Vanessa Arquivo pessoal A

O fim do casamento entre uma historiadora e um programador não chega como surpresa para o leitor de Operação impensável (Intrínseca). O que se acompanha no novo romance de Vanessa Barbara, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, é um “álbum do que foi esse relacionamento” narrado por Lia: dos primeiros e-mails trocados à crescente intimidade da dupla, das piadas internas às sessões de cinema e de jogos de tabuleiro, do carinho e confiança na convivência diária a um clima de tensão e manipulação que a personagem compara à Guerra Fria.

Como o insano plano de ataque à União Soviética liderado por Winston Churchill, então primeiro-ministro britânico, Lia também cria uma “operação impensável” para descobrir o que há de errado com seu casamento. Uma sequência de mentiras, noites mal dormidas e reviravoltas se desenrola na narrativa, em alternância com fotografias (históricas ou do arquivo pessoal da autora), anedotas sobre a Guerra Fria, e-mails trocados pelo casal, comentários sobre filmes, trechos de outras obras sobre luto e adultério – de F. Scott Fitzgerald a Elvira Vigna. O humor, os trocadilhos e o nonsense dão lugar à angústia, à humilhação e à opressão.

Se para Lia narrar os acontecimentos é uma forma de se livrar deles e sair da posição de vítima, para Vanessa Barbara “é sempre catártico, mesmo que seja criando uma outra coisa a partir daquilo que se viveu”. Na conversa a seguir, a colunista dos jornais The International New York Times e O Estado de S. Paulo, autora de Noites de alface (Alfaguara) e O livro amarelo do terminal (Cosac Naify), entre outros, fala sobre a pesquisa e escrita de seu novo romance, humor na literatura e outros assuntos.

O que te motivou a escrever sobre o fim de um casamento? Encontrar algo diferente para dizer, fugir dos clichês que cercam o tema foi uma preocupação?

Queria explorar esse universo da manipulação num relacionamento sob a ótica de uma esposa enganada que vai acumulando aos poucos sua angústia. O fato de não ser uma guerra declarada me interessa muito: quais são os resultados da exposição íntima e prolongada a um comportamento dissimulado, mentiroso? Como vai reagindo a protagonista no decorrer dos acontecimentos?

Você realizou uma pesquisa sobre o tema, como os trechos e citações de livros ao longo da narrativa sugerem? De que maneira essas leituras ajudaram a construir seu próprio livro?

Sim, li muita coisa sobre adultério e luto. Gostei muito dessa pesquisa prévia; por meio dela comecei a ver como outros autores exploraram essas questões, quais sentimentos eles ressaltaram, qual o ângulo utilizado, e tive novas ideias. O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, por exemplo, é narrado por um amigo dos protagonistas, e isso é essencial para ditar o tom da trama.

E em que momento ligou a história de Lia e Tito à operação de Churchill? Pode comentar como chegou à estrutura do livro, que traz ainda fotografias, comentários sobre filmes, anedotas da Guerra Fria, trocas de e-mails entre os personagens?

É difícil dizer, mas de cara já pensei no enredo e nesse casamento como uma Guerra Fria. Pensei em relacionar os assuntos e, durante a pesquisa histórica, esbarrei com esse plano desvairado do Churchill, que me fez lembrar da Lia e de suas maquinações para descobrir a verdade. De resto, achei que, como ela é a narradora e a vítima, talvez quisesse compor um álbum do que foi esse relacionamento, uma historiografia peculiar (como a tese dela) sobre o que se passou.

Operação ganhou uma edição pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014. O livro sofreu alterações entre essa edição e a da Intrínseca, seja por parte dos editores ou decisão sua?

Sim, algumas alterações nas partes de Mid War e Late War, além das fotos.

Buscando a verdade, Lia descobre um outro lado de Tito, quase uma outra pessoa. Até que ponto você acredita ser possível realmente conhecer alguém?

