“O incomunicável precisa estar presente na escrita”
Quando parte da Hungria rumo ao Brasil, em 1956, Írisz deixa para trás uma revolução fracassada, uma ideologia, o companheiro e a mãe. Em São Paulo, soma-se ao passado incerto da personagem a condição de estrangeira — e é por meio desse estranhamento que conhecemos a protagonista de Írisz: as orquídeas (Companhia das Letras), primeiro romance da escritora e crítica literária Noemi Jaffe, mais conhecida por O que os cegos estão sonhando?, livro de memórias baseado em relatos que sua mãe deixou ao conseguir sobreviver do campo de extermínio de Auschwitz.
“Írisz é uma estrangeira e, nesse sentido, ela estranha as palavras do português. Os escritores também são seres que estranham as palavras; quem automatiza a linguagem não pode escrever criativamente”, compara Noemi, que em A verdadeira história do alfabeto (Prêmio Brasília de Literatura 2013) criou origens ficcionais para as letras do alfabeto.
Trabalhando no Jardim Botânico, onde estuda orquídeas, a protagonista encontra uma metáfora para suas raízes — que tampouco se fixam em lugar algum — e um convívio afetuoso em Martim, seu chefe, comunista dissidente. Na entrevista a seguir, a paulistana Noemi Jaffe fala sobre sua relação com essa personagem singular, a condição do estrangeiro e a pesquisa histórica para o romance.
Írisz, como as orquídeas, tem “raízes aéreas”: se espalha, não se fixa na terra. Como você se relaciona a essa característica da personagem?
Tenho uma relação bem ambígua com essa característica de Írisz, que é seu aspecto principal. Por um lado, quis criar uma personagem bem diferente de mim. Tenho raízes bem mais firmes do que as dela, pois me identifico muito tanto com o fato de ser brasileira e paulistana como com o fato de ter nascido judia, num bairro judeu e de ser filha de refugiados de guerra. Penso que esses traços são constitutivos da minha personalidade e também da minha escrita. Por isso, penso que, a não ser por circunstâncias que me forçassem, não sou uma pessoa que foge. A Írisz, por sua vez, mesmo tendo sido obrigada a fugir, tem isso como seu traço mais importante. Ela fugiria, penso, mesmo que não fosse obrigada. Não quer e não consegue se estabelecer e nem criar laços duradouros com os lugares ou com as pessoas. Isso pode ter a ver com a forma como foi criada, com a revolução, mas pode também ser um lado de sua natureza. Cada leitor decidirá como interpretar isso.
Eu admiro esse lado da Írisz, porque também gostaria de fugir de algumas situações em que acabo me envolvendo mais por escrúpulo do que por desejo. O livro questiona isso mesmo: até que ponto fugir é desonroso, desonesto? Fugir também pode ser uma forma honesta e necessária de lidar com alguns problemas.
Ao mesmo tempo, parece ser importante para Írisz buscar não só a origem das palavras, mas entender sua própria origem. A escrita literária, ficcional, te ajuda nessa compreensão?
Sim, sem dúvida. Tenho a fantasia, que muitas vezes se constitui como realidade, de que as palavras dizem mais do que elas normalmente expressam, quando aproximadas de sua origem. Como na origem as palavras têm significados bem mais concretos do que ao longo de sua evolução — quando elas vão se tornando abstratas e passíveis de vários usos — penso que, em seu nascimento, elas têm a ver com o gesto literário, que também é concreto. A literatura expressa a vida acontecendo, em sua condição mais concreta.
Írisz é uma estrangeira e, nesse sentido, ela estranha as palavras do português. Os escritores também são seres que estranham as palavras; quem automatiza a linguagem não pode escrever criativamente.
Sua atuação como crítica literária interferiu na escrita do seu primeiro romance?
Minha atuação como crítica e também como professora — porque são coisas co-extensivas — sempre interfere na minha escrita. Tenho muita autocensura, reescrevo tudo muitas vezes, tento prestar atenção no máximo de coisas possíveis e acabo, muitas vezes, prejudicando a mim mesma. Tenho mania de explicar tudo muitas vezes, dar mil sinônimos para cada coisa e isso deixa minha escrita meio redundante, às vezes. Daí tenho que ficar enxugando tudo. Mas é divertido também e aprendo muito com isso.
Como foi adotar o ponto de vista de Írisz para narrar a história? E como foi a “convivência” com a personagem durante o período de escrita do livro?
