Ricardo Lisias

Na página do Facebook da Geração Editorial, que promete lançar Minha luta, de Adolf Hitler, no próximo ano, quando a obra entra em domínio público, há vários comentários elogiando a proposta. “Parabéns pela coragem”, diz um deles. Hoje pela manhã, no blog da Record, o editor Carlos Andreazza deixou claro sua posição quanto ao caso: “O maldito Minha luta, de Hitler, cai em domínio público em 2016. Editoras – do Brasil inclusive – já se preparam para lançá-lo A Record não o fará. Mas eu – falo por mim, não pela editora – não marginalizo quem o publicará.”

Na Alemanha, onde até então era proibida, Minha luta será lançada numa edição comentada, distribuída para instituições, com o intuito educativo de contextualizar o horror daquela época. Não será vendida. Mas é mesmo necessário entendermos o horror de Hitler pelas palavras de Hitler, para além de notas de rodapé como airbag? Um dos autores que questionaram isso foi o escritor paulistano Ricardo Lísias, em seu perfil do Facebook. Pedimos então para que ele comentasse um pouco sobre o possível impacto de termos Minha luta sendo ostentado nas vitrines das nossas livrarias como um “livro comum”.

Os projetos de reedição de Minha luta, para 2016, chegam sempre acompanhados da perspectiva de serem trabalhos que contextualizariam a obra e a tragédia histórica que a acompanhou. Essa seria uma argumentação coerente, em termos de “advogado do diabo”, para o livro voltar a circular?

O livro de Adolf Hitler sempre circulou. Eu já li alguns trechos e já tive edições em mãos mais de uma vez. Uma fundação alemã fez agora uma edição comentada, cheia de notas elaboradas por especialistas. Acho que esse pode ser um trabalho importante. Mas precisamos notar o seguinte: há uma diferença bastante grande entre uma fundação preparar uma edição na Alemanha e uma editora resolver colocar esse livro à venda no Brasil em uma edição comercial. Em primeiro lugar, até onde entendi, alguém terá lucro no Brasil com as ideias de Hitler (não é o caso na Alemanha...). Depois, uma edição comercial coloca uma série de detalhes: haverá divulgação do livro? Vai haver um cartaz dizendo “Compre esse livro para não ser nazista” ou “Compre esse livro para decidir se concorda com os especialistas” ou ainda “Compre esse livro para decidir se você vai ou não ser nazista”? É incrível a falta de sensibilidade histórica contida na proposta de uma edição comercial do livro de Hitler.

Partindo do princípio de que em 2016 ninguém precisa de especialistas para saber o que significam as ideias de Hitler, não é possível dizer que é preciso ler esse livro para entender como funciona o inimigo. Há muitos livros excelentes explicando como funcionou o regime nazista. A questão aqui de novo é tratar como normal um livro cujo autor é o causador de uma das maiores tragédias da história humana. Não é um livro normal.

Em momento algum acho que o livro deve ser proibido. Estou argumentando sobre a maneira com que a questão da publicação está sendo divulgada e também sobre o fato de que a edição brasileira é comercial. Esse livro não tem valor como obra filosófica, sociológica, de análise histórica, literária ou mesmo de costumes. É um documento histórico com altíssimo potencial destrutivo que precisa ser tratado com bastante cuidado.

Por fim, dizer que “todo mundo tem o direito de descobrir por si só como Hitler era horroroso” (e as variações que estão circulando para justificar o lucro com as ideias de Hitler) me parece péssimo: em 2016, como eu disse, todo mundo sabe o que Hitler causou. Só mesmo simpatizantes do nazismo precisam confirmar as ideias de Hitler e, no caso, irão concordar com elas. Em suma: vão colocar nas livrarias brasileiras uma opção de presente para nazistas comprarem. Como eles estão crescendo no Brasil, aí está...

Falando do Brasil, por conta de notícias de intolerâncias das mais variadas formas, não seria esse um momento especialmente infeliz para se reeditar esse livro?

Sem a menor dúvida. Mas como eu disse na resposta anterior, os nazistas estão perdendo a vergonha de se revelar no Brasil. Agora poderão inclusive comprar o seu livro de inspiração e rir dos especialistas que fizeram notas de rodapé dizendo que Hitler errou tudo.

O escritor Santiago Nazarian comentou em seu perfil do Facebook que considera que o relançamento pode levantar uma discussão moral interessante, "próxima ao culto que já se faz aos serial killers" (ele considera a questão: da seguinte forma até que ponto um livro sobre relatos de assassinos cria um "público para assassinos"?) O que você acha da opinião dele?

Ontem, li Como curar um fanático, de Amos Oz. O escritor israelense defende que é preciso fazer gradações, inclusive em atos de crueldade. Não acho possível comparar o livro de Hitler a relatos sobre serial killers. Os alcances são muito diferentes. Não penso que o autor de um livro sobre um serial killer tenha o poder de destruição que Hitler teve.

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