Renato Parada/DivulgaçãoQual o lugar da poesiana vida de Paulo Scott? Os poemas de Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo(Companhia das Letras), seu novo livro, soam irônicos quanto ao assunto, quando não cheios de dúvida sobre o “cenário inexato de sempre”. Nesta entrevista, o autor rebate: “Não espero nada da poesia”.

 

Gaúcho radicado no Rio de Janeiro, ex-advogado e hoje escritor em “período integral”, ele diz, no entanto, que já adoeceu da falta dos versos e afirma não poder passar sem escrevê-los. Treze anos depois de seu primeiro livro, publicado sob o pseudônimo Elrodris, Mesmo sem dinheiroacalma a violência e o hermetismo marcantes em A timidez do monstroe Senhor escuridão(ambos de 2006), e se debruça sobre a solidão: uma voz poética a se estranhar no mundo, sem necessariamente desejar se encaixar nele. Nos cerca de 50 poemas de dicção coloquial e inquieta, os mais antigos escritos já em 2006, ecoam ainda preocupações de Habitante irreal(2011), romance que faz um balanço de sua geração desiludida e pelo qual o poeta talvez seja mais conhecido.

 

“Não pretendo que nenhum deles me represente”, diz Scott sobre seus poemas. “Pelo contrário, espero deles a dissonância, o que não seja prolongamento vaidoso da minha integridade, das minhas certezas e igrejas — que existam, e resistam, sem mim”. Se Paulo Scott não espera nada da poesia, na conversa a seguir ele mostra o escritor que investe tudo nela.

 

O poema que abre o livro parece uma longa carta escrita e endereçada a você mesmo. Ela comporta uma mudança no entendimento do mundo, da vida: critica o que hoje vê como mera fumaça do passado, e busca a essência do presente: qual o valor da literatura, o papel do poeta, como ter consciência de si. Poderia comentar as motivações desse poema e responder a uma das preocupações ali desenhadas — qual a melhor forma de sobreviver?

É difícil precisar o quanto desse poema é endereçado pelo narrador ao autor. O que posso dizer, com relativa segurança, é que o narrador do poema é uma série de vozes que assumiram uma determinada ambição cujo prazo de validadetalvez já tivesse se esgotado. Suponho que nele esteja a sinalização do fim de um ciclo, de uma conveniência, de um conforto específico — nesse sentido o narrador conversa com si mesmo, sendo muitas vozes, muitos olhares, muitas escutas.

 

O impulso que me levou a escrevê-lo, considerando que o rascunhei lá por meados de 2009 (quando eu já estava morando no Rio de Janeiro há quase um ano), foi parte do processo de escrita do romance Habitante irreal, uma consequência das preocupações e reflexões com as quais eu imaginava estar ocupado naquele momento. A intenção de balanço geracional — mesmo não sendo o leitmotivdo romance que mencionei — que me atormentava naqueles dias, as dúvidas sobre a possibilidade de cumpri-la ou não, por certo repercutiu nesse poema; é difícil avaliar, principalmente porque ele passou por mudanças, diferentes versões, nos anos que se seguiram.

 

Arriscaria dizer que o verso “tente não culpar mais ninguém”, que encerra o poema, busca uma consequência maior do que a mera representação de um diálogo (possivelmente autodesfigurador) entre narrador e autor, deflagra uma injunção, um modo de sobrevida; mas não é receita.

 

Você havia anunciado o livro em 2009. Poderia comentar as transformações que ele sofreu nesses cinco anos, e como sua relação com os poemas foi se desenvolvendo?

O livro aguardou quase oito anos para ser publicado, nele há poemas escritos em 2006, há poemas de 2011. Cometi muitas alterações sobre o projeto original, inclusive no título (foram três títulos antes de chegar ao Mesmo sem dinheiro), penso que consegui ter a tranquilidade para deixar os textos amadurecerem, para saber se eles eram textos que valiam a pena ser publicados da maneira como estão sendo agora.

 

Minha relação com estes poemas é a mesma que tive com os poemas dos livros A timidez do monstroe o Senhor escuridão; penso ter mantido a mesma inquietação que é um pouco a marca dos livros anteriores a matriz, a poética, não mudou: vou morrer cavando o mesmo buraco no mesmo lugar em que comecei a cavar aos quinze anos, na época em que me dei conta que estava fisgado pela dicção da poesia.

 

E o quanto esses poemas te representam hoje — ou o que eles representam hoje?

Bem, cada poema tem um destino próprio (dependerá muito da maneira como será lido). Não pretendo que nenhum deles me represente, pelo contrário, espero deles a dissonância, o que não seja prolongamento vaidoso da minha integridade, das minhas certezas e igrejas — que existam, e resistam, sem mim.

 

Na apresentação ao volume, Paulo Henriques Britto afirma que o desafio do poeta brasileiro hoje é “construir sua linguagem a partir de um legado diversificado e acachapante”. E João Gilberto Noll, em uma entrevista recente, disse que “o estilo é uma somatização das características de sua época”. Qual o diálogo que você busca estabelecer entre uma tradição diversificada, a produção e os tempos atuais e sua própria voz?

Sou as leituras que fiz e sou o olhar sobre a vida que me é possível experimentar. Há uma carga ética não palpável que por certo condiciona minhas escolhas, procuro não me limitar a ela – talvez mais do que tudo me coloco na direção do que não consigo enxergar com clareza.

 

Os diálogos – que também podem ser tributos; impossível negar que a tradição sempre estará lá – são inevitáveis e muitas vezes são pautados pelo querer chegar a uma retribuição (que poderá acabar sendo rejeição) que só possa vir mesmo da minha voz, daquilo que se despedaçou dentro de meu entendimento para que a minha voz (as vozes dos meus narradores) se apresentasse.

 

Leio muita poesia contemporânea, nacional e estrangeira, tento acrescer algo diverso do que li.

 

O livro faz referências a Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Austrália, Portugal, Espanha, Curitiba e Recife. Quais os reflexos desse cosmopolitismo na sua literatura? E o exílio, que é um dos temas de Ithaca Road?

Tenho grande dificuldade em me assumir como alguém que pertence a um lugar só. Não me sinto de lugar algum, de país algum, mesmo tendo o Brasil, o bairro onde eu cresci e me eduquei, a língua portuguesa, a minha família, como sendo os elementos, os fatores, que me trouxeram até este espaço onde eu me encontro agora, até esta identidade; não me sinto seriamente vinculado a um lugar específico (não tenho saudade de um lugar específico, não tenho saudade de lugar algum).

 

O sentimento de exílio é uma hipótese muito pouco dependente do deslocamento ao estrangeiro (do lugar que não este lugar), das experiências no estrangeiro; ele pode surgir mesmo que você jamais saia da sua cidade. Nesse sentido a leitura continua sendo uma experiência poderosa. Lembro muito bem de não me sentir mais o mesmo depois da leitura do primeiro livro que me impactou e do segundo e do terceiro; lembro muito bem de olhar ao redor, observando minha casa, meu bairro, minha cidade, e me sentir outro (quase estrangeiro e no estrangeiro) depois de terminar de ler o romance A náusea, do Sartre, ou a coleção com poemas de Paul Celan editada pela Iluminuras.

 

Seus poemas anteriores já falavam sobre o amor, mas a violência era muito mais presente, assim como uma dicção mais fragmentada, hermética, caótica, como se não buscasse o diálogo mas a própria incompreensão. Mesmo sem dinheiro parece focar no amor, na essência e na inquietação, em poemas talvez mais claros e até mesmo simples. Que mudanças você observa? Buscou “trocar de ciclo”, “mesmo que doa”?

Acho que o livro está mais focado no sentimento de solidão do que no amor propriamente dito — mas o amor está lá, é quase impossível isolar os ideais de amor (seja por alguém, seja por si mesmo, seja pela humanidade inteira) do olhar poético. Há menos violência do que nos livros anteriores, preciso concordar, mas garanto que não foi um propósito.

 

Quanto à clareza. Nas diversas rodadas de seleção para definir o que entraria no livro, sobre o que sairia, nunca pensei em reunir os poemas por serem mais claros ou mais simples do que os poemas dos livros anteriores. Pensei no que me agradava e no que poderia funcionar em consequência da estética que me parece relevante. Pelo critério da clareza — olhando com algum distanciamento — talvez os poemas do Livro Dois, o “Tempo romano”, sejam melhores representantes do hermetismo que também é uma característica forte nos poemas que escrevo, mas não sei.

 

Mesmo sem dinheiro demonstra desconforto com o meio literário, do qual você, claro, faz parte. Um poema, em especial, se revolta com as expectativas sobre o poeta: “(...) que seja pedra”, “(...) que lave as mãos/ antes e depois de utilizar o mictório” “e goste de animais domésticos e de crianças” etc. Que cobrança você faz da sua literatura? O que espera da poesia?

Não espero nada da poesia; eu nem sequer tenho mais aquela necessidade relevante de publicar poesia (leio e escrevo poesias todos os dias, no papel, no computador, e isso me basta). Não espero nada da minha literatura, eu escrevo, sobretudo os poemas, porque sinto que preciso.

 

Quanto ao desconforto com o meio literário, posso garantir que não existe; o desconforto do narrador, nos meus poemas, é quase sempre com relação a ele próprio. Não penso no meio literário quando escrevo, é o que posso dizer — escreveria mesmo que o meio literário jamais me notasse (se o que escrevi, porém, não tivesse repercutido na maneira como repercutiu, talvez eu não tivesse tomado as decisões que tomei em 2008, justo para me arriscar, pelo período que eu conseguisse, na tal vida de escritor em tempo integral).

 

Em 2010 você disse se considerar fundamentalmente um poeta — antes de romancista ou contista — e que já aos 12 anos escrevia poemas. Sobre o que eram esses primeiros poemas? Houve um período da sua vida sem escrever ou ler poesia?

Sou poeta. O que mais preciso dizer?

 

Meus primeiros poemas eram sobre a importância alheia — assim eu resumiria aqueles poemas de adolescente esquisito, pré-adolescente esquisito, de doze anos.

 

Durante o meu mestrado, durante os dois anos de créditos (naquele tempo era assim), me impus não escrever poesia e não ler poesia e adoeci.

 

O que comprar um esqueite novo, mesmo sem dinheiro, representa para você?

Não desistir de fazer o que é importante fazer, mesmo que você olhe para o futuro e não veja um futuro fácil a partir da sua escolha; comprar um esqueite novo, entretanto, nunca é só isso.

 

 

SFbBox by casino froutakia