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Bernardo Ajzenberg é um homem de timing. Na trilha de Minha vida sem banho (Rocco), novo romance do escritor, veio a crise hídrica em São Paulo, e muitos paulistanos se viram na mesma condição de seu protagonista. Este, ao menos, optou por cortar o banho de sua rotina.
A partir da decisão de Célio, funcionário de um instituto em prol do meio ambiente, a história segue por situações embaraçosas e divertidas. Em paralelo, o relacionamento conturbado com a namorada, o pai em crise e uma doença na família afetam o personagem e seu Projeto.
Na entrevista a seguir, concedida via e-mail, Bernardo Ajzenberg – autor de Variações Goldman, Olhos secos e A gaiola de Faraday, entre outros – fala sobre o personagem que tenta se afirmar, ideologias, busca pela felicidade... Muitos assuntos neste livro que nos conduz, com fluidez e humor elegante, por três gerações e grandes eventos históricos.
 
Os ideais grandiosos de Célio contrastam com seu perfil um tanto insosso e com o fracasso de seus relacionamentos pessoais – assim como o passado militante não impediu seu pai de se sentir, posteriormente, um impostor. Onde esses personagens falham?
 
Eles falham onde todos nós, de uma forma ou de outra, por sermos humanos, falhamos: acreditar na ilusão da felicidade. É um grande risco atribuir a um suporte ideológico e a um ativismo social, qualquer que seja ele, a capacidade de compensar frustrações afetivas ou dúvidas existenciais profundas, ou até mesmo ações execráveis. Nesse sentido, Célio e Waisman (o pai) realmente se parecem. Eu entendo, no entanto, que, ao longo de sua história, o Célio vai ganhando certa vantagem, a partir inclusive do conhecimento da vida do pai. Ele abre, assim, a possibilidade de não repetir a mesma trajetória de desencantamento.
 
À medida que leva adiante seu Projeto, Célio se percebe como indivíduo único, dono de uma identidade. Por que ele a perdeu ou não chegou a formar? E onde encontrá-la?
 
Ele é um jovem, tem por volta de trinta anos de idade. Vive numa metrópole, está justamente no momento das escolhas fundamentais e, acredito, definitivas. Eu o criei assim por me parecer esse o momento da vida em que a identidade começa a se afirmar. Antes, são ensaios, são tiros no escuro, por mais que não os enxerguemos assim quando os vivenciamos. No fundo, é um momento lindo, difícil, como a adolescência, mas que, visto retrospectivamente, pode nos levar, muitas vezes, a lágrimas de nostalgia. Este livro me parece, nesse aspecto, otimista: o Célio encontra a possibilidade de se afirmar não só apoiado na esdrúxula decisão de deixar de tomar banho, mas também na negação do pai.
 
De que maneira a escrita ajuda-o a se localizar no mundo?
 
A gente não se localiza no mundo. O mundo é que localiza a gente, e de forma mutável ao longo do tempo. De certa maneira, publicar um livro ou divulgar qualquer obra de arte é lançar ao mar uma garrafa com alguma mensagem dentro. Como quem diz “Olha, eu estou por aqui e dou esse sinal porque tenho alguma coisa que pode ser legal para alguém conhecer”. Quanto ao que vai acontecer com essa garrafa e a mensagem, você não tem controle algum. Por outro lado, a escrita me permite ruminar e colocar para fora os meus desarranjos internos; as minhas incertezas; as perguntas talvez irrespondíveis que nunca param de surgir dentro de mim; retraçar a minha própria história, que eu sei – e só por isso faz sentido publicar -, nunca será apenas minha.
 
Você participou de grupos políticos durante a ditadura. Possui algum tipo de engajamento hoje? Por que ideais acredita que vale a pena lutar?
 
Pessoalmente, acabei desenvolvendo uma ojeriza à ideia de pertencer a grupos, movimentos, partidos ou seitas de qualquer tipo, mesmo no plano artístico ou cultural. Ter ideias, afirmar convicções, isso é necessário; mas tão necessário quanto isso é estar aberto a revisá-las, a ouvir de verdade o que os outros dizem; refletir sobre visões ou atitudes divergentes. O sectarismo, que é sempre acompanhado de arrogância e empáfia, me dá náuseas. Minha vida sem banho é também sobre isso. Num plano mais amplo, não tenho nenhuma dúvida de que trago em mim, como se diz, um coração internacionalista que clama por justiça social e liberdade.
 
Todos os personagens parecem decepcionados – se não uns com os outros, com si próprios. Como não se deixar definir pela decepção? Ou o que lhes traria uma certa paz?
 
Há uma frustração generalizada. Não quero fazer grandiloquência, mas não dá para deixar de dizer que o século 20, apesar de inúmeros avanços científicos, tecnológicos, e alguns culturais, apesar de tantas esperanças, foi no fundo uma grande merda para a humanidade! E ela está muito, muito longe de ter tirado as devidas lições disso, se é que um dia conseguirá tirá-las. Estamos em crise profunda, e duvido que alguém enxergue a saída. Meus personagens, acredito, refletem esse momento e, como todo mundo, tateiam em busca de muletas existenciais. Nem mesmo a religião, da qual estão afastados, lhes serve de algum consolo. Quanto à ideologia, simplesmente se afogam num mar tumultuado e viscoso, com ondas disso ou daquilo, sem âncora ou tábua de salvação aparente.
 
