Através da escrita,Paulo Nunes afirma ter encontrado “a sustentação para suportar, pelo menos provisoriamente, o lado escuro da vida”. É precisamente esse “lado escuro da vida”, na forma de uma depressão e da morte do pai, o tema e o sentimento de seus poemas, agora reunidos em O corpo no escuro(Companhia das Letras).
Nascido em Pato de Minas (MG), em 1965, e formado em filosofia, Nunes escreveu entre os anos 1990 e os 2000 o diário poético de um corpo no escuro: acompanhamos o eu lírico em situações de tédio, silêncio, solidão, esvaziamento, enquanto ele reflete sobre a nossa subjetividade. Há, no entanto, lugar para a esperança nestes versos, assim como o desconforto que ronda o livro convive com a beleza de certas imagens. Como diz o poeta e letrista nesta conversa, “somos velas se (nos) queimando e, portanto, enquanto isso, dando luz”.
Na entrevista a seguir, Paulo Nunes, que vive em São Paulo (SP), fala sobre os mais de vinte anos que guardam O corpo no escuro, e sua relação com a poesia, a vida e a morte.
“O corpo no escuro” resume bem o sentimento da primeira parte do livro. O que o motivou a lançar esse corpo no escuro (no silêncio, na solidão, no vazio) e refletir sobre ele? Em que momento visualizou um conjunto a partir daqueles poemas?
Na verdade, há um terceiro livro, chamado “Ismália interpretada”, escrito de 2002 a 2005 que, embora não tenha saído no mesmo volume, integra este conjunto. Vim escrevendo estes poemas ao longo de quinze anos, no começo sem muita consciência do que estava fazendo, isto é, não havia nada planejado: buscava apenas o meu jeito de fazer poesia, respondendo às minhas questões pessoais sobre a vida, o mundo e a arte. Em 1990, quando tinha 25 anos, havia feito uma reunião de poemas, escritos do final da adolescência até esta data. Tal coletânea chama-se Quase corpo. Com ela, que permaneceu e permanecerá inédita, pois em pouco tempo já não me dizia mais nada, fiquei em segundo lugar no Concurso de Literatura Cidade de Belo Horizonte, de 1991. Deste livro até a organização definitiva do “OBVNI”, que compõe a primeira parte de O corpo no escuro, organizei várias coletâneas, de títulos diversos, com muitos poemas que acabei excluindo. E não fiquei satisfeito até o fim da década de 1990, quando cheguei à forma definitiva do livro “OBVNI”, reorganizando os poemas escritos até 1995. Uma vez estabelecida esta primeira coletânea, as duas seguintes acompanharam sua forma. Por isso, dentre outras coisas (como a semelhança dos temas e maneiras de tratá-los), acho que são partes do mesmo todo. Penso que o poema-metáfora O corpo no escuro define o conjunto por inteiro, embora haja uma diferença marcante entre os três livros, em que vou abrindo cada vez mais o discurso, buscando a luz para tamanha escuridão. Resumindo, pretendi falar em meu trabalho do novo ciclo histórico e social em que vivemos, retratando a nova subjetividade do homem nele encerrado. E só ao falar, ou tentar falar, da época em que vivo, da humanidade que hoje somos, enfim, buscando ser contemporâneo de mim mesmo, realizo-me como artista e ser político. Esta foi toda a motivação. Julgo que este ciclo esteja encerrado.
O escuro — a tristeza, a falta de sentido, o vazio — é uma grande presença no livro, mas o gesto parece ser mais proativo, investigativo, do que pessimista, e vários momentos mostram que há luz. De onde vem essa esperança?
O livro inteiro se dá como uma espécie de diário poético que registra momentos limite da vida de um “cidadão qualquer”, que o escreve com o intuito de perscrutar a realidade que o esmaga, para tentar compreendê-la. No “OBVNI”, que é ambientado numa metrópole, mais precisamente num pequeno apartamento de classe média baixa, uma profunda depressão e o desespero que isso acarreta; e no “Tempo das águas”, o cotidiano miserável de um filho que cuida de seu pai doente até a morte e o luto. Tais momentos se dão, necessariamente, como um embate em que lutamos para superá-los e nos superar, sobrevivendo ao vencer as sombras, sobretudo aquelas vindas do auto-engano. E nesse processo o instinto vital aflora, algumas vezes violentamente, outras de forma sutil, rara, misteriosa. E acho que é o que acontece no livro: quanto maior a consciência da escuridão, mais há frestas coando a luz que vem de algum lugar, até mesmo do próprio interior do corpo; quanto mais intensa a sensação de incomunicabilidade e apreensão do real pela linguagem, mais as palavras insistem e tentam dizer e, enfim, de uma forma ou outra, mesmo no maior desconforto — que é uma das marcas do livro — acabam dizendo. Esta luta com o silêncio e com a linguagem é a própria poesia, aliás. A esperança, sobretudo para os incréus, não é um acaso, algo que vem de fora (do alto) e nos salva — ela é, como tudo, uma construção, um ato humano que remete ao futuro e à permanência, e o próprio gesto de escrever tais poemas nestas circunstâncias prova isso. Uso mesmo esta metáfora: somos velas se (nos) queimando e, portanto, enquanto isso, dando luz.
A segunda parte do livro, “Tempo das águas”, volta-se para a morte. Qual a relação que o senhor faz entre a água (a chuva, o rio, o lago, a goteira que aparecem nos poemas) e o tema proposto?
