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Não são poucos os emails e pedidos de contato que Bruno Véras (foto abaixo) tem recebido nesses últimos dias. Desde que foi confirmada a publicação em 2016 da versão em português da autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua, pela Civilização Brasileira, o pesquisador pernambucano, que atualmente estuda em Toronto, Canadá, está fazendo malabarismo para arrumar tempo de atender a todas as demandas de professores, pesquisadores e, claro, jornalistas. Baquaqua, nome que se pronuncia com vários músculos da face, é ele mesmo a musculatura perdida da nossa história, e por "nossa" se entenda a história universal do Ocidente contada pelos homens brancos. Bruno, ao lado do professor Nielson Bezerra, da UERJ, está pela primeira vez traduzindo para o português a autobiografia escrita pelo ex-escravo. Alguém que, como milhões de outros africanos, foi violentamente retirado de seu contexto para servir como escravo no além mar do Novo Mundo. Nessa entrevista com Bruno Véras, o pesquisador conversa sobre a importância em se publicar no Brasil uma obra como essa, o processo de tradução, e antecipa um pouco de quem foi esse homem multilíngue que, em Pernambuco, terminou sendo escravo de um padeiro que o obrigava a rezar por um Deus que não era o seu, a viver uma vida que não era a sua.

Como você encontrou esse texto de Mahommah Gardo Baquaqua e quando você encontrou o texto, já tinha ciência de que ali na tua frente estava uma preciosidade?

A história do Baquaqua é relativamente bem conhecida num círculo restrito de pessoas, as pessoas que trabalham com História da Escravidão. Existem dois trabalhos que são pioneiros, o da professora Silvia Lara e o do professor R. Krueger. A Silvia publicou um trecho da biografia do Baquaqua em 1988 e o Krueger, que é historiador e teatrólogo, chegou a trabalhar com texto do Baquaqua também. Eu entrei em contato com ele nesse contexto, e desde o início havia uma lampadazinha piscando que essa história era muito importante. A partir de que referência essa luz surgiu na minha cabeça? Porque eu não sou só um acadêmico. Antes de tudo, sou um professor de criança, passei muitos anos ensinando no Ensino Fundamental, em Pernambuco. Ou seja, eu circulo por esses dois mundos: o da Academia e do chão da sala de aula. E lembro que quando a gente estava estudando sobre escravidão no Brasil, vinham aquelas figuras de livro didático que mostravam os negros sempre muito distantes, sempre muito pequenos nas ilustrações. E ali, olhando aquelas miniaturas, eu sabia que não era possível sentir a pessoa ali, se identificar com ela. Só que a história da escravidão no Brasil não é uma história distante, é uma história que a gente sente hoje, é tudo muito familiar. Precisamos lembrar que até o ano de 1850, quando se dá realmente o fim do tráfico de escravos da África pro Brasil, a cada um europeu que entrava no país, chegavam oito africanos. Então a minha trisavó, o seu trisavô, o trisavô do seu vizinho são africanos. Eu percebi já ali a potencialidade de trabalhar essas biografias e autobiografias em sala de aula porque esse tipo de documento permite aos alunos perceber não somente o escravo, mas a pessoa. E a pessoa se vendo nessa situação de estar escravizada, que vive apesar de ser escrava, que constrói relações, laços, que casa e batiza filhos, que pensa e resiste.

Depois de todo esse tempo convivendo com os relatos desse homem, o que você pode falar sobre ele?

O legal desse tipo de documento é que você consegue perceber a pessoa dentro de suas contradições. O Baquaqua nasceu numa família importante e rica na África, era um cara mimado pela mãe. Porque antes dele nascer, a mãe dele teve gêmeos, inclusive o nome dele do meio "Gardo" significa, no idioma Dendi, "nascido depois de gêmeos". E na tradição dessa cultura, a criança nascida depois de gêmeos era uma criança abençoada. De forma que ele foi muito mimado, teve uma educação religiosa e escrita, o irmão dele mais velho foi seu professor de árabe. Trabalhou para um rei na África, num serviço que era até bem opressor, pois ele era algo como um cobrador de taxas. No Brasil, quando chega em Pernambuco, o primeiro senhor dele era um padeiro, em Olinda. Acontece que o Baquaqua vinha de uma família tradicional muçulmana e esse padeiro obrigava ele a participar dos ritos católicos. E isso machucava muito ele. Ou seja, tanto quanto pensar essa violência física que os escravos sofriam, o relato de uma pessoa falando sobre si permite a gente pensar e enxergar também a violência psíquica.

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Os textos dele são escritos como diários? Que forma têm esses relatos?

Quando aprisionado e vendido para o Brasil, ele vem de um contexto de cultura escrita, e não apenas escrita, como multilíngue, ele sabia escrever em árabe e em ajami, que é a escrita de línguas africanas em caracteres árabes. No Brasil, ele aprende português. Quando foge pro Haiti, depois de escapar dos Estados Unidos, ele aprende francês. Nos Estados Unidos, entre 1850 e 1853, ele estuda no NY Central College, numa cidade do estado de Nova York chamada McGrawville. É aí quando ele aprende inglês de uma maneira mais formal. Começa então a escrever e, em 1854, publica essa autobiografia. Nos EUA, Inglaterra e Canadá existia um gênero literário chamado de slave narratives, que era um tipo de literatura que tinha uma função bem prática, que era a função abolicionista. Os abolicionistas patrocinavam esse tipo de escrita pra mostrar a mazelas das escravidão. Em 54, Baquaqua conheceu um cara chamado Samuel Moore, que era um editor abolicionista. E ele ajudou Baquaqua a produzir essa autobiografia, pois era preciso encaixar aquele relato de vida dentro do modelo desse gênero literário. É, portanto, um relato que mistura partes do texto em primeira pessoa, parte na terceira pessoa, quando Samuel Moore assume a fala. Além do livro, temos uma série de cartas que Baquaqua enviou para pessoas importantes, até mesmo candidato a presidente, políticos abolicionistas, além de cartas que ele recebeu. A tradução que estamos fazendo parte de uma outra tradução organizada por dois professores: o Paul Lovejoy, do Canadá, que é meu orientador, e Robin Law, da Inglaterra. Essa edição traduzida por eles tem uma introdução gigantesca que, por si só, já seria um livro, o relato de 1854 e várias cartas e outros documentos relacionados à vida de Baquaqua. O que eu e o professor Nielson Bezerra, da UERJ, estamos fazendo é não apenas traduzindo o livro de 1854, mas todo esse material extra. Além de traduzir, a nossa ideia é fazer uma nova edição em língua portuguesa. Porque nesse processo terminamos descobrindo uma série de outras informações e documentos. Já com o website (http://www.baquaqua.com.br), a história é democratizar outras informações sobre ele. Ou seja, assim como o Baquaqua conseguiu escapar da escravidão, a gente quer também escapar dos muros da Academia e chegar a um público mais amplo. A ideia do website é chegar nesse público maior, incluindo crianças, em diferentes linguagens, com galeria de imagens, vídeos e outras ferramentas. A história do Baquaqua tem uma riqueza que pode ajudar a desconstruir uma série de preconceitos dentro da sala de aula. E como se faz isso? Tornando esse conteúdo num material didático acessível a muitas pessoas.

Como foi o processo de tradução desse texto, você usa notas de rodapé para contextualizar situações e linguagem da época?

O trabalho do Lovejoy e do Law, mais do que uma tradução, é um trabalho de edição. Porque eles fizeram uma introdução monstruosa, publicaram essa edição original, de 1854, além de todas essas cartas. E claro, há milhões de notas de rodapé, explicando algumas palavras do inglês da época, contextualizando algumas informações. O que eu e Nielson estamos fazendo é, além das notas e rodapé, usar notas de tradutor, que é algo igualmente importante. Somente para ilustrar: nesse livro em português, estamos publicando também as cartas de Baquaqua, e em algumas dessas cartas há muitos errinhos de inglês. Então vamos corrigir e traduzir essas cartas para o português e vai colocar o texto original em inglês, embaixo. Até para que a pessoa possa entender o nível de inglês em que ele escrevia.

Tem se debatido muito, dentro e fora da Academia, sobre a importância de se discutir o lugar de fala na literatura. Afinal de contas, temos um história de predominância de narrativas da chamada "literatura universal" sendo contadas pelo homem branco, o homem eurocêntrico. Diante disso, pesquisar e publicar Mahommah Gardo Baquaqua é também uma decisão política e ideológica tua?

Com certeza. Tem aquela frase de Paulo Freire super conhecida de que "o educar é sempre um ato político". Na minha experiência de sala de aula, eu fazia atividades com alguns alunos, majoritariamente negros, da periferia de Jaboatão. Gostava de pedir que eles desenhassem e imaginassem o contexto do qual estávamos falando em sala de aula, e se colocassem no meio daquele cenário. E percebia que os alunos negros se desenhavam e se pintavam brancos. A minha atuação política, portanto, é de pensar a autoestima dessas pessoas. O que leva um aluno negro a se pintar como branco e as consequências dessa atitude na construção do seu self, da sua personalidade, são o que precisamos desconstruir. E isso começa com a desconstrução da história da presença dos africanos no Brasil, para que haja um reconhecimento positivo dessa descendência. As pessoas no Brasil costumam se gabar por ter tido uma origem italiana, alemã, portuguesa... Mas a bem da verdade, esses italianos, alemães e portugueses que vieram ao Brasil eram pessoas, em boa parte dos casos, miseráveis. Do outro lado, podemos perguntar: quem foram os africanos que vieram ao Brasil? Não foram só braços e pernas para o trabalho da lavoura e da mineração. Foram também Baquaquas, que sabiam ler e escrever em várias línguas, foi a rainha Nã Agotimé, que fazia parte realeza, assim como vários outros nobres, intelectuais e sábios que foram escravizados. A minha atuação política é tentar construir, a partir dessas pesquisas, uma identidade positiva em relação a essa ancestralidade africana no Brasil.

É possível criar alguma articulação entre as slave narratives de que você falava e o que hoje se estuda como literatura de diáspora, de pessoas que, de certa forma, terminam se "exilando" em outros lugares quase sempre por uma questão política?

Nunca tinha pensado nisso, mas acho que é possível criar uma comparação. Até porque quando falamos da escravidão nas Américas, os professores de História costumam usar o termo "diáspora africana". Porque ambas são literaturas diaspóricas, de pessoas que foram deslocadas de seu espaço e tiveram a oportunidade de escrever longe de casa.

Depois da publicação dessa autobiografia em português, quais são seus próximos trabalhos?

Ao lado do professor Lovejoy, estou em um projeto que vai reunir cerca de dois mil relatos biográficos de pessoas da África Ocidental que foram escravizadas. Mas essa pesquisa ainda está acontecendo, então não é possível antecipar muito sobre ela.

Nota: Após a publicação desta entrevista, uma leitora entrou em contato com o Suplemento informando haver uma outra autobiografia de um homem que foi escravizado, o poeta Juan Francisco Manzano, em Cuba. Mais informações sobre essa outra autobiografia aqui.

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