Enquanto se procura a solução para a humanidade, como podemos chegar ao meio-termo entre negação da realidade e desespero total? Como não cair nos extremos de sofrer pelo mundo ou perder a sensibilidade?
 
Não consigo acreditar que haja uma solução. Cada vez mais eu me convenço que, na prática, a vida, a humanidade, esses conceitos tão genéricos, são assim mesmo, cheios de imperfeições. E que talvez envelhecer bem signifique justamente enxergar a possibilidade de alguma beleza nisso tudo. O meio-termo pode ser esse. Não se trata de conformismo, pois não estou pregando a imobilidade ou a resignação, mas de procurar reencaixar as expectativas e as ações necessárias para a sua realização.
 
O filósofo Dale Jamieson argumenta que o aquecimento global não pode ser desfeito, restando a nós reduzir sua velocidade e nos adaptar a ele, inclusive no sentido moral: virtudes como humildade, temperança, simplicidade, cooperação e respeito pela natureza seriam necessárias, diz Jamieson. Temos ou poderíamos alcançar essas características?
 
Esse é o “beabá” de qualquer civilização digna desse nome. Podemos querer ser otimistas e achar que isso é possível a partir de campanhas de conscientização, mobilizações públicas etc. Tudo isso é importante, mas me parece não tocar no essencial: a forma de organização econômica e social prevalecente. Tenho muitas dúvidas se ela é compatível com esse cardápio quase quimérico.
 
O romance passa por temas como ambientalismo, ditadura militar e holocausto. No entanto, seriam as coincidências e as pequenas ações que ganham dimensão ainda maior nessa história?
 
A História sempre me fascinou muito, desde muito jovem. Sempre li e continuo a ler a respeito; talvez seja hoje em dia a minha leitura predileta. Não como disciplina acadêmica, mas como aquilo que nos localiza no mundo, para retomar a expressão de uma pergunta anterior. Como ficcionista, me interesso pelos conflitos pessoais, pela hipocrisia dos relacionamentos, pelos riscos inescapáveis do amor, pela fragilidade dos laços familiares, pelos desafios incontornáveis lançados para quem almeja construir e, acima de tudo, preservar uma amizade. Mas, na minha cabeça, esses dois universos – pessoas e mundo - estão absolutamente fundidos. Eu procuro retratar esse conjunto nos meus livros. As ações banais do cotidiano podem se tornar explosivas, nas nossas mentes, quando mescladas aos temas sociais e históricos mais amplos. A literatura permite que você faça essa unificação. É um de seus atributos mais fascinantes, tanto para quem lê quanto para quem escreve.
 
E o que admira no protagonista?
 
Para criar um bom personagem, o autor não precisa necessariamente admirá-lo. O Célio muitas vezes chega a me enojar, como, por exemplo, na hipocrisia dele em relação a Débora, sua namorada. Assim como me irrito com Flora, a mãe dele, tão bela quanto manipuladora. Por outro lado, admiro a coragem do advogado Wiesen, amigo da família que, no fim das contas, é quem fala da ditadura militar no Brasil, do holocausto, da própria história pessoal de Célio, e num momento de luto, abre as portas para que o protagonista possa encontrar algum caminho.
 
Célio, um burocrata algo monótono, destaca-se e passa a ser respeitado a partir do momento em que para de tomar banho. Essa supervalorização, digamos, do que soa escandaloso não é de hoje nem se restringe à ficção. Por que isso acontece?
 
É uma especulação minha: o mundo das redes sociais, que é onde o Célio se torna conhecido, em que pese suas inúmeras utilidades, vive dessas pirotecnias, desses fenômenos fulgurantes, desses factoides destinados ao esquecimento. Quanto mais “escandaloso”, melhor. Faz parte do jogo. É uma feira de curiosidades que se retroalimentam. E quanto mais individualizadas, melhor. As pessoas andam muito carentes de emoções autênticas, querem sair de um anonimato que lhes parece insuportável, e ficam procurando isso nas redes. Nem todas são assim, mas a maioria me parece se comportar como fantasmas anestesiados. Célio não pensou em nada disso ao tomar sua decisão, mas, ao torná-la pública em um blog sob o estímulo, para não dizer encomenda, de uma seita ambientalista (elas, de novo), ele caiu no olho desse furacão.
 
Após oito livros, o que norteia sua escrita literária?
 
A necessidade interna de trafegar tateando entre sentimentos, emoções, sensações, impressões e História. A intuição de que contar histórias é útil. A pretensão de achar que as perguntas que eu faço, as minhas angústias e vacilações, são as mesmas que frequentam as cabeças de milhares e milhares de pessoas. Que as investigações que eu sinto necessidade de realizar sobre o meu passado e o meu presente podem suscitar o interesse dessas pessoas, seja para entretenimento, seja para estimular as suas próprias buscas. Tudo isso, com uma possibilidade lúdica e alucinante que a escrita oferece: inventar personagens e situações, buscar as palavras certas, o ritmo adequado, as vozes narrativas mais apropriadas. E, em especial, a certeza de que os leitores fazem exatamente esse mesmo percurso fascinante, por outros meios, ao saborear um livro.

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