Divulgação

A protagonista de Alice no país das maravilhas— pouco após o começo de suas aventuras e “tão assustada que, por um momento, esqueceu como se fala direito” — exclama: “Estranhissérrimo, estranhissérrimo!”. Sensação parecida é suscitada no leitor de Exorcismos, amores e uma dose de blues(EADB), novo romance de Eric Novello: a obra de Lewis Carroll transparece como uma das grandes inspirações para o livro desse carioca radicado em São Paulo que já trabalhou em bancadas de laboratórios, drogarias e instalações industriais.

 

Dez anos após seu primeiro romance — tempo em que atuou como colunista, tradutor, organizador de antologias e compositor, além de publicar outros livros —, o escritor lançou em 2014 EADB, seu primeiro livro ambientado num universo por ele apelidado de Habitante Noturno. É um mundo bastante parecido com o nosso, em que acompanhamos a narrativa de um rapaz desempregado e com o coração partido, dono de um gato temperamental, ainda que com algumas diferenças: não há religiões abraâmicas, não fazem parte da cultura popular, o protagonista trabalha como exorcista freelancer— ele tem o poder de atravessar espelhos para entrar em outras realidades (alcunhadas “reflexos”) — e seu gato é de fumaça.

 

Na entrevista com o escritor — que, nas palavras de Elvira Vigna, “escreve bem para caralho” — ele revela alguns dos aspectos da criação de seu último livro, discorre sobre blues e diversidade e nos dá razões para prestarmos mais atenção a um gênero que tem ganhado crescente destaque na literatura brasileira contemporânea.

 

Uma das coisas que mais chamam atenção durante a leitura de seu último romance é a subversão de uma das palavras do título: os “exorcismos” — comumente associados ao imaginário católico — ganham outra conotação em um universo onde inexistem as religiões abraâmicas. Por que ambientar a história ignorando esse aspecto da nossa cultura?

Foram três as razões: liberdade especulativa, quebra da dicotomia e possibilidade de abordar problemas sociais. Toda literatura especulativa se baseia em um ponto de divergência com a realidade, por mais próxima que esteja dela. No mundo criado para EADB, a magia existe no dia a dia — basta lembrar que os deuses das religiões politeístas foram na verdade magos ou seres fantásticos muito poderosos. Com a não transição da cultura politeísta para a monoteísta, tenho a liberdade de reimaginar toda a nossa história, um material de trabalho muito rico. Já sobre a dicotomia sustentada pelas religiões abraâmicas: excluí-las acaba com a divisão entre bem e mal, céu e inferno, justo e pecador, certo e errado, a vida terrena e a espiritual. Uma escolha que, paradoxalmente, gera um mundo mais realista e me aproxima da ambientação cinzenta do noir, um dos meus nortes nesse projeto. Por fim, quanto aos problemas sociais: sem o peso da moral religiosa, a sexualidade não é um tabu. Os personagens a exercem (ou não) com liberdade, sem limites e rótulos impostos por terceiros, o que desmonta muitos dos preconceitos que contaminam hoje a cultura brasileira. Isso me permitiu falar desses assuntos de um jeito diferente.

 

Dickens, a respeito de David Copperfield, escreveu: “ninguém jamais poderá acreditar nesta narrativa, ao lê-la, mais do que eu acreditei ao escrevê-la”. O quão atrelada à realidade (e o quão afeita à suspensão da descrença) uma história de fantasia urbana precisa ser? Qual o limite da falta de sentido — e quando se deve explicações ao leitor?

A fantasia e a literatura do cotidiano funcionam de modo muito parecido, na verdade. Ambas dependem de uma lógica que sustente seu mundo ficcional, e falhas são facilmente percebidas pelo leitor. Na literatura do cotidiano isso está mais relacionado às atitudes do personagem (“mas ela nunca faria isso!”) e aos fatos ocorridos (“salvo por uma chuva de sapos albinos?”). Já na fantasia isso se aplica também à ambientação, à criação do mundo como um todo; a distensão de lógica a partir do ponto zero (a realidade) funciona de outra maneira. Mesmo em uma fantasia urbana que aproveite a ambientação de uma cidade contemporânea, é preciso pontuar claramente para o leitor os elementos comuns e os divergentes. Meu protagonista é um mago exorcista: certo, então existem magos nesse universo. Mas ele está desempregado e vivendo de freelas: então, os magos também precisam trabalhar e pagar suas contas, que nem eu. Ele come pizza e bebe mate gelado. Por outro lado, seu bicho de estimação é um gato de fumaça. Ele vai espairecer em um bar, como eu. Mas o segurança desse bar tem um implante mecânico, e assim vai. A partir de situações corriqueiras cria-se a base para que o leitor, mais adiante, acompanhe as extrapolações e as aceite como possíveis. No fim das contas, nossa chuva de sapos albinos poderia acontecer numa comédia, numa fantasia ou na literatura do cotidiano. Apenas sustentada por lógicas distintas.

