Foto por Greg Salibian/Divulgação

O que acontece na capital paulista, como anda a vida no centro financeiro do país? Essa era a “pauta” de Fabrício Corsaletti quando, em 2010, passou a escrever crônicas quinzenais para a revista sãopaulo, do jornal Folha de S. Paulo. Como se lê em Ela me dá capim e eu zurro(Editora 34) – recém-lançada reunião dessas crônicas –, no entanto, a matéria do escritor se constrói menos a partir dos fatos do que do olhar. “Quanto menos importa o assunto”, ensina o autor nessa entrevista, “mais se torna surpreendente na mão de um bom cronista”.

 

O próprio título do livro, retirado de uma coletânea de citações de Shakespeare, celebra o amor simples que interessa somente aos envolvidos – e aqui estão cerca de 60 crônicas sem grandes emoções, temas e palavrões, mas prontas para compartilhar a excitação de um adolescente recém-chegado à capital, a curiosidade do cronista, as leituras do poeta, o enfado do bom funcionário ou, vá lá, uma cerveja com o leitor.

 

Na entrevista a seguir, realizada via e-mail, Fabrício Corsaletti (nascido em Santo Anastácio, interior de São Paulo, em 1978) fala sobre o tom de estranhamento e o humor melancólico já conhecidos de sua poesia em Esquimó(Companhia das Letras, 2010), da sua relação com a crônica e a cidade, e compartilha sua desconfiança desse tal de “amadurecimento” – um palavrão, quem sabe, agora que ele aderiu à crônica.

 

Suas crônicas na revista sãopaulo têm uma espécie de pauta: tratar do que acontece na cidade. O que lhe interessa registrar nesse recorte? Temas como eleições, crise da água ou desigualdades socioeconômicas não lhe atraem?

Não sei falar de grandes temas. O que é manchete do jornal geralmente rende crônicas fracas. É assunto pra especialistas. O cronista, a meu ver, é o antiespecialista. Quanto menos importa o assunto, mais se torna surpreendente na mão de um bom cronista. O que me interessa é a vida — nada banal — do homem comum.

 

O que na vida do homem comum lhe interessa? E por que é importante que isso esteja ao lado dos grandes temas, da informação e da análise?

O que quero dizer é que não conheço outra vida além da vida comum. Sou um homem comum. Só tive vontade e coragem de me meter a escrever literatura porque entrei nela pelo Modernismo. E toda literatura moderna é feita por e para anti-heróis.

 

Escrever sobre a cidade mudou sua experiência dela? Vivendo na capital desde 1997, já se considera paulistano? Em que aspectos ainda se sente um esquimó em São Paulo?

Sim, escrever sobre São Paulo mudou minha relação com a cidade. Tive que prestar mais atenção em coisas para as quais até então não dava muita bola. Me sinto um paulistano na medida em que São Paulo é uma cidade de imigrantes, de estrangeiros. Por outro lado, nunca deixei de me sentir um esquimó.

 

Sua poesia possui referências prosaicas, assim como o cotidiano acaba alimentando suas crônicas. Qual a diferença no trato com o tema entre os dois gêneros?

É uma questão de ir até aonde o texto pede pra ir. Nenhum escritor consegue ir além ou aquém desses limites e se sentir satisfeito. Só considero um texto acertado quando ele atinge esse tipo de equilíbrio interno, quando encontra sua forma, seja poesia, conto, romance, crônica.

 

Com que frequência atinge isso nas crônicas, já que tem o dever de publicá-las quinzenalmente?

Só publico o que acho que está pronto. Claro que, olhando para trás, reconheço que há textos piores, que não chegaram lá. Meu consolo é não incluí-los em livro. Das quase 80 crônicas que publiquei na revista sãopaulo, selecionei 59 para Ela me dá capim e eu zurro.

 

A leveza e o tom de conversa da crônica literária podem dar a impressão de facilidade. Como é “forjar” essas características? Até que ponto elas guiaram a produção de Ela me dá capim e eu zurro?

Gosto que meus textos sejam fáceis de ler. Não pago pau pro difícil. Não significa que seja fácil escrever o que escrevo, nem muito menos que outra pessoa possa fazer o que faço. A criação de uma linguagem coloquial, próxima da língua falada, que soa familiar ao leitor, remonta pelo menos à tradição modernista, à qual me sinto profundamente ligado.

 

A crônica literária não tem a obrigação de informar ou afirmar, possui graça e lirismo. Mas pode ela incomodar, fazer o leitor se questionar? Até aonde deve ir a “gratuidade” associada ao gênero?

