Jeroni Fernanflor pode não ser o tipo que se quer por perto, mas há que se admitir: Je suis Jeroni. Neste novo romance de Sidney Rocha, que sai pela Iluminuras e é o primeiro de uma trilogia, o personagem hedonista ostenta nossos medos, vícios e ambições. Com direito a momentos trágicos, poéticos e hilários.
Narrando a formação, o êxito e o declínio desse pintor que preza mais o belo do que o próximo, o escritor cearense radicado em Pernambuco trata de um quadro que muito lhe interessa: a vida interior. Em Fernanflor, contudo, o autor dos contos de O destino das metáforas e do romance Sofia, entre outros, não pretende que o leitor encontre um espelho, mas “um artefato explosivo, que faça pensar e sentir de outra maneira”.
Na conversa a seguir, Rocha fala sobre o projeto de sua trilogia, a passagem do tempo, pintura e esse personagem que achou que era deus.
O herói da narrativa é um tipo arrogante, ambicioso, vaidoso, individualista, que desdenha os sentimentos e para quem os relacionamentos com as mulheres têm “duração folhetinesca” — mas que parece ter plena consciência disso e uma visão crítica da sociedade em que se insere. Como surgiu Jeroni Fernanflor?
Muita acertada sua observação. Percebeu com muita clareza o que está escrito ali. Quanto ao surgimento do personagem, é muito fácil responder: surgiu de observar as pessoas. Todas. Se Madame Bovary era Flaubert — tenha ele dito a frase ou não — o certo é que Fernanflor somos todos nós, todos nós. Tanto o que nós vivemos quanto o que nós pensamos que vivemos. E o que os outros pensam que vivemos. Como um estranho jogo de espelhos. Fernanflor é a minha “lição de abismo”.
Fernanflor é o primeiro volume da trilogia que você prepara. Os outros dois projetos estão definidos? De que maneira os livros vão dialogar?
Sim, totalmente definidos, mas, se concordamos com Fernando Pessoa quando se definiu como um indisciplinador de almas, nem sempre sigo o projeto, há muitos desvios que tomamos ao longo do caminho, só tento evitar os atalhos. Se Fernanflor pode ser considerado, à sua maneira, um romance de formação, digamos que os outros dois serão romances de “deformação”. Os três livros dialogam de três maneiras diferentes. Com personagens que chegam e partem. Com alguns que ficam, mas são de outro lugar. E com aqueles que trafegam, em idas e vindas. Refiro-me, é claro, a certas cenas, características, vozes e propósitos que serão comuns aos três livros, quanto à estrutura, mas de todo diferentes quanto à história e aos propósitos. Mas explico de modo mais direto, para que isso não soe vago ou confuso — o que aí parece ser tem mais a ver com a complexidade do projeto, menos voltado para a “forma” que para o conteúdo, o “dentro” dos personagens, a alma deles, se podemos dizer assim, algo que é constante nos meus livros, desde que publiquei meu primeiro romance. O mundo interior me interessa com maior voracidade do que a um viajante o mundo exterior.
Você disse ter Cortázar como forte referência para seus contos. E no romance, qual autor é seu “modelo”?
No romance, infelizmente, não há um modelo. Teria sido mais fácil escrevê-lo se houvesse.
Que aspectos de cada gênero — romance e conto — lhe interessa explorar?
Do romance me interessa a abertura extrema, é o gênero em que tudo cabe, a libertinagem da inteligência até o nível da perversão da sensibilidade. No conto, a emoção condensada como nitroglicerina e outros venenos, mas sempre a ponto de explodir, e muitas vezes explodindo, mesmo. Quero que Fernanflor não seja para o leitor um espelho, seja mesmo como um artefato explosivo, que faça pensar e sentir de outra maneira. Mais que um reencontro, uma descoberta. Espero que quem adquirir o romance consiga chegar a sentir isso, pois se há uma ambição no livro é esta, sem dúvida.
O personagem se coloca uma velha pergunta, que a pintura moderna tentou responder: “Como traduzir em imagens os mundos desse mundo interior?”. Essa é uma questão que lhe preocupa enquanto escritor? Como procura traduzir o mundo em palavras?
