Como em livros anteriores de Teixeira Coelho, Colosso (Iluminuras) se desenvolve com fluidez entre o ensaio e o romance, agora em torno da diáspora brasileira. Lê-se a história de Josep Marília e de Júlia, sua primeira mulher, encurralados entre os séculos 20 e 21, narrada por um brasilianista que tanto se confunde com o autor. Apesar de ter início no alto de uma colina na Espanha, Colosso é, afinal, o Brasil, visto com o mesmo juízo crítico que Coelho acredita faltar ao país.
Além das ideias e referências sobre arte, o “país Brasil”, filosofia e esse “século muçulmano” e em alguns aspectos tão asséptico, o embate entre passado e presente é um dos pontos mais instigantes do novo livro do crítico de arte e curador. Na conversa a seguir, realizada por e-mail, Teixeira Coelho comenta esses tópicos, sua escrita híbrida e a felicidade como um compromisso para o presente.
Josep Marília, personagem de Colosso, tem aversão ao passado, à História, à “ditadura da memória, que é capaz de esmagar e aniquilar alguém como a um ínfimo grão de areia”. Como o senhor se relaciona com esses temas?
O peso do passado é enorme, sufocante, sobre qualquer um de nós, em qualquer situação geográfica e histórica. E em países como o Brasil, onde a norma, sobretudo no campo da cultura, é guiar alegadamente para frente mas olhando sempre pelo espelho retrovisor, o que só pode levar a desastres, esse peso da história é ainda mais assombroso. O ser humano é o que for seu projeto, seu projeto o define, sugeriu Sartre. E um projeto está voltado, como a palavra diz, para o futuro. Cito mais um, Rainer Maria Rilke e sua lembrança de que o futuro penetra em nós para transformar- -se em nós muito antes de acontecer. O que nos cabe é ter consciência desse futuro já existente em nós no presente e viver um e outro. O passado, porém, o tempo todo nos arrasta para trás. Livrar-se dele é o projeto de meu personagem pelo qual, como escrevi no livro, tenho grande simpatia. Viver o presente é difícil, doloroso mesmo. Mas é preciso recusar a comodidade (artificial) do passado.
Na Bienal de Curitiba, que neste ano homenageia Julio Le Parc, sua curadoria se voltou à arte da luz – que não mais se preocupou em representar o mundo, antes em ser uma experiência direta, que poderia “dizer o que não era possível dizer”. Josep Marília descobre o gosto pela vida – que ele relaciona a sentir-se integrado a tudo – ao se libertar do mundo das ideias. O senhor poderia comentar essa experiência que lhe interessa na arte e representa um ponto de conexão com a vida para seu personagem?
Você captou com fineza uma dimensão importante de Colosso. Josep Marília está farto do mundo das ideias que, nas ciências humanas, revelam-se excessivamente voltadas para o passado, além de dogmáticas. Um cientista “duro”, um químico, um físico, sabe que a cada cinco anos, se tanto, tem de rever todo seu conhecimento sobre uma dada questão. Nas ciências humanas, a resistência ao novo é alarmante. Ideias velhas de mais de século ainda são tomadas como válidas quando, com frequência, já faliram. Farto desse contexto, Josep Marília quer entregar-se a atividades que incidem sobre o presente, estão no presente e conformam o presente – como fazer molduras para a arte (incluída a arte do passado). E que deixam vestígio claro.
Seus livros parecem estar mais para a arte contemporânea, digamos, do que da luz: são mais cerebrais, livros de ideias, oblíquos, que requerem esforço interpretativo e certo repertório do leitor.
Sinto-me aliviado lendo sua opinião sobre serem meus livros contemporâneos na forma... Não sei, porém, se são “mais cerebrais”, vejo neles muita emoção. Mas de fato eles se afastam dos formatos muito conservadores da literatura, quero que se afastem do cânone do século 19 e do começo do 20 que gerou livros nos quais os personagens dialogam como no teatro e saem de casa usando “luvas brancas e sapatos pretos”. A literatura precisa deixar de ser conservadora e modernista. Quero dizer que meus livros não seguem o paradigma realista, no tempo e no espaço, mesmo referindo-se a fatos verídicos, como em História natural da ditadura. Não seguem também as regras do romance psicológico. A literatura é arte muito conservadora, seus cânones não mudam. São contemporâneos, espero, por mesclarem a ficção com o ensaio, algo que me interessa de perto por eu ser também um ensaísta. As gavetas formais dos gêneros explodiram há tempos, eu nem mesmo deveria chamar esses livros meus de “romances”; são, antes, narrativas.
E que relação gostaria de estabelecer com o leitor por meio dessas narrativas?
Gostaria de manter uma relação de cumplicidade. Espero que essa relação não seja difícil de armar-se. Não busco fazer uma literatura “difícil”, mesmo acreditando que a dificuldade nos permite apossar-nos de nosso objeto. Mas simplesmente não consigo escrever um livro que siga as regras dos best- -sellers de fácil consumo. Opto por escrever um livro que eu mesmo gostaria de ler – embora eu seja também um leitor de romances de sucesso como os de Henning Mankell e a trilogia Millenium, de Stieg Larsson.
O senhor afirmou recentemente que a escrita de ficção teria, no seu caso, o sentido de performance. Como se dá o ato de escrever? Aliás, atuando como curador e professor, que sentido a escrita tem em sua vida?