 

Você afirmou que a “composição de personagens e muitos dos temas abordados em EADB foram retirados de canções de blues”. Como equilibrar essa influência com o humor presente no romance — em outras palavras, como restringir a melancolia a uma dose?

O humor é algo que me persegue desde os trabalhos iniciais. Na escola de cinema, entregava exercícios de roteiros que julgava pesados, dramáticos, e os professores comentavam rindo: diziam que eu tinha um humor refinado, de entrelinhas — um elogio que transformei numa fuga constante, sempre frustrada. Quando comecei a trabalhar no EADB, já havia desistido dessa luta imaginária. Se meu texto tem humor, que assim seja: vou me concentrar só na melancolia e ver no que dá. O blues ajudou muito nesse sentido, porque várias canções carregam um equilíbrio natural. Às vezes uma história triste vinha acompanhada de uma melodia enérgica. Porque assim eram as vidas desses artistas: difíceis, cheias de obstáculos, de músicos negros ganhando pouco para cantar para plateias exclusivamente brancas que não os respeitariam fora dali — mas que mostram a disposição de seguir em frente. E havia também a ironia: um dos clássicos absolutos do blues, Born under a bad sign, de Albert King, tem um verso maravilhoso que diz “If it wasn’t for bad luck, I wouldn’t have no luck at all”. Não é a expressão perfeita do humor diante de uma situação ruim?

 

Retomando o tema do blues, há uma canção que saiu das páginas do livro e hoje pode ser ouvida no Spotify e no YouTube, na voz de Cássia Novello. Em um livro anterior, há um ensaio fotográfico seu. O que você pensa sobre a interação entre a literatura e outras artes?

Transmídia é um assunto que me atrai bastante, mais pelo movimento, pela questão da transformação, do que pelo aspecto mercadológico. No caso das fotos, eu havia acabado de escrever um texto muito pessoal, o A sombra no sol, e queria testar essa exposição de maneira diferente. Comparar os dois desnudamentos, por assim dizer. Expandir mais um limite. Como o livro trata de um garoto de programa, de prisão e liberdade sexual, havia um bom contexto a se explorar, mesmo com poucos recursos. Hoje, quando revisito esse texto na cabeça, tenho vontade de expandir a transposição, de levá-lo para o teatro, talvez. No EADBfoi mais uma questão de fechar um ciclo. Já que cito trechos de clássicos de blues e havia levado seus temas para a minha história, por que não fazer o caminho inverso e levar a minha letra ficcional para um blues no mundo real? Ter uma irmã atuante no meio musical facilitou um bocado o processo.

 

Em EADB, há uma série de referências a seus livros anteriores: personagens reaparecem, textos são revisitados como diálogos. Você busca criar um universo de quebra-cabeça, cada livro uma peça?

No EADB existem mundos diferentes do outro lado dos espelhos, realidades que dialogam com a nossa, o que tornou tentadora a brincadeira de imaginar onde meus trabalhos anteriores se encaixariam. Junto a isso, o livro marca dez anos da minha primeira publicação e é meu retorno à fantasia desde então, portanto, quis brincar com textos publicados durante esse período, comemorar a data incorporando referências ao EADB. Foi como dizer a mim mesmo: “Primeira fase concluída, vamos à próxima”. Para quem me acompanha desde o início, é uma caça divertida a easter eggs, mas não é algo que eu planeje repetir daqui para frente. Histórias como Neon azule A sombra no solestarão de um lado do espelho, contadas no universo que chamo de Habitante Noturno, e o EADBdo outro, com seus magos, oníricos e seres sobrenaturais, mais próximos da fantasia noir.

 

Segundo uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, apenas 3,9% dos personagens na literatura brasileira contemporânea seriam homossexuais e 2,4% bissexuais. A diversidade na representação dos personagens — e dos “amores”, para citar o título — é algo que o preocupa?

Meu primeiro livro, Dante, lançado em 2004, tinha duas personagens mulheres, entre dezenas de homens. Uma delas, a amante do protagonista; a outra, uma vilã: um fracasso retumbante no teste de Bechdel. Nos livros seguintes: as mulheres eram maioria, em Histórias da noite carioca; o Neon azuldeu um passo adiante, embora sutil; e A sombra no soltrouxe um protagonista bissexual, um garoto de programa. O que mudou nesses anos foi o fato de ter ampliado meus limites como autor ao mesmo tempo em que os ampliava como pessoa, em que assumia eu o controle desses limites — outrora nas mãos da família, religião, político reacionário e outros controladores imaginários. Assumir tais limites me permitiu dialogar com o meu entorno sem medo, o que transpareceu nos textos. E ao transparecer, atraiu pessoas que me mostraram o quanto era importante essa diversidade; não só pela questão da representatividade, mas pelos diálogos que ela permite, pelo peso que ela alivia, gerando aí um ciclo que se retroalimenta.

 

 

SFbBox by casino froutakia