Para escalar e cair em versos montanhosos

 
Ana Martins Marques c Rodrigo Valente
 
Mineiramente, na miúda, Ana Martins Marques ganhou um lugar muito peculiar dentro da poesia brasileira contemporânea. Seus versos têm humor, são pródigos em achados verbais sobre sentimentos perdidos e cavoucam o lugar nenhum por trás do lugar comum; cheios de mumunhas, não fazem munganga; são, antes de tudo, minimalistas como as cidadezinhas mineiras que nos encantam a cada curva da estrada, em todo desvão de montanha. Mesmo aqueles poemas mais narrativos não são dados à fala em espaço aberto; preferem um diapasão secreto, como um sussurro a conta-gotas. No entanto, não sonegam sua vocação pop, sintética, e, felizmente, nada hermética. Ana escreve desde criança, e ainda conserva o espanto infantil sobre os astros e os desastres do mundo. "Tenho comigo alguns desses textos da infância (lembrete: queimar tudo)", confessou ela ao Suplemento Pernambuco. Porém, só lançou o primeiro livro em 2009, com mais de trinta anos: A vida submarina (Scriptum), que ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte. Formada em letras, a belorizontina safra 1977 fez mestrado em literatura brasileira e doutorado em literatura comparada — mas, em vez de se tornar professora, evoluiu por um ofício tradicional a poetas brasileiros: funcionária pública, trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa. Depois do segundo livro, muito bem acolhido por crítica e público — Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011) já está em segunda edição e levou o Prêmio Alphonsus de Guimaraens —, Ana chega ao terceiro título. O livro das semelhanças (Cia das Letras) tem forte componente metalinguístico — a primeira parte emula um livro: há poemas para a capa, a dedicatória, o sumário, a contracapa. Uma segunda parte é ligada às cartografias do coração. E a terceira, confessional como só Ana Martins Marques consegue — na manha, mineiramente mordaz: "Acendo um poema em outro poema/ como quem acende um cigarro no outro/ Que vestígios deixamos/ do que não fizemos?/ Somos cada vez mais jovens/ nas fotografias". Pernambuco conversou com a poeta não ao vivo, infelizmente — é que Ana só se abre em e-mail. E como fala! Espiemos esta tagarelante correspondência.
 
Vou confessar uma coisa a você: detesto poesia que fala de poesia. E vou confessar outra: adorei seus poemas que falam de poemas. Como foi se deter sobre o próprio fazer e não se render à fetichização ou super intelectualismo da metalinguagem - que, no limite, pode levar à frieza e ao afastamento do leitor? 
 
Ao contrário de você, eu tendo a gostar de poemas que falam de poemas: gosto da ideia de uma poesia que explora seus materiais, mais ou menos como as artes plásticas ou a música, e que procura de alguma forma pensar sobre eles. Mas entendo as suas ressalvas em relação à poesia metalinguística. Existe no Brasil uma tradição importante de poesia sobre a poesia; até por isso, o exercício da metalinguagem na poesia parece mesmo um pouco arriscado: há sempre o risco da mera repetição, ou de um excessivo fechamento da linguagem em torno de si mesma. A poesia é sim linguagem que se volta para si mesma, mas acho que nesse movimento ela pode captar, ainda que furtivamente, alguma coisa de fora. Por isso gosto de pensar que os meus poemas nunca são exclusivamente metalinguísticos: há poemas de amor “disfarçados” de poemas metalinguísticos, ou poemas metalinguísticos que subitamente se transmudam num poema de amor, ou ainda poemas que parecem tratar de outros temas e de repente se dobram sobre si mesmos... Nos meus dois livros anteriores há muitos poemas sobre poemas. Neste livro não é diferente. O que há de um pouco diferente é que agora há poemas que se voltam não só para a materialidade do poema ou da linguagem, mas para a materialidade do próprio livro. Lancei Da arte das armadilhas em 2011, e desde então venho publicando poemas por aí, em jornais, sites e revistas, o que foi uma coisa nova para mim, que estava acostumada a guardar os textos por muito tempo. Quando decidi organizar um novo livro, fiquei me perguntando como devia fazer isso, o que significava reunir esses textos antes esparsos num livro de poesia – que é, afinal, como diz Ruy Belo num prefácio, um “lugar de convívio”. Os poemas da primeira parte, que se voltam para o livro e seus elementos – capa, nome do autor, dedicatória, índice, contracapa, etc. – foram surgindo a partir dessa dúvida, dessa hesitação.
 