Conforme comentei, tudo no que escrevo está mesmo conectado a esse mundo interior. Mas digamos que é um mundo interior inteiramente voltado para fora, das figuras em ação e convivendo com outras. Mais que uma preocupação, uma ocupação, é a nossa forma de ação — sem trocadilho. E porque nunca conseguimos o que queremos tentamos de novo, e de novo, e de novo.
E qual é seu interesse ou sua relação com a pintura?
Interesso-me pela pintura, como por todas as coisas, quando é útil ao que estou escrevendo. Mas, claro, como Rimbaud, eu também sei contemplar a beleza, essa Gioconda que jamais engorda nem envelhece nem morre. Não me limito, porém, é claro, a esse interesse de pesquisa para romances, nem somente, como um espectador de museu, gosto de olhar para os quadros como narrativas e até tenho trabalhado isso nos cursos que dou.
Você é conhecido por inovar na estrutura dos textos e na linguagem. A inovação é, de fato, uma premissa e preocupação sua?
Não, nunca me preocupo com isso ao escrever. Tento só e humildemente fazer o meu trabalho do melhor modo que posso, e o leitor é quem dirá se a experiência ou a inovação foi conseguida ou não. Um escritor é sempre um juiz precário, começando por si mesmo.
Em uma entrevista, você afirmou ter interesse em criar uma linguagem o mais brasileira possível mas, ao mesmo tempo, o mais universalizante possível. O que seria uma linguagem brasileira?
Aquela que não tente imitar nem macaquear de modo provinciano nenhuma outra língua ou cultura.
O tempo parece ser uma das questões que mais afligem Jeroni: o tempo morto do passado, o bombardeio do presente e a finitude pela qual o personagem é surpreendido. O próprio narrador pergunta: “O que mudou no mesmo Jeroni?”. Como você lida com essa questão?
Acompanhando e desfrutando das transformações. O que está morto, mas nunca completamente. Somos mesmo o rio de Heráclito, de que tanto gostava um autor como Borges. Jeroni é parte dessa água, em permanente fluxo e ebulição. Mas a passagem do tempo nele, como em nós, é mais do que essa dimensão metafórica; é a morte, a passagem. É a certeza de que, por vaidosos que sejamos e que, mesmo reconhecendo que o homem põe vaidade até na morte, no final “não somos”, “não seremos”. Fernanflor desaparece, é água na água. Mas as tintas, coisas também líquidas, conseguem construir ilusões. Assim também vivemos, construindo ilusões, nossas adoráveis miragens, e é bom que assim seja, porque de outra maneira nem viveríamos.
Você frequentemente afirma que a grande questão da literatura hoje é o leitor — ou sua falta. O que poderia contribuir para a formação de leitores? Por que há tão poucos leitores?
Cada livro tem de inventar os seus leitores, sobretudo quando eles ainda não existem. Quanto à formação deles, ou o fomento de plateias, não é tarefa que deva preocupar a um escritor. O escritor deve escrever, o melhor que possa. Cabe aos governos e aos que publicam livros trabalhar por essa formação, porque, sem leitores, o que é um país? E o que seria dos que vivem desse estranho comércio que é o dos livros? Um escritor é sempre um leitor. Mas respondendo de forma direta: o que pode contribuir para a formação de leitores é a educação e a família, mostrando e praticando, e melhorando o nível, e, claro, dividindo o bolo do tempo de outro jeito, pois o dia continua a ter 24 horas, e o bombardeio de informação não para, e não só da literatura. Há que eleger, que filtrar, que ensinar a ler melhor para que haja leitores melhores, e com prazer.
Você participou do Ocupe Estelita, movimento social por direitos urbanos, e se posicionou publicamente quanto ao assunto. Questões atuais, como o direito à cidade, entram de alguma maneira na sua literatura? O que seria um escritor do seu tempo?
Nunca me preocupo com isso quando escrevo, preocupo-me somente com a linguagem.