Foi um grande aprendizado para mim, como já disse, pelo fato de ela ser tão diferente de mim e, ao mesmo tempo, inevitavelmente semelhante em alguns aspectos, já que era eu que a estava criando. Mas, muitas vezes, sentia que precisava conhecê-la, que eu também precisaria ser estrangeira, não falar a língua, não entender as coisas. Nesse sentido, foi muito bom ter passado um mês sozinha em Paris, onde eu ficava as tardes procurando um lugar para escrever. Era uma experiência curiosa e muitas vezes dolorosa também. Acho que isso ajudou. Procurava fazer as coisas como se fosse ela que estivesse fazendo. Não só ela é diferente de mim, como tudo o que ela estava vivendo também. Então precisei fazer bastante trabalho de pesquisa, o que permitiu um maior distanciamento, sempre necessário para a escrita.
Que contraponto buscou ao utilizar Martim como narrador, alternando-o com Írisz? E como surgiu a ideia de contar a história e expor as dúvidas da personagem com cartas e relatórios?
Quis criar o contraponto de um maior pragmatismo, uma carga de silêncio, de comedimento, tudo aquilo que se opõe à grande energia e alegria de Írisz. Martim é uma pessoa equilibrada — até certo ponto, mais abnegado e menos entusiasmado do que Írisz. As características certas para um membro médio do partido comunista da época. Achei que isso seria muito importante para Írisz, no momento que ela estava vivendo e para contrabalançar sua personalidade tão “gulosa”. A ideia dos relatórios surgiu pela necessidade de criar um motivo para Írisz estar escrevendo e também pelas semelhanças que fui encontrando entre Írisz e as orquídeas. Ela começava a escrever os relatórios e se dava conta, no meio da escrita científica, do quanto aquilo tudo se assemelhava a sua própria vida.
A condição estrangeira de Írisz — com sua herança da terra natal, incomunicável, sem poder pertencer de fato ao novo endereço — ecoa sobre você de alguma maneira?
Sim, certamente. Sou filha de refugiados de guerra que, mesmo há muitos anos no Brasil, ainda se sentem estrangeiros (pela língua, hábitos, religião) e eu mesma vivi e ainda vivo muito essa condição. Em certa medida, acredito que cada pessoa tem sua porção estrangeira ou deveria buscá-la, porque, para escrever, ela é fundamental. Todos temos uma mão canhota, uma obsessão, algo inconfessável, uma ignorância, uma incompreensão. Isso pode ser complicado para a vida cotidiana, mas é importantíssimo para a literatura. O incomunicável, paradoxalmente, precisa estar presente na escrita.
Li que seu romance se relaciona com as origens de sua mãe, com fatos reais e com pessoas consultadas para compor os personagens. Por que dar-lhes a forma de ficção? Ou o que essa ficção teve que buscar no real, por meio das pesquisas que você realizou?
Meu romance se relaciona com minha mãe, na medida em que ela nasceu numa cidade bilíngue, onde se fala sérvio e húngaro, e por ela ter morado durante dois anos em Budapeste, depois de ter voltado da guerra. Ela também nos levou para conhecer a cidade, as três filhas, quando ela completou oitenta anos. Isso fez com que eu me apaixonasse ainda mais pelo país e pela língua, pela qual eu já me interessava desde a adolescência, por causa do que dela disseram Guimarães Rosa e Paulo Rónai, entre tantos outros. Que o húngaro é a língua do diabo, por exemplo. Além disso, para falar sobre a Revolução Húngara de 1956, um dos eventos mais lindos e sofridos da história do século 20, precisei conversar com várias pessoas e ler vários livros. Conversei com uma mulher que participou da revolução, com Armênio Guedes, um comunista histórico brasileiro, com Ananda Apple, especialista em orquídeas, e outras pessoas que me ajudaram a compor a narrativa de forma mais verossímil.
Írisz parece ter vindo de um terreno instável: desde a situação/desilusão política em seu país, a perda de contato com o pai logo na infância, a condição de estrangeira no Brasil, o embate entre ter abandonado seu companheiro e sua mãe ou ter optado por seguir sua própria vida. Como ela se equilibra em meio a esse cenário, e segue espontânea, delicada e sem rancor?
Acho que seu jeito maluco, espontâneo, delicado, sem rancor, como você disse, tem a ver com a capacidade dela de lidar com as coisas. Ela não sabe direito o que acontecerá amanhã, como ela vai administrar as coisas, com muita antecedência. Ao mesmo tempo em que ela é responsável e realiza o que se propõe a fazer, ela não planeja muito. Pode ser que amanhã surja uma proposta para ir para a Amazônia e ela vá, entende? Porque ela não cria vínculos muito fortes com as coisas — embora sinta muito amor por elas — e porque está aberta ao que vier. Ela não deixa de sofrer e pode ser até que sofra mais por isso tudo, mas também não deixa de viver em função dos problemas que enfrenta. Ela tem uma dose necessária de egoísmo, digamos assim.