros no Brasil. Machado de Assis. Literatura japonesa, em especial Natsume Soseki. Sociologia; ainda leio sociologia... História da colônia. Poesia, de Joaquim Cardozo a Angélica Freitas. Machado de Assis. Romances históricos. Alguma coisa de história natural. Osman Lins. Carmo Bernardes. Conrad, Camus e Coetzee. Machado de Assis. Muita coisa de Henry James. Muita coisa de Wittgenstein. Muita coisa sobre teatro de bonecos, mamulengos, títeres de toda parte. Graciliano Ramos. A revolução pernambucana de 1817. Um pouco mais de Machado de Assis (já mencionei ele?), mas dessa vez com Lima Barreto. Nabokov. Pilhas de ficção brasileira contemporânea. Bastante Shakespeare, em parte por causa de Machado de Assis. Folhetos de cordel. Que mais? Pequenas torres de fotocópias, com as apostilas para os cursos que vão de Caminha aos de hoje. Talvez esse pesquisador ache estranho que, em vários casos, eu tenha mais de um exemplar do mesmo livro: dos meus preferidos ou daqueles usados com frequência nos cursos. Queria que esse tal pesquisador não conseguisse me enquadrar, mas ele vai conseguir. Ele tem uma bolsa. Ninguém resiste a uma bolsa. Espero, ao menos, que quando chegar a vez do relatório, ele me considere um leitor dedicado e com poucos preconceitos.

 

 

 

 

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