MILTON Hatoum alta BEL PEDROSA A

 

Nota da redação: esta entrevista de Milton Hatoum, concedida a Marília Kodic, foi publicada em maio de 2015 - portanto, quando o contexto político do país era bem diferente do que se vive atualmente.

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O redescobrimento da Amazônia está iminente, e Milton Hatoum é seu genitor. Não bastassem as adaptações cinematográficas inspiradas em trechos de seus livros Relato de um certo Oriente, Órfãos do Eldorado e A cidade ilhada, com estreias previstas até 2016, seu romance Dois irmãos está sob os holofotes: além de ganhar versão em quadrinhos por Gabriel Bá e Fábio Moon em obra lançada pela Companhia das Letras no último Salão do Livro de Paris, em que Hatoum foi o best-seller brasileiro, a obra estreia em maio como minissérie na TV Globo.

Vencedor de três prêmios Jabuti e um Portugal Telecom, com obras traduzidas para 17 idiomas, o escritor manauara tem no Amazonas o eixo condutor de sua obra. Nela, a paisagem e o povo amazonenses não possuem qualquer dimensão quimérica, mas sim características realistas, concretas - e, muitas vezes, autobiográficas.

Dois irmãos é caso raro na inóspita cena literária nacional: tem mais de 160 mil exemplares vendidos. Para chegar ao grande público, o romance passa pelas mãos do traquejado Luiz Fernando Carvalho, responsável pela difícil tarefa de levar Eça de Queiroz e Machado de Assis ao horário nobre da maior emissora da América Latina, e renasce na pele de um tarimbado elenco que inclui Eliane Giardini e Antonio Fagundes.

Na entrevista a seguir, Hatoum fala sobre suas expectativas em relação à adaptação, faz uma reflexão sobre o atual momento político do Brasil e adianta o tema de seu próximo livro.

Você concorda com a ideia de que as adaptações literárias à televisão aberta configuram uma espécie de ponte entre o homem culto e o homem comum no Brasil?

A televisão alcança e atrai para a leitura um público enorme. É diferente de um filme, que tem um público mais restrito. Falo de filmes de arte, não blockbusters de Hollywood. A minissérie de Dois irmãos está sendo muito bem filmada, os atores são ótimos, o roteiro é belíssimo, assim como a direção do Luiz Fernando Carvalho. Tudo isso é decisivo para dar qualidade a ela. Acho que o público que normalmente não tem acesso ao romance pode se interessar por ele enquanto estiver vendo a minissérie. Qualquer trabalho audiovisual de boa qualidade é formador. Mas a indústria cultural de massa geralmente não tem essa qualidade.
 
As minisséries Os Maias, Capitu A pedra do reino, exibidas na TV Globo, tiveram baixos índices de audiência. Como você acha que o público reagirá desta vez? Acredita que haja um estigma em relação a essas produções?

Acho que não vai ser um público que assiste a uma novela das 21h, por exemplo. E é normal que não seja um público enorme. Porém, acho que esta será uma narrativa menos experimental. O Luiz Fernando é muito ousado, para mim é um dos cineastas mais talentosos do Brasil, mas o próprio romance e o roteiro devem levá-lo a uma narrativa mais compreensível. Acho que o espectador vai entender os saltos temporais, a mudança no tempo histórico, e tudo isso é importante. E mais importante ainda é a compreensão da Amazônia e da imigração árabe no Brasil. Acho que adaptar um livro é recriá-lo em uma outra linguagem.
 
Você acredita que a adaptação possa suprir, mesmo que em parte, a carência que as massas têm de um retrato realista e acessível do Amazonas, que não seja estereotipado e clichê?

Acredito que ela irá refutar totalmente a visão exótica da Amazônia e dos árabes, essa visão que afasta o estereótipo. Isso é fundamental, porque nós temos uma espécie de pré conceito, conceito prévio, de uma cultura que nós não conhecemos. Fala-se muito em choque cultural. Na verdade, ele só existe quando você não entende a cultura do outro — e, o que é pior, não quer entender. Nós nos recusamos a entender o que é o nordestino, o que significa o Sertão do Brasil. O que significa um romance como Vidas secas? Os meus trabalhos são escritos a partir de uma visão interna, de dentro da própria região. Eu não sou alguém de fora, eu tenho minha vida lá no Amazonas. Minha vida é entre Manaus, São Paulo e Brasília. É uma experiência brasileira profunda.
 
Dois irmãos é formado por um mosaico de nacionalidades e estratos sociais. Essa mistura não é algo exatamente inédito na televisão brasileira. Você acha que dessa vez há algum diferencial, talvez por fugir do eixo Rio-São Paulo, do contraste simplista de empregado-patrão a que estamos acostumados?

É, o romance trabalha em outro registro. Ele aprofunda, adensa as relações humanas. Isso é próprio do romance. São as relações humanas que importam, e um certo sentido histórico também. Isso é muito importante. E é um retrato poético também, intimista. Não é um realismo raso, mas um realismo em profundidade, que vai fundo nos dramas humanos.
 
O espectador não tem a mesma liberdade que o leitor para imaginar as lacunas. O espaço íntimo no livro passa a ser algo completamente exposto na televisão. Como o roteiro pretende lidar com isso e com as diversas insinuações presentes no livro — como, por exemplo, as de incesto?