Como é ser mineiro e ser obrigado a conviver com a sombra de Drummond (que, de resto, se estende a qualquer poeta da língua portuguesa)? 
 
Olha, acho que nunca pensei em Drummond como uma sombra. Quando lemos Drummond, temos a impressão de que está tudo lá: a lírica amorosa, dos poemas de dicção mais elevada aos deslavadamente, docemente pornográficos. O empenho social e político, e a reflexão sobre o engajamento e seus dilemas. O verso livre, o poema-piada, a dicção coloquial e irônica, e a revisitação das formas clássicas. A poesia do cotidiano e a reflexão da poesia sobre si mesma. A poesia memorialística. O poema que incorpora traços dramáticos ou narrativos. A poesia-pensamento, com uma incrível potência reflexiva. Os poemas de circunstância. É como uma grande matriz a partir da qual várias poéticas diferentes poderiam ser construídas. Ao mesmo tempo, a “influência”, ou a “referência”, ou mesmo a “herança” nunca são passivas, mas um trabalho complexo que pode incluir a apropriação, a resistência, a desmontagem, e que sempre supõe, como diz a Silvina Rodrigues Lopes, ao mesmo tempo amor e infidelidade ao que se recebe. A questão é sempre como construir, a partir da memória e do esquecimento das nossas leituras, um caminho pessoal, um entendimento do que a poesia pode ser, das forças que ela pode colocar em movimento.
 
Você integra uma geração que, a meu ver, oxigenou a poesia brasileira — e, talvez, não por acaso, são todas mulheres: Angélica Freitas, Bruna Beber, Alice Sant'Anna, Laura Liuzzi, Marília Garcia e muitas outras. Percebo — de modo bem genérico — nestas poetas um apreço pela fluidez que aproxima os versos de uma dicção prosaica (possivelmente um eco de Ana Cristina César). Você se reconhece nestas poetas, nesta geração? 
 
Acompanho a escrita delas com o maior interesse, com admiração, com alegria. Consigo ver certos pontos de contato, e também, claro, algumas diferenças de percurso. Sua hipótese de que essa familiaridade passa pela Ana C. é bem interessante, embora o modo de colocar em funcionamento esse diálogo seja obviamente diferente em cada uma das poetas que você cita. A Marília Garcia, por exemplo, trabalha muito com a narratividade, o poema longo, que estabelece uma relação com o ensaio, e também com a anotação, próxima do diário. É uma poesia que pensa e que se pensa, e que atravessa várias paisagens: paisagens da viagem, da memória, mas também da tradução, do cinema, da reflexão teórica sobre o que faz de um poema um poema (atenção, Academia Brasileira de Letras: Um teste de resistores foi publicado em 2014!). A Alice também explora essa dimensão narrativa em muitos de seus poemas, que frequentemente são pequenas histórias, ao mesmo tempo que mantém um sentido muito acurado do corte do verso. A Bruna tem uma apropriação muito legal da oralidade, um trabalho de recolher restos, ruídos, um corte rápido, quase brusco, que cria aproximações inesperadas; são poemas que, embora também funcionem no papel, convidam à leitura em voz alta, pedem para ser sonorizados. Tem uma música do poeta Renato Negrão, gravada pela Juliana Perdigão no seu Álbum desconhecido, ambos aqui de Belo Horizonte, que diz: “Que bom, que bom, que bom ser contemporâneo seu”. Mais do que identificação ou reconhecimento geracional, o que sinto é essa espécie de alegria de conviver (mesmo que só pelos livros, mesmo que só pelas palavras que trocamos) com essa turma. 
 
Vou te encaminhar uma pergunta que me fizeram em uma recente mesa com outros escritores (todos homens): existe literatura feminina? E mais: existe literatura feminista? E além: a militância em uma causa é essencial à literatura? 
 