Uma boa crônica pode apenas divertir, mas uma grande crônica sempre faz o leitor se questionar. É literatura, no melhor sentido da palavra. A gratuidade do gênero é só um detalhe cativante.

 

De que maneira sua leitura e entendimento da crônica mudou desde 2010, quando começou a escrevê-la? Quando passou a se sentir confortável praticando o gênero?

No começo eu trabalhava com temas mais típicos de crônica, como anedotas bem- -humoradas ou descrições de experiências pela cidade, como uma ida ao Mercado de Pinheiros. Com o tempo, fiquei mais à vontade e comecei a escrever sobre qualquer coisa que me interessava, sem me preocupar se aquilo era crônica ou não. Reunidos em livro, os textos se contaminam, e acredito que acabei escrevendo um livro de crônicas, se for o caso de classificá-lo de algum modo.

 

Você acredita que antes o gênero era mais bem--definido, então? Que características ele incorporou ou ganhou com uma nova geração de cronistas?

Não, não acredito nisso. Quem deu autonomia para o gênero foi o Rubem Braga. O único cronista 100% talvez seja o Rubem Braga. Todos os outros, antes e depois dele, forçam as “fronteiras instáveis” do gênero, para usar uma expressão do crítico Davi Arrigucci Jr., até outras paisagens. O que é bom. É um gênero vivo, que se modifica ao longo do tempo. Não saberia classificar a minha geração. Isso é trabalho para os críticos.

 

Você cita Rimbaud, Drummond, João Cabral e Angélica Freitas, entre outros, como importantes leituras de poesia. No campo da crônica, quais autores formam seu referencial?

Rubem Braga está sem dúvida no topo da lista. Mas também gosto muito de Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Antonio Prata, entre alguns outros.

 

Considera-se um cronista adepto da flânerie mental ou das ruas? Coloca-se como narrador de suas crônicas ou considera-o mais um personagem?

A flâneriemental e das ruas se confundem. Eu misturo tudo, imaginação e registro circunstancial, verdade e mentira etc. Às vezes, sou apenas um narrador, mas a maior parte do tempo me coloco como personagem.

 

Você estreou como poeta, mas publicou uma novela, contos, crônicas e livros infantis. O que o leva a transitar por todos esses gêneros? Em qual deles sente-se mais realizado, digamos?

Escrever poesia está no centro da minha vida. Todas as minhas outras experiências literárias são secundárias. O que não significa que eu não tenha me colocado inteiro em cada uma delas. Mas nunca penso no próximo conto, na próxima crônica, no próximo romance, no próximo livro infantil. Se um dia eu tiver a ideia e a força para realizá-los, ótimo. Senão, tudo bem também. Estou sempre de olho no poema que ainda não escrevi.

 

Poderia comentar o processo de escrita do poema e da crônica? Eles diferem muito?

Diferem um pouco, sim. Mas não muito. Basicamente, é encontrar alguma coisa (uma ideia, um sentimento, uma frase alheia, uma palavra, uma piada, um verso solto no ar etc.) e seguir essa coisa até o fim. Prosa, eu gosto de escrever de manhã; é quando estou mais disposto. Poesia, quando ela aparece, posso escrever a qualquer hora e em qualquer lugar. Prosa só escrevo no computador. Poema, se for em forma fixa, ainda consigo escrever com papel e caneta, ou mentalmente.

 

Nas crônicas, você compartilha com o leitor bebedeiras de juventude, jantares com a namorada, a morte de Bardot (sua gata), conversas com amigos e com sua analista, leituras que o formaram e os locais que compõem seu mapa afetivo de São Paulo. Isso talvez dê a impressão de que está revelando mais a intimidade do que na poesia, por exemplo. O que se recusa a entregar, compartilhar na literatura?

Em algum lugar, o Mário Quintana disse que nenhuma confissão, quando transformada em arte, é vulgar. Acho que é por aí. Compartilho o que virou literatura. O resto é meu.

 

Você também retrata a experiência de se tornar adulto e “menos ingênuo” em São Paulo, relembrando também o “jovem poeta” que foi. Que tipo de amadurecimento busca enquanto poeta e escritor?

Ando cada vez mais desconfiado dessa ideia de amadurecimento, seja artístico ou pessoal. Talvez a vida não seja mais que um processo, cheio de fases. O que se cristaliza já não interessa ou não nos serve. O que está vivo ainda não tem nome. Como artista, só espero continuar produzindo à altura das minhas questões existenciais.

 

 

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