Digo performance no sentido em que não preparo meus livros de narrativa com o auxílio de fichas. Não organizo previamente os dados sobre os personagens e os lugares em que se encontram, não sei por onde irão, não sei como o livro termina, se soubesse não teria interesse em escrevê- -lo. Isso não significa que meus personagens “tomam a vida em suas mãos e se livram do autor”, como ainda leio com frequência. O autor, eu e todos os outros, está sempre no controle total seja do que for que aconteça. Apenas elaboro a narrativa do modo como eu mesmo a conduzo no momento sem saber antes para onde se dirige. É um exercício delicado, exige atenção e cuidado. Mas é o método que me permite descobertas relevantes sobre meus personagens, sobre mim, sobre a vida e o mundo. Por isso escrevo. Isso para mim é uma narrativa – e esse mesmo princípio eu aplico largamente em minha atividade de curador e professor. Como curador e professor, o que faço é arquitetar narrativas. De fato sempre se trata disso – e quanto mais narrativa for uma exposição ou uma conferência, maior será a comunicação com o público. Minhas curadorias resultam sempre em exposições “faladas”, contadas, cheias de palavras, e nessa perspectiva sei que minhas exposições, modéstia inclusa, são bem recebidas pelo público. São mais “fáceis” que meus livros, claro, porque ligam-se a imagens precisas, que estão diante do observador.
O que lhe parece mais instigante atualmente: a produção literária contemporânea ou de artes visuais?
Um livro, uma narrativa, é sempre mais absorvente e exigente do que uma obra de arte visual. Mas uma obra de arte visual pode capturar o observador num único lance, de imediato, de surpresa, rapidamente, sem aviso, com um golpe emocional ou sensorial – e isso é de enorme valor. Minha vida sempre se repartiu entre a literatura e as artes visuais, nas quais incluo cinema e fotografia.
Colosso apresenta a História (e o “país Brasil”) como uma entidade que assombra as personagens, as empurra e cria uma inércia e uma armadilha. Como evitar ser subjugado, evitar que as coisas sejam meramente “como se costuma dizer”?
Este “país Brasil” tem sido uma fonte de constante pesar e decepção onde as ideias feitas têm trânsito livre – assustador. Para evitar ser subjugado por elas, a saída é exercer o juízo crítico, que Hegel considerava a coisa mais importante dentre todas. Mas juízo crítico quer dizer juízo crítico em relação a tudo, não só em relação ao “outro lado”, ao oponente. Significa rever tudo em que se crê, tudo que se defende e se apoia. É o que mais falta neste país hoje. Aqui sempre se diz como se costuma dizer, sempre se faz como se costuma fazer. Sobretudo em política e em ideologia.
O Brasil é mostrado no livro como uma personagem que age sobre seus habitantes – e uma personagem bárbara, como a descrevem, a partir do exterior (de uma distância segura), as demais personagens. Também a partir de certo distanciamento, com a escrita de quatro livros, que país o senhor descobriu?
Não escrevi para descobrir um país, porém ficou ainda mais clara a imagem de um país autoritário, violento e nada cordial, ao contrário do que sugere a fábula modernista, um país paternalista, patrimonialista, dirigista, centralizador (a ideia de federação é um engodo), portanto corrupto. Sufocante. E a diáspora brasileira, de que se fala pouco, é indício desse quadro. Em pleno século 21, tudo de básico está por fazer. E não se faz. A ditadura militar destruiu o sistema educacional, fundamento do presente e do futuro, legado para o futuro num país que pensa demais no passado. E os governos que a sucederam, de todos os matizes ideológicos, nada fizeram para reparar o que foi demolido e já não era perfeito. Sem um esforço imediato, do qual hoje não há sinal, o destino do país será o de ser subdesenvolvido, não o de estar subdesenvolvido. O mundo está andando rápido, a lentidão não será perdoada. Há uma barbárie nisso, sim. Walter Benjamin anotou, nos anos 1930, que a humanidade se preparava para sobreviver à civilização; o Brasil se prepara pouco para isso.
A resistência também estaria relacionada à beleza, à esperança e à felicidade (conceitos um tanto em baixa mas destacados em seus livros)?
Não sei se cabe falar de resistência, porque ela é débil e pouco consegue de concreto; mas a ideia do belo segue sendo fundamental. Quanto à felicidade, essa é a meta – mesmo se demasiado ingênua. Para alguns, essa felicidade está no além-vida, o que não me interessa; para outros, está no país daqui a 70 anos (que foi quanto durou a revolução comunista), quando tudo será perfeito e justo. Mas as pessoas vivem aqui e agora, não daqui a 70 anos. O que houver de felicidade tem de ser exercido agora. Os vanguardistas radicais que orbitavam a revolução comunista, em seguida desbaratados e esquecidos pelo código oficial, afirmavam que o socialismo seria sempre injusto enquanto não promovesse a felicidade de todos e já. Ingenuidade – mas é o que move o homem. Viver intensamente o presente, projetando-se para o futuro, é o mínimo que se pode fazer. E desse presente extrair o que for possível em termos de beleza e felicidade, sim.
E o senhor tem esperança quanto a quê? Estando a filosofia e a religião em baixa, seria a arte nossa esperança atual?
A arte sempre antecipou a ciência e a filosofia. Freud não existiria sem a tragédia de Sófocles, assim como a ficção científica ou as teses dos biocosmologistas/imortalistas russos do começo do século 20 (entre eles, pelo menos ocasionalmente, Malevich e Klebnikov) puseram em cena aspectos da vida humana que a tecnologia de hoje torna possível. A arte não pode tudo, de fato ela pode pouco. Nela, porém, está o que importa, como ponto de apoio e como meta.