Pessoalmente sempre me incomodou que a recepção da literatura escrita por mulheres ficasse frequentemente atrelada à questão do “feminino”, que essa fosse quase sempre a questão de início, o que nunca acontece em relação à literatura escrita por homens. Nunca vi nenhum homem ter que responder se, afinal, existe ou não existe “literatura masculina”. O fato de um escritor ser homem não é considerado uma idiossincrasia, uma singularidade, e a literatura escrita por homens nunca ou quase nunca é lida como “literatura masculina” (ela é lida como “universal”, embora “masculino” e “masculinidade” sejam posições tão construídas quanto “feminino” e “feminilidade” e embora obviamente seja possível detectar marcas de uma “experiência masculina” em textos escritos por homens). Para mim a escrita literária é um lugar de deslocamento, de invenção, de alteridade; me interessa pensar a literatura como esse lugar instável em que as identidades são colocadas em xeque, ou são expostas em toda a sua força de metamorfose – um lugar em que a identidade não se “expressa”, mas se “inventa”, se “joga” –, e sobretudo acredito que o poder e a radicalidade da literatura dependem de que ela não seja redutível a um discurso, seja sociológico, seja filosófico ou moral; de que ela não seja lida como mero veículo ou suporte de um discurso prévio, por mais bem-intencionado que ele seja. Isso obviamente não me impede de notar o quanto o sistema literário, apesar da ampliação expressiva da presença das mulheres, ainda se mantém em muitos aspectos predominantemente masculino. Publicar é fazer uma intervenção no espaço público, é tornar público, e o espaço público foi por muito tempo reservado aos homens e ainda é em grande parte masculino, embora isso esteja felizmente mudando. Então eu tenho em relação a essa questão uma posição um pouco ambivalente (e talvez propositalmente e necessariamente ambivalente): me interessa afastar certos rótulos rápidos e a postulação de posições identitárias rígidas ou de uma “essencialidade” feminina que se manifestaria nos textos escritos por mulheres, e ao mesmo tempo assumir uma atenção crítica em relação às questões de gênero no espaço literário, que inclui não somente os textos propriamente ditos, mas as instâncias de legitimação, as editoras, o jornalismo cultural, as escolas, a universidade, a historiografia e a crítica literárias, os festivais, as premiações. 
 
Sua poesia também embute no lirismo o humor nonsense, como em 'Poemas reunidos' e na seção 'Visitas ao lugar-comum'. Me parece que esta marca ficou mais característica neste livro. Existe uma busca pela leveza ou é você quem anda mais bem-humorada? 
 
Legal você dizer isso; acho que os meus poemas têm sim um certo humor, mas se não me engano ninguém nunca me disse isso (o que deve querer dizer que esse humor não funciona lá muito bem...). Não sei se é uma marca desse último livro. Vejo algum humor em poemas dos livros anteriores, ou pelo menos alguma ironia, sobretudo nos poemas de amor. Nós tendemos a desconfiar dos poemas de amor, ou ao menos nós já sabemos que o amor é uma coisa aprendida nos poemas de amor; tem algo de cena, ou de citação, em cada poema de amor, e me interessa jogar com isso nos meus textos. É como se houvesse dois impulsos em guerra no poema: esse impulso amoroso, que é um impulso de dissolução, e um certo recuo irônico, que tem a ver com a própria escrita. 
 
As tuas “cartografias” são na verdade mapas do desejo, da busca pela aproximação e pela diluição de fronteiras. Você prefere a poesia para se perder ou para se encontrar? 
 
Gosto muito de um trecho do Walter Benjamin, com que ele começa seu Infância em Berlim por volta de 1900: “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”. A poesia então talvez seja um jeito de encontrar esse modo de se perder, uma espécie de guia de instrução para desorientar-se – um mapa para os que querem se perder? E você tem toda razão ao dizer que os poemas da seção “Cartografias” (pelo menos a maior parte deles) são “mapas do desejo”. Mais uma vez, lembro de uma passagem do Benjamin em que ele diz que, quando envelhecesse, gostaria de ter um mapa de Berlim pendurado no corredor de casa, com legendas: pontos azuis designariam as ruas onde ele morou, pontos amarelos, as ruas em que moravam suas namoradas, etc. Os mapas das cidades são sempre assinalados com as marcas dos nossos afetos, são sempre refeitos a partir dos nossos percursos, e a ideia das “Cartografias” era explorar como os afetos formam e deformam nossa relação com os mapas e os lugares. 
 