É difícil “conhecer realmente” alguém, mas o fato aqui não é esse, e sim que Lia contava que o marido tivesse um mínimo de consideração por ela, já que o casamento é um acordo (voluntário) de sinceridade e respeito. Por isso, a cada reviravolta, ela não acredita que ele possa estar escondendo mais coisas – não porque ela o conheça o suficiente, mas porque esperava ser tratada de forma minimamente decente.

E como achou o tom para Lia contar sua história? Apesar de ser uma situação intensa, extrema, a voz da narradora por vezes soa mais analítica ou neutra do que dramática, obsessiva ou dolorida. É o tom de alguém que sai mais forte da situação, talvez?

Sim, é o tom de alguém que se dispôs a sentar e relatar o que houve, de forma a fazer um registro dos acontecimentos depois que eles aconteceram, e assim se livrar deles. É por isso que ela vai ficando mais e mais seca (na história e na narração) conforme as coisas vão ficando piores – penso no trecho em que Tito confessa pela primeira vez e ela simplesmente responde com uma pergunta sobre a chave. É uma forma de se distanciar.

O que admira na protagonista?

A força, o senso de humor, os trocadilhos.

Uma das citações em Operação diz: “(...) Porque, ao contar a história, não dói tanto. Porque, ao contar a história, posso me livrar dela”. Tendo você mesma passado por uma separação, escrever, ainda que pelo ponto de vista da personagem, te ajudou a compreender sua história pessoal, a “absorver o que houve”, como diz Lia?

Sim, é sempre catártico, mesmo que seja criando uma outra coisa a partir daquilo que se viveu.

Li que você teria se afastado do jornalismo por conta da timidez. Ela afeta de alguma maneira a sua produção literária?

Não.

Não somente as crônicas, os romances ou o jornalismo, mas a sua forma de ver o mundo, como você já afirmou, é marcada pelo humor. Como essa característica foi se consolidando durante sua formação e se tornou uma “marca” nos seus textos? Há um lado negativo ou um cuidado que tome com essa característica?

Acho que faz parte de uma forma de enxergar o mundo, prestando atenção em detalhes ínfimos e coisas curiosas. Sempre resisti em deixar isso pra trás, ainda que não seja uma característica literária muito respeitada.

Noites de alface também narra o cotidiano de um casal, banalidades que vão formando um mundo particular. Essas miudezas do dia a dia também surgem na crônica. O que te atrai tanto no cotidiano?

Acho que é tão importante falar do cotidiano quanto de “grandes assuntos”, ele às vezes é muito mais revelador, muito mais complexo do que se poderia supor.

Você já criticou o “hábito de se levar muito a sério” na literatura, dizendo que ela “se valeria de maior leveza”. Em que autores você encontra essa leveza?

Até os autores considerados mais sérios têm momentos de leveza. Flaubert, por exemplo, escreveu Bouvard e Pécuchet, um livro inteiro de tolices. Guerra e Paz, de Tolstói, tem uma porção de cenas patéticas, de acontecimentos meio ridículos, e ele faz troça com o Napoleão Bonaparte. Penso também no Lawrence Sterne, no Lewis Carroll, no Julio Cortázar, e nos cronistas em geral, que vivem dessa aparente leveza.

Tendo produzido roteiro para HQ, reportagens, crônicas e romances, há algum gênero em que se sinta mais confortável? E o que um texto precisa para te deixar satisfeita – ou o que é um bom texto?

Gosto de variar, mas acho que o meu preferido é a crônica mesmo. O texto precisa estar solto, com ritmo, sem solavancos. E não deve ser pretensioso.

A crônica seria um contraponto necessário aos tempos atuais, por não ter a obrigação de informar, por ser um texto que tem graça e lirismo? Ou ela pode incomodar, fazer o leitor se questionar?

Tem espaço para tudo na crônica, inclusive para ser sério com temas engraçados e fazer graça com coisas sérias.

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