De todas as histórias que Miró conta de peito aberto, no orgulho de quem nunca se amigou de uma vida mediana, sempre houve uma que servia como introdução à sua relação com a poesia: em 1985, ele largou seu emprego de servente na Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e decidiu viver única e exclusivamente de seus versos. Três décadas se passaram desde o último salário. E hoje, Miró, na glória de quem sempre se avizinhou dos arrebatamentos, tem outra história pra contar: quando lhe avisaram que havia chegada a hora do checkout, ele pagou do seu próprio bolso mais uma diária de hotel em bairro nobre do Rio de Janeiro, simplesmente porque podia. Entre uma e outra intervenção de fãs e amigos que passam pelo Recife Antigo enquanto conversamos, um dos homenageados da última Bienal do Livro de Pernambuco fala aqui sobre seu novo livro, aDeus (da editora independente Mariposa Cartonera), e sobre renascimentos.
O quanto da tua poesia está contida no teu corpo?
Eu tinha uma professora no colégio que mandava a gente ler textos. Ela falava: amanhã, página 38. Você ia pra casa estudar o texto pra poder ler no outro dia. E nesse outro dia ela puxava a gente por números: “Número 23”. Era eu. E eu lia uma parte do texto e qualquer pessoa que viesse depois de mim tinha que estar prestando atenção pra saber de onde continuar. Mas aí com o tempo percebi que ela sempre me chamava primeiro. Perguntei: “Professora, por que a senhora toda vez me manda ler primeiro?” Ela respondeu: “Porque você tem pausa, você sabe ler”. Foi a primeira pessoa que entendeu. Eu era péssimo em tudo, mas aquilo eu sabia fazer. A coisa do corpo acontece depois do momento em que vi uma apresentação de Manuca, da Bahia, no Teatro Valdemar de Oliveira. Foi ali que entendi: porra, é isso, falta soltar os braços. Eu ficava olhando pra Manuca, magrinho, mas com uma força enorme, e pensava que minha voz e meu corpo podiam fazer parte. Brinco que peguei carona com ele usando minha própria gasolina. Porque isso já estava em mim. Quando falo da história da professora, é pra lembrar também que quando ela me mandava ler na sala de aula, eu era o único aluno que se levantava. Ninguém mais fazia isso. Pois hoje, se prenderem meus braços, não sai poesia.
É correto dizer que sua poesia também se alimenta da sua circulação na cidade?
Sim, mas como eu fiquei doente e entrei numa fase de alcoolismo, passei muito tempo sem vir para a cidade e circular nela. Então, esse último livro, por exemplo, não tem muito da cidade, ele é mais interior. Eu tinha esquecido de mim. Não fazia outra coisa a não ser ir pro bar. Agora que estou morando no centro da cidade é que sinto que, em breve, vêm umas bombas terríveis por aí. Aos poucos, as coisas estão ficando mais urbanoides. Confesso que antes eu não estava ouvindo e vendo a cidade porque minha vida era beber e dormir, vomitar e dormir. Minha felicidade de estar vivo agora, de não adeus a mim, não tem me feito, ainda, sentir as dores da cidade. Não estou com tempo ainda de respirar essa neurose das ruas, do esquecimento do humano. Por enquanto, o meu olhar ainda é de alegria comigo, de colocar meus dentes, de saber que não morri, de saber que agora tenho dinheiro pra pegar um táxi. Fiz há poucos dias um poema olhando pro rio Capibaribe. Isso porque um velhinho, que eu não imaginava nunca que fumava maconha, chegou perto e me falou: “E aí Miró, quer caminhar alegre?” Resultado, dei uns três pegas, e pra quem não está bebendo nada isso muda tudo. Fiquei na parada de ônibus, olhando o rio e escrevi o que deve ser o primeiro poema do próximo livro, que vai se chamar Oitavo dia [foi no oitavo dia que, no hospital, Miró percebeu que só ele conseguia andar “e o resto era câncer”. Ou seja, não ia morrer ainda]. “Nunca mais tinha parado para olhar o rio Capibaribe, coração de água da cidade, pontes, saias molhadas, pescadores pescando vidas antes da Conde da Boa Vista. Agora, meus olhos mergulham tranquilos neste mar de aço, neste mar de ônibus. Vi a morte de perto, por isso não pago mais passagem. Agora, eu posso parar, olhar e ir. Embora, novamente.” Já sou eu olhando a cidade, e mesmo com todo o lirismo, consigo ver um pouco essas perturbações do “mar de aço”.