Por fim, a seção 'Livro das semelhanças', permeada de melancolia e 'afastamentos', parece adivinhar a impossibilidade do desejo morar dentro da palavra desejo, bem como ser 'dos solitários o amor'. Não há conforto possível, talvez nem mesmo na poesia? 
 
Se existe alguma linha que costura os poemas dessa seção (que é menos evidentemente “temática” do que as outras três) é mesmo isso que você chamou de “afastamento”, ou essa indagação sobre o intervalo, a fratura, entre as coisas e as palavras, ou entre o mundo e suas representações (que está também nas “Cartografias”): “Quanto do desejo mora/ na palavra desejo?”. Nunca pensei na literatura como lugar de conforto. A literatura, e a poesia em particular, não vai nos dar respostas ou programas, nem vai nos dar acesso a algum conhecimento sistemático sobre o mundo, mas ela pode dar forma à nossa perplexidade, aos nossos medos, ao nosso desejo, aos nossos desequilíbrios e aos desequilíbrios do mundo. A poeta Luiza Neto Jorge tem um verso muito bonito que diz “O poema ensina a cair”. O poema, se for um bom poema, vai nos ensinar a cair, vai gerar desconhecimento, dúvida, hesitação, vai complicar a vida, nos tornar mais inquietos, mais desamparados, mas vai também nos convidar a ver o mundo de uma forma mais complexa, a mudar a compreensão que temos de nós mesmos e dos outros.
 
Em 'É bom lembrar lembranças dos outros', você sugere viver no alheio para que possa se encontrar. De que maneira as viagens e as paisagens distantes influenciaram sua poesia? 
 
Estou bem distante da imagem do “escritor viajante”. Não só viajo pouco, mas para mim escrever e viajar são coisas meio incompatíveis. A não ser talvez naquele sentido que está nas Galáxias, do Haroldo de Campos: “Um livro de viagens onde o livro é a viagem”. Para responder sinteticamente: é bom viajar viagens dos outros. 
 
'O passado/ ao contrário dos gatos/ não se limpa a si mesmo', você diz, num ótimo achado (demonstrando sua vocação de escritora gatófila). O passado também é um valor caro à poesia de Minas — mas em sua poesia ele aparece menos de forma confessional, concreta, do que veículo a uma reflexão mais abstrata. Essa falta de confessionalismo e o flerte com os significados surpreendentes de palavras e seus encontros inesperados fazem com que sua poesia soe universal. O quanto desse procedimento é busca por contenção e o quanto é sintoma da discrição mineira? 
 
Você tem razão: o passado aparece nesse livro menos como memória pessoal do que como indagação ou reflexão. Mas não sei dizer se isso de alguma forma se relaciona a uma discrição, e ainda menos a uma “discrição mineira”... Escrever poesia confessional realmente não me interessa. Sobretudo porque esse modelo da poesia como expressão de alguma coisa prévia, que já estava lá, pronta, à espera, retira o que há de mais interessante na escrita, que é um sentido de descoberta, de figuração de algo que antes não existia, que só passa a existir ali, naquele poema. 

 

Poemas de O livro das semelhanças

As casas pertencem aos vizinhos
os países, aos estrangeiros
os filhos são das mulheres
que não quiseram filhos
as viagens são daqueles
que nunca deixaram sua aldeia
como as fotografias por direito pertencem
aos que não saíram na fotografia
— é dos solitários o amor
 
Podemos atear fogo
à memória da casa
desaprender um idioma
palavra por palavra
podemos esquecer uma cidade
suas ruas pontes armarinhos
armazéns guindastes teleféricos
e se ela tiver um rio
podemos esquecer o rio
mesmo contra a correnteza
mas não podemos proteger com o corpo
um outro corpo do envelhecimento
lançando-nos sobre a lembrança dele
 
Minas
 
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
 

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