O interior de Portugal já era conhecido na prosa de José Luís Peixoto (1974), seja no romance de formação Livro (Companhia das Letras, 2012) ou em Morreste-me (Dublinense, 2015), pequena mas potente narrativa sobre a morte de seu pai. Foi com a recente publicação de Galveias (Companhia das Letras), no entanto, que o autor português elevou sua cidade natal a personagem central. Afinal, a identidade é, como o escritor coloca nesta entrevista, a questão central de sua literatura.
No novo romance, Peixoto – vencedor do prêmio José Saramago em 2001 e traduzido para mais de vinte idiomas – relembra e narra a Galveias dos anos 1980 a partir das histórias de dezenas de personagens, tão preciosas e cativantes. É um olhar carinhoso que o autor lança sobre o que há de mais humano (para o bem e para o mal) nelas, alternando entre a vida pública e privada, íntima e coletiva, sem ignorar as dificuldades da vida no interior português e os embates da chegada da modernidade.
Na conversa a seguir, realizada via e-mail, José Luís Peixoto fala sobre o retorno a Galveias, discute aspectos da vida em uma pequena cidade, a relação entre ficção e autobiografia, e outros temas.
Galveias pode ter seus um mil habitantes, mas as dezenas de personagens do romance compõem um universo riquíssimo, pleno de idiossincrasias, vícios, ambições, amores, conchavos, desejos, medos. O que admira nessas personagens?
As personagens que compõem Galveias foram escolhidas uma a uma. Aos meus olhos, cada personagem teve de merecer o lugar que ocupa neste romance. O facto de eu ter nascido em Galveias, de ter vivido lá até os 18 anos, faz com que a minha relação com o espaço descrito no livro seja muito pessoal e, em alguns momentos, íntima. Assim, as pessoas que conheço de Galveias, que me marcaram muito enquanto crescia e formava as minhas impressões acerca do mundo, têm alguma presença na forma como construí estas personagens. De certo modo, cada uma dessas figuras, até as menos óbvias, são homenagens a essa gente, a Galveias, a toda aquela região e, mesmo, a todo o interior de Portugal. Nunca quis, no entanto, que essa homenagem lhes retirasse aquilo que mais admiro nelas, aquilo que creio que deve ser celebrado nelas: a sua humanidade. Essa foi a principal característica que tentei preservar. Apesar da tentação de engrandecê-las, tentei ao máximo que continuassem a ser personagens humanas, com qualidades e defeitos.
E o principal desafio em retratar a vida na sua cidade natal, qual seria? O referencial autobiográfico limitou de alguma forma a elaboração da ficção?
Desde há muito tempo que os meus livros ensaiam essa relação entre ficção e autobiografia. Ao mesmo tempo, esse é um assunto antigo na história da literatura. Neste caso específico, essa questão colocou-se de forma muito concreta até na escolha de todo o espaço em que decorre a ação. O facto de tudo acontecer no lugar onde nasci e onde fui criança faz com que se torne muito concreto algo que seria bem mais abstrato se tivesse outro nome e outras referências. Vejo o aspecto autobiográfico, ou aquilo que o leitor toma por autobiográfico, como uma força. Pela minha parte, parece-me importante que se tenha consciência dela e se use essa força a serviço da intenção central do texto em causa. Na circunstância deste romance, o facto de se tratar de uma realidade que existe ajudou bastante na minha vontade de que o romance chamasse a atenção para as dificuldades que o interior de Portugal atravessa. Tal como Galveias, também essas dificuldades são reais. No âmbito de um texto literário, no entanto, o tema tem de ser trabalhado de modo a ser entendido de acordo com as características dessa dimensão, forma e contexto.
E como chegou à estrutura da história, que se desenvolve quase que por meio de miniperfis dos moradores, cada um com seu “capítulo”?
