
Quando é só Lourenço, é qualquer pessoa, desimportante, quase invisível. Mas se alguém escuta Mutarelli, o tratamento é outro. Contemplações, reverências, eis o escritor ou, mais recentemente, o ator de cinema, aquele moço que faz o pai de família no tão falado filme Que horas ela volta?. Não é preciso ser íntimo do autor para saber que o próprio estigma de "autor" o repele. Possivelmente é por isso que, em seu mais novo romance, Lourenço Mutarelli acuse ele próprio, ou ao menos o seu nome, de ser uma farsa. Escritor mesmo é Mauro Tulle, uma pessoa que é duas ao mesmo tempo. Em O grifo de Abdera (Companhia das Letras), prosa e quadrinhos se confundem em um romacista que, para além do exercício de se colocar na pele do outro na intenção de criar um personagem, acredita mesmo viver a vida desse personagem. Conversamos um pouco com o homem por trás de todos esses outros homens para saber as motivações de seu mais novo livro.
Num primeiro momento, O grifo de Abdera soa como uma imersão completa em tudo que te cerca. Mas no fim de tudo, parece justamente o oposto disso, você querendo fugir de todos esses elementos, colocando mesmo o nome de Mutarelli como um farsante. Essa sensação de farsa é algo importante pra você quando se pensa em literatura?
Eu costumo partir de uma ideia e vou seguindo ela ao longo da escrita. No caso desse livro, começou muito como uma brincadeira e fui me misturando. Tenho uma questão de farsa forte, na verdade, em torno desse glamour que a literatura carrega, sendo que quase ninguém vive disso.
Teu trabalho enquanto ator é também uma maneira de fugir de você mesmo?
Eu sou muito diferente do personagem que me imagino. Fujo de mim toda noite, bebendo, ali deixo de ser eu. No fim, é tudo uma grande brincadeira. A grande farsa que é você ter um nome. Fiz, uma vez, um exercício numa das oficinas que dei. Essa oficina durava dois módulos de quatro meses e no final das aulas pedia para cada um descobrir o seu verdadeiro nome. Acho que foi aí que cheguei no Mauro Tulle, um cara muito mais chato do que eu.
Existe um claro questionamento teu neste último romance de como o mercado editorial funciona, os pesos que são dados aos escritores, aos eventos, os valores reais que cada um ganha nesse processo de publicação de um livro. Como esses processos, do qual aparentemente não se pode fugir, te afetam?
Quem é escritor ou trabalha com qualquer foma de arte tem uma necessidade maior do que tudo isso, de alguma forma eles sabem que a gente vai continuar fazendo. E aí você se cerca dessas armadilhas. Houve uma época em que eu fiquei muito revoltado com esses valores, mas realmente não tinha muita escolha, porque até mesmo numa publicação independente, onde teoricamente você ganharia mais, acaba havendo mais custos e mais trabalho envolvido.
Seu novo livro é também uma tentativa de brincar com o rótulo da autoficção?
Confesso que nem estava pensando nisso, até que alguém escreveu, acho que no Facebook, que eu me "rendi à autoficção". O curioso é que Caixa de areia (uma HQ) é muito mais autoficção do que esse livro. Sempre me falaram que meus quadrinhos eram autobiográficos, e nunca eram. Porque acho que existe uma fascinação também em acreditar que a vida daquele autor é algo extraordinário. É muito comum, por exemplo, eu ser mal tratado nos lugares. Até descobrirem que eu sou o escritor Lourenço Mutarelli. E isso é tão estúpido, porque eu já estava lá, eu sou aquilo mesmo que foi desprezado.
O escritor Ricardo Lísias começou a ser investigado por "suspeita de falsificação de documento público" graças a um parágrafo de seu livro Delegado Tobias. Por que você acha que a apropriação literária, seja da realidade, seja da própria ficção, está sendo perseguida?
Acho que, além disso, tem também a questão das biografias e tudo aquilo sobre proibi-las. Confesso que, nesse caso de Lísias, fiquei muito na dúvida se ele está sendo processado mesmo ou se ele criou isso também, porque ele é hábil em construir esses mistérios. Acredito que é tudo um exercício de ficção. Mesmo escrever sobre a vida de alguém, ainda que você use documentos, depoimentos, é uma construção fictícia. Em O grifo de Abdera, brinquei com alguns dos meus amigos, mas não brincaria com alguém que não conheço.
Você pré estabeleceu um roteiro de acontecimentos antes de começar a escrever esse livro?
Apesar dele ficar saltando no tempo, eu realmente escrevi na ordem. Mas no próximo livro, por exemplo, estou fazendo uma agenda de tempo prévia para não me perder.
Qual será o próximo livro?
Por enquanto, eles se chama Livro IV e ou o filho mais velho de Deus, é um desenvolvimento daquele projeto do Amores expressos, do qual participei. Lida também um pouco com questões mitológicas, há uma personagem que pesquisa sobre demonologia (estudo dos demônios).
Você se questiona enquanto escritor em O grifo de Abdera, de não conseguir, por exemplo, escrever aquilo que se chama um romance de fôlego. Por que?
Eu conheço meu fôlego como corredor. Os meus livros têm mais ou menos o mesmo fôlego, que é de curta distância. Confesso que o que eu gosto é trabalhar com experimentação e nesse livro eu desenvolvo isso. Exemplo, eu tenho um público muito distinto, quem lê minha literatura não lê meus quadrinhos e vice-versa. E daí que no Grifo de Abdera eu faço literatura e quadrinhos, e não são quadrinhos fáceis. Estou curioso para saber como os leitores de romances vão lidar com isso.