A morte, na verdade, está presente em todo o livro. Na primeira parte, como potência apenas, mas já entranhada em quem escreve, na forma de uma depressão, com a qual se luta. Uma das forças que subjazem neste livro é mesmo a da “descoberta” da morte, quando ela, embora ainda abstrata, já aparece no horizonte, ao de repente percebermos que não somos mais tão jovens. Já em “Tempo das águas”, que é de fato uma grande elegia, a morte se materializa e me encara de frente na pessoa de meu pai moribundo e morto. Todas estas águas, que aqui aparecem e inundam, são uma metáfora estendida para o passar do tempo e para o choro. Com este título, “Tempo das águas”, que é uma expressão popular do sertão que designa o período do verão chuvoso, quis homenagear meu pai através de sua fala, e também o usei como metáfora porque sua agonia e morte se deram neste período. Meu pai, entre outras coisas, era um pescador — arte poética que amava e que me ensinou quando eu era ainda criança. Por isso aparecem neste livro os rios e as imagens ligadas à pesca.
Aqui, é narrada a perda de alguém: a velhice, o homem morrendo, a visita da morte, seu enterro e o que resta depois. O senhor considerou narrar essa história através de um romance, por exemplo? Por que imprimiu essa sequência de etapas da morte nos poemas?
A resposta já está dada acima: este é um diário da agonia e da morte do meu próprio pai. Escrevi-o um pouco como o Flávio de Carvalho desenhou sua mãe morrendo, obra de arte que vi numa exposição em São Paulo alguns anos antes da morte do meu pai, e que me impressionou muito. Como cuidei dele, numa situação muito precária, na qual eu sequer podia dormir, ficava lendo, meditando e escrevendo o tempo todo. Por isso o realismo e o desespero flagrantes nos poemas. Mas nunca me ocorreu, durante este processo ou depois dele, ter escrito um romance a respeito. Minha linguagem é a instantaneidade do lirismo e do verso, com os quais faço minha catarse ao acompanhar, digamos, em “tempo real”, passo a passo, a banalidade das coisas e do cotidiano, quando tento, ao mesmo tempo que compreendê-los, fixá-los em poesia, isto é, em mobilidade. Como no primeiro livro, “OBVNI”, havia tentado a apreensão do tempo — uma das minhas obsessões — de uma forma confusa, não linear, mais psicológica, desta vez a descrição de um acontecimento no tempo — a morte observada —, me obrigou a me ater à sequência narrativa da vida e do livro.
O eu lírico procura organizar sua relação com a morte, talvez ficar em paz com ela (e monta até mesmo Instruções a um morto, dizendo que não se preocupe, “que logo logo apagarão a luz”). Como a escrita influenciou sua relação com o assunto?
Nossa finitude é a grande questão da vida e o que lhe dá significado, e é lugar comum o fato de que fazemos arte, bem como o amor, para combater a morte. Como você bem nota, precisei escrever para sobreviver psiquicamente e poder enfrentar o lado duro da vida. No entanto, gostaria de lhe responder pensando não na morte física apenas, mas na negatividade que nos acompanha em todos os momentos, nos espreitando e nos assaltando em nossa desprotegida jornada. Para mim, a poesia serviu, antes de tudo, como instrumento de coesão de um mundo cujo sentido eu não alcançava suficientemente e/ou recusava, e da minha inserção neste mundo: que é o mundo da família, perpetuando seus valores arcaicos junto à perpetuação da espécie; o mundo das relações sociais reificadas e reificantes, em seu desamor; o mundo obrigatório do trabalho alienado... A poesia foi a ferramenta com que tentei renomear as coisas deste universo opressivo e opaco que veio logo após a infância, descobrindo-lhes o véu, e com a qual busquei reestruturar esta realidade, através da análise e compreensão do sujeito que a refletia. Neste mundo, a morte física, concreta, é apenas o ponto alto, seu desfecho e sua síntese. Pensar a morte, pois, é pensar toda a vida. E acho que foi por encarar este lado mais cruel que tive tanta dificuldade em dizer e dizer-me, em re-velar, gerando uma aparente obscuridade. Tendo ou não alcançado este sentido — e, sabemos, de nenhum dos lados, o de quem diz e o de quem ouve, nunca se alcança totalmente o sentido —, a poesia acabou, de uma forma ou de outra, ocupando meu tempo, sendo o meu trabalho não alienado, dando-me, enfim, identidade e, se não o sustento material, a sustentação para suportar, pelo menos provisoriamente, o lado escuro da vida.
E o senhor encontrou a resposta a Perguntas sem eco? “Além do corpo, que coube/ exato na sua cova/ onde pôr, na vida, o morto?”
A resposta definitiva, claro que não. Mas sim uma resposta parcial que, se não me satisfaz completamente, pelo menos me ajuda a dar algum sentido à vida, à minha e à de todo mundo: os mortos e o tempo “perdido” transformam-se em memória pessoal e coletiva. São, assim, a energia que nos proporciona o dinamismo da cultura — para um ateu como eu, a única possibilidade de não ter vivido inteiramente em vão. Aguentamos as perdas, pois continuam, continuamos em nós os nossos mortos, e por nossa vez, continuaremos nos outros, nossos contemporâneos e nossos pósteros, como esta energia imanente que desprendemos no trabalho de viver.