Sob esse aspecto, a minha intenção era criar uma rede narrativa que sugerisse o coletivo que constitui uma comunidade. Assim, cheguei a essa estrutura onde cada personagem vai sendo protagonista da sua história pessoal, dando-nos acesso a uma visão profunda daquilo que a constitui e, ao mesmo tempo, nos mostra uma perspectiva pública de assuntos que cruzam aquela pequena sociedade. Essa visão é mais superficial e, muitas vezes, acaba por ser aprofundada mais tarde. É dessa forma, entre o social e o pessoal, que a narrativa de toda a comunidade vai sendo edificada e transportada ao longo das páginas do romance.
Que cidade encontrou ao retornar para escrever o livro, trinta anos depois do período em que corre a história? Como conciliou esse reencontro com sua própria memória (o eu atual e o eu de então)?
Uma opinião muito simpática que tive oportunidade de ler acerca do romance, dizia que, na leitura, em certos momentos, se distinguia o olhar de quando eu tinha dez anos. Fiquei muito sensibilizado com essa observação porque, apesar de não ter tido consciência dela enquanto estava a escrever, fui levado a concluir que, efetivamente, é assim. Entre outros aspectos, escrever este livro foi um exercício de memória, uma viagem no tempo. Em grande medida, a proposta que o romance apresenta é uma contraposição do passado e do presente. Comparando esses dois tempos, chega-se a algumas conclusões.
A partir da leitura dos escritores contemporâneos portugueses, que país um leitor encontraria?
Portugal é um país que tem muitas dúvidas acerca de si próprio. Creio que essas questões ficam muito claras no conjunto da produção literária contemporânea do país. Talvez por causa do passado grandioso, acredito que Portugal desenvolveu certa bipolaridade: às vezes, convencemo-nos de que somos os melhores do mundo e, logo a seguir, achamos que somos os piores do mundo. Na realidade, parece-me, não somos nem uma coisa, nem outra. Se não formos os melhores, não temos necessariamente de ser os piores. Além do passado, penso que a geografia e as relações que estabelecemos também nos colocam numa situação complexa. Geograficamente, ficamos nesse canto da Europa, longe do centro, inclinados sobre um oceano enorme. Ao nível das relações, temos o Brasil que é imenso e com quem temos inúmeros mal-entendidos; temos Espanha, que nos rodeia e nos desconhece; temos África, que nos é tão próxima, mas cuja relação ainda está muito moldada pelas cicatrizes do colonialismo.
Ao deixar Galveias para estudar em Lisboa, como passou a ver seu local de origem a partir de uma grande cidade?
A distância oferece-nos sempre a perspectiva e, com ela, passamos a ver um pouco melhor detalhes que, antes, demasiado perto, demasiado envolvidos, tínhamos dificuldade de distinguir. Creio que existe uma tendência natural para nos habituarmos a uma quantidade de vantagens, damo-las como adquiridas e, só quando as perdemos, lhes reconhecemos valor. Tudo isso aconteceu quando deixei Galveias e cheguei a Lisboa. No romance, tentei dar algum eco desse contraste. Os protagonistas da segunda parte têm uma forte ligação com Galveias e, ao mesmo tempo, a uma realidade exterior: Guiné-Bissau, Lisboa, Belo Horizonte, entre outras.
Quais aspectos da vida numa pequena comunidade lhe interessam? E, fora da literatura, quais dispensa?
Infelizmente, em muitos pontos, a realidade apresentada no romance é menos dura do que a vida que, hoje, se vive naquela região. Estes trinta anos não foram apenas de evolução, pelo contrário. Hoje, o interior de Portugal é constituído sobretudo por comunidades muito envelhecidas e, a um ritmo preocupante, tem perdido muita população. Esse é um tema muito concreto que eu quis lembrar com este romance. Ainda assim, é claro que o livro tem uma abrangência mais ampla e que toca, por exemplo, a questão da vida em pequenas comunidades. Nesse ponto, a minha intenção era mostrar a dimensão humana dessas relações. Nas pequenas comunidades, os indivíduos têm um papel de maior destaque e, por consequência, de maior importância. Essa característica, