Professora e pesquisadora de Literatura Contemporânea Brasileira na UERJ, Giovanna Dealtry tem ciência de que as redes sociais, particularmente o Facebook, podem funcionar como ferramentas de debate e criação de conteúdo essenciais ao viver contemporâneo. E, recentemente, o que se vê nesses ambientes virtuais é um desvio do roteiro natural do protagonismo narrativo tal qual o conhecemos antes, durante e depois de Virginia Woolf ter escrito sobre os bloqueios materiais que a sociedade patriarcal impôs à mulher, para que ela não exercesse seu próprio pensamento. Hoje, entusiasmada com essa mudança de eixo narrativo, ao menos no campo do virtual, Giovanna está organizando um livro inspirado na campanha #meuprimeiroassédio, com depoimentos (anônimos ou não) de mulheres relatando como e quando elas foram pela primeira vez assediadas e, em alguns casos, estupradas por homens. Em conversa com ela, tentamos refletir um pouco sobre as campanhas feministas mais recentes que povoam as redes sociais, campanhas essas que não deixam de ser também um reflexo de algo que a literatura vem também discutindo quando fala em subrepresentação de escritoras e personagens mulheres.
De que forma as redes sociais - Facebook e Twitter principalmente - estão mudando o eixo da narrativa que, historicamente, sempre foi dada ao homem branco?
Narrar é possuir, ainda que momentaneamente, o discurso. E o poder sobre o discurso sempre foi objeto de disputas políticas. Até meados do século XX, pouco importava quem falava, mais o que se falava. (Ou pelo menos era isso que o "homem branco" nos queria fazer crer). Foucault demonstra isso muito bem na Ordem do Discurso, em Vigiar e Punir etc. Há um discurso que se perpetua por meio das instituições; legalistas, médicas, acadêmicas etc. As redes, a meu ver, implodiram a lógica estabelecida entre poder e discurso. Meu poder passa a ser o meu discurso. E isso tanto funciona para o bem como para o mal, obviamente. Você pode ter um fascista atraindo multidões, quanto mulheres periféricas que se tornam mundialmente conhecidas. Ou seja, o que já se discutia, em termos teóricos, há algum tempo: o fim do narrador único, a polifonia, está acontecendo. Do ponto de vista da luta feminista, eu acho fantástico. Mulheres que se sentiam isoladas, sozinhas, estão se encontrando virtualmente, organizando ações, usando as plataformas como mídias sociais, realmente. Eu acredito muito nessa força que vem daí.
Na literatura, Sherazade é uma personagem que simboliza bem essa tomada da narrativa e o faz de uma forma irônica, seu poder de persuasão se torna mediador no processo de mensagens subliminares. Há alguma semelhança entre o subliminar em Sherazade e o subliminar nessas campanhas?
Acho que há um elemento interessante nessa sua pergunta. Sherazade precisou contar histórias para sobreviver. Sim, seu poder de persuasão vai ser usado para "modificar" o Rei, que acaba se apaixonando por ela. Mas a ideia de narrar para sobreviver me parece um ponto que nos aproxima mais. Essas mulheres precisam, quase que fisicamente, falarem, depois de tantos séculos silenciadas. Falar sobre uma violência diária, sobre como sobreviver por mais um dia. Como dizia Guimarães Rosa: narrar é resistir." E é também re-existir. Tomar a existência nas próprias mãos a partir da narrativa. Por isso, ainda vamos ver muita raiva, muita dor, muito ódio, mesmo. Porque tudo está sendo dito, de forma coletiva, pela primeira vez.
Há quem questione a natureza anônima das denúncias que estão sendo feitas, principalmente no caso da campanha #meuamigosecreto. Por que essas campanhas precisam ser anônimas?
A Lola Abranovich mantém seu blog Escreva, Lola, Escreva, há oito anos. A quantidade de mensagens de ódio que ela recebe diariamente é absurda. E mais absurda ainda são as mensagens a ameaçando, a aos seus familiares, de estupro, morte etc. Publicam o endereço residencial dela nas páginas de ódio, por exemplo. E ela diz que não vai se calar. Agora, imagine uma mulher comum que todos os dias ouve o seguinte: isso é mentira sua, você é louca, fulano (o pai, o tio, o marido) é ótimo, nunca que ele te bateria. Se ele te bateu é porque você fez algo etc. Essa é a realidade da maioria das mulheres brasileiras: o descrédito, a desconfiança. Quando começou a campanha do #primeiroassédio, muitas mulheres foram atacadas. Encontraram muito apoio, é claro. Mas encontraram também violência por parte dos homens. Eu, particularmente, adorei essa nova campanha #meuamigosecreto. Porque afinal não é uma denúncia sobre um sujeito em particular, mas sobre comportamentos que se repetem: o homem que defende a relação aberta, mas só para ele, não para a mulher; o homem que se separa da mulher e para de ver os filhos; o que é contra o aborto, mas quado a namorada fica grávida fala pra ela "se virar"... Então, acho que foi uma forma bem humorada, irônica, sarcásticas mesmo, das mulheres virarem o espelho na direção dos homens e os obrigarem a se confrontarem com suas imagens, práticas e discursos.