O roteiro resolve isso de uma forma muito hábil porque a essência do livro está nele. Mas o roteiro não é o livro. O audiovisual pode perder muita coisa, por exemplo, da psicologia dos personagens, mas pode também acrescentar outras, com imagens e outros diálogos, por exemplo. E acho que o incesto está insinuado no roteiro como está no romance. Não cabe explicação no romance. O romance que explica vira uma coisa ideológica e também chata, de tese. E o romance é o reino da ambiguidade. Quem é o pai dos gêmeos? Esta é uma pergunta que os leitores me fazem, e eu não sei. Desde quando eu estava escrevendo eu não sabia — o que é exatamente colocar as ambiguidades. O pai pode ser um como pode ser o outro. Já me falaram que pode ser o avô (risos).
 
Tenho a impressão de que o livro não faz uma descrição física minuciosa dos personagens. O que você achou das escolhas dos atores, em termos estritamente físicos, independente de talento?

Ah, eu gostei dos atores. Eu gostei muito. Tanto do [Antônio] Fagundes quanto da Eliane Giardini, do Cauã Reymond, que é um ótimo ator, da Juliana Paes... tem também o Michel Melamed, que faz o professor e poeta Antenor Laval, ele é perfeito pra esse papel. Eu acho que é um elenco de primeira que a produção e o Luiz Fernando escolheram.
 
Tem uma frase interessante do personagem Omar no livro: “Não existe paz nesse mundo”. Esta é uma visão sua também?

Eu acho que é uma visão do narrador, mas de algum modo eu concordo com ele. As tensões sociais existem no mundo todo. Se você olhar para a história da Europa, é a história da guerra também. Na Europa, não teve só Van Gogh, Picasso, Proust, a grande literatura, a grande arte e o humanismo. A Europa é também uma história de guerra, de colonização, de matança. Hoje mesmo, quando se fala na barbárie do exército islâmico, que é totalmente condenável, você tem que falar também da barbárie do governo Bush, que matou mais de 100 mil iraquianos na invasão. E crianças. Milhares de crianças. A barbárie está por toda parte.
 
No Brasil também?

No Brasil também. Uma parte da sociedade brasileira nunca aceitou ou nunca reconheceu que 40% da população vive à margem. Não aceitou que há um racismo absurdo, que os negros e os índios vivem à margem da sociedade. Que há muitos pobres que também são brancos, que a Bolsa-Família não é só para os negros. É a incompreensão da história do país. Quando se fala em impeachment, em golpe, eu acho que isso é perigoso.

Mas paz absoluta não há. Não há, por causa dos interesses econômicos, por causa dos preconceitos, da ambição. Eu acho mesmo que existe uma bandalheira no Congresso Nacional, na Petrobrás, ninguém pode negar isso, tem que ser apurado até o fim. Mas todo o sistema está podre. São os podres poderes de que fala Caetano Veloso.
 
Você diria que o povo está vivendo uma espécie de histeria coletiva hoje no Brasil?

Acho que há um pouco disso, sim. Há gente louca, gente chamando a Dilma de vaca. Há os inconformados com a derrota. Há os golpistas. Há os que realmente estão protestando contra a corrupção, decepcionados com o governo do PT. Eu também estou decepcionado. Não totalmente, porque o governo Lula fez muita coisa, como fez o governo Fernando Henrique. O problema é que não há nuances. São críticas sem nuances. Você não pode anular os avanços do governo Fernando Henrique nem do governo Lula. Agora nessas manifestações, muita gente de extrema direita e muito golpista infiltrado. Ou abertamente, também, não é nem infiltrado. Então dessa mistura não sei o que vai dar. Talvez não dê em nada. O Brasil de hoje não é o de 1964. Não é nem o de 1974. É muito diferente.
 
A HQ de Dois irmãos foi recentemente lançada no Salão do Livro em Paris. O que você achou da adaptação de Fábio Moon e Gabriel Bá? Você não é daqueles escritores que têm ciúme de sua obra?

Eu não tenho ciúmes dos meus livros. Não são mais meus. Quando você publica, já é do leitor. Achei lindo o livro. Ficou muito bonito. É uma belíssima adaptação e recriação do romance. O romance está quase inteiro lá, e as imagens, os desenhos são incríveis. Eles são muito talentosos. Saiu na França, vai sair nos EUA, na Itália e na Alemanha. 
 
Como você acha que a leitura da HQ difere da leitura do romance?

 É diferente. Um jovem, um adolescente de 12 anos pode ler sem problemas a HQ. Agora esse menino não vai captar o romance, não vai entender. Falo pela experiência do meu filho, que tem 11 anos. Ele já está lendo HQs. O romance Dois irmãos ele não conseguiu. O quadrinho é mais dinâmico por trabalhar com imagens.
 
Tem alguma novidade sobre o próximo livro que possa adiantar sem que sua editora brigue com você?

O livro que estou escrevendo há quase 5 anos tem dois volumes, e é de uma época muito tumultuada no Brasil e para a minha geração. É ambientado em Brasília, São Paulo e Paris. É um pouco autobiográfico, mas não dá para separar a ficção da vida, da biografia. É uma construção, uma invenção, também. Não é um romance político, mas tem a questão política porque eu passei 20 anos — toda a minha juventude e uma parte da minha vida adulta — vivendo sob uma ditadura. Eu não estava na Dinamarca nem na Inglaterra (risos). Eu estava no Brasil. Essa é a minha experiência, e eu não posso fugir dela. E nem quero.

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