Esses ritmos diferentes entre você tranquilo e a cidade do “mar de aço” já se nota em um poema desse teu mais recente livro, quando você diz “as pessoas estão passando para mais uma segunda-feira, eu sentado no banco da praça, ainda sou domingo”. É isso que acontece?
Sim. Essa loucura que a cidade está passando eu deixei um pouco pra trás. Talvez a lentidão do álcool, a coisa da idade e, talvez também, por eu ter me visto tão perto de morrer, me fez pensar que eu não preciso mais dessa pressa que o povo tem.
A verdade está na realidade ou na ficção?
A verdade? Acho que ela está na rua. Mas é plural. Não pode existir uma só verdade se você é branca, eu sou preto, se alguém é do Náutico e o outro é do Sport. Mas na verdade, não sei se existe verdade. Ninguém sabe o que acontece depois que você morre, então eu não sei de nada da verdade. Por exemplo: o cara tá atrasado e fica puto porque perde um voo, dá escândalo com todo mundo. Pouco depois o telefone dele toca. Ele atende dizendo que tá puto e a mulher apenas pergunta se ele está vivo. “Por que?” “Porque o avião caiu, amor”. Ou seja, talvez não exista verdade, só exista mesmo o mistério. E é disso que eu me alimento.
Você vive de poesia sem, no entanto, ceder ao mercado editorial. Como isso acontece?
Todo dia eu ando com meus livros na bolsa. Todo dia, sem oferecer, eu vendo dois, cinco ou dez livros. Aqui no Recife, depois de aDeus, não teve um dia ainda que eu não saí na rua pra não escutar um “Ôôô, tá com o livro aí, doido? Me vende um que minha mulher é tua fã”. Vendo o livro. Vinte reais. Dez é meu, dez da editora. Aí o cara: “Me dá outro. Tu é muito engraçado e olha que eu não entendo porra nenhuma de poesia.” Conheço um cara que tem todos os meus livros. Um dia conheci sua mulher, que estava ao lado dele num recital meu. “Prazer, sou sua fã, muito obrigada pelo que o senhor diz. E olhe, ele (o marido) lhe imita. E ele não gosta de ler livro”. Quer dizer, o cara compra o espetáculo. É por isso que eu não preciso de livrarias.
O que é o “alegrismo filosófico” que você cita nesse último livro?
Talvez seja dizer banalidades com profundidade. É do nada, o cara dizer tudo. É aquele momento em que, na hora de pico, você entra no ônibus lotado e vê uma cadeira lá no fundo vazia. E aí você vai todo animado chegar nessa cadeira pra ver que ela está vomitada. Quando eu desci, escrevi: “Por trás de um ônibus lotado e uma cadeira vazia, há sempre um grande vômito.” Pronto, está ali a “filosofia pra pular”. O alegrismo vem dessa brincadeira. Estou com 55 anos e nunca dei um murro em ninguém. Porque eu sempre estive muito mais próximo à brincadeira, a achar engraçado as coisas dos outros. Talvez o medo da morte, que eu tenho desde criança, me fez alegre, como uma forma de combater esse medo.
É comum o mercado, a crítica, dividir aquilo que eles definem como literatura e aquelas outras literaturas adjetivadas. Ou seja: literatura feminina, literatura periférica e por aí vai. O mesmo acontece com os americanos. Quem não é branco nos Estados Unidos, é afro-americano, latino-americano, nativo-americano, ou seja, americano adjetivado. O que fazer com esse hifens?
Já me rotularam com vários deles. Primeiro foi poeta marginal. Nunca gostei muito disso, mas aqui no Recife se falava que esse marginal era também porque estávamos à margem dos rios. Mas enfim. Depois veio Miró da Muribeca.
Se você fosse de Boa Viagem não seria Miró de Boa Viagem.
Não seria. É exatamente isso. Ou seja, essa coisa do nome que vem depois é uma merda. Esse hífen trava, ele não goza. A coisa do rótulo é terrível. Por exemplo, agora que não estou mais bebendo, já tou vendo gente dizendo que não sou mais o mesmo, que isso e aquilo. Mas eu não quero mais ser o que as pessoas dizem que eu sou. Não quero mais ser o poeta bêbado, não quero mais chegar pra conversar com a pessoa com cheiro de álcool, não quero mais marcar com alguém às 9h30 e não ir. Esse aDeus é também o adeus ao Miró que eu era.