Quando essas campanhas, que nascem em núcleos feministas, são reapropriadas por homens, o que isso significa?
Significa que estamos incomodando (risos). Então, estamos no caminho certo. O feminismo, assim como as ações vindas de outros grupos oprimidos, precisa incomodar para mostrar que não somos mais passivos, que não vamos mais deixar homens decidirem qual é o feminismo correto, qual é o feminismo que agrada.
Você está organizando um livro com depoimentos enviados a você que repercutem a campanha do #meuprimeiroassédio. Dos depoimentos coletados até agora, dá pra perceber algo mais constante entre eles?
Sim..Infelizmente, são histórias que se repetem. A maioria das histórias que chega até mim é de abuso sexual, infelizmente. Mulheres que nem tiveram coragem de escrever suas histórias no Facebook ou no Twitter. Então, há termos que se repetem, como "culpa", "nojo" do próprio corpo, "medo". E há também algo que me dói muito, sempre: o "eu nunca contei isso pra ninguém", "é a primeira vez que eu conto para alguém"... Há relatos de mulheres que começaram a fazer terapia devido aos traumas causados pelo abuso e não conseguem contar pro analista. Então, elas sentarem e escreverem essa história pra mim, uma total desconhecida, só tem uma explicação: a confiança que uma mulher feminista pode despertar nas outras. Porque é meu nome que está ali. Elas conversam comigo, eu respondo a elas na medida do possível. Infelizmente, outro dado, que as pesquisas já mostravam aparece agora em detalhes. O abuso sexual inicia-se em casa. Às vezes, pode ser uma única vez. Outras vezes, se prolongam por anos. Pais, padrastos, tios e primos. São esses os homens que praticam os abusos. O que aprendi? Não é possível, infelizmente, confiar nem no primo mais velho, nem no irmão etc. É assustador. Outro mito que também estou vendo cair. Não é questão de classe. Essa violência contra a menina acontece em todas as classes sociais. A forma como ela acontece é diferente, é claro. Em uma família mais pobre, em geral, a situação é logo descoberta, porém, não resolvida. Em famílias de classe média e ricas, se fecha os olhos para a menina que sai da sala toda vez que certo tio chega em casa. Estou falando isso a partir dos depoimentos, não é um estudo aprofundando, claro.
Hoje, na literatura contemporânea brasileira, pelo menos aquela que chega às nobres estantes das grandes livrarias, se vê poucos autores e autoras questionando esse estado dado das coisas, particularmente no que se refere à questão dos papeis sociais de homens e mulheres (nomes como Elvira Vigna e Maria Valéria Rezende são exceções). Como pesquisadora da área, você percebe isso como uma questão a ser debatida nos estudos literários?
Sim, claro. Cada vez mais. Claro que nenhuma escritora tem a obrigação de fazer da sua obra um panfleto sobre problemas enfrentados pela mulher. Mas, justamente uma ausência do debate sobre a condição contemporânea da mulher na literatura, inclusive como campo político, é bem sintomático. Não acho que tenha sido por acaso que a FLIP escolher a Ana Cristina César, como autora homenageada, depois das reclamações em massa que a curadoria recebeu devido a presença pífia de mulheres no evento principal. Porém, essa questão não é nova. Se olharmos para trás, veremos mulheres como Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, e mesmo Lygia Bojunga, na literatura infantil, que, cada uma de sua forma, contribuíram para esse debate. Eu aprendi que ser mulher não seria fácil lendo A bolsa amarela. No caso dos departamentos de Literatura Brasileira, com exceção de algumas universidades como a UFRGS e a UNB, infelizmente não há uma continuidade de linhagens, podemos dizer assim. É preciso formalizar essas linhas de pesquisa para que tudo não fique a cargo de uma professora aqui e outro acolá. Quando essa pesquisadora se aposenta corre-se o risco de ver aquela pesquisa se tornar secundária. Eu mesma estou começando uma pesquisa sobre literatura e experiência urbana e pretendo incluir mais escritoras, para pensar como é a cidade da/para a mulher.
Recentemente, você publicou no Facebook que a Academia deveria estar atenta ao que se produz dentro do próprio Facebook. Gostaria que você desenvolvesse essa ideia.
Fui professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio por mais de uma década. Talvez, por isso, tenha muita curiosidade com a relação entre textos e novas mídias. Hoje, em diversos momentos, é o que acontece nas redes que está pautando as matérias jornalísticas. O feminismo é um exemplo disso. Essas discussões surgem e desaparecem em instantes e, de certa forma, cabe à academia fazer a leitura do que está acontecendo nesse momento tão efervescente. Terroristas usam redes sociais, escritores usam essa plataforma como meio de criação, músicas são lançadas primeiro ali, campanhas são organizadas ali, organizações políticas como #ocupeestelita ou #cadêoamarildo já fazem parte da nossa memória contemporânea. Sinto muito, mas para entender este grande fluxo de informações entre as redes e a rua, a academia vai ter que aprender a citar post de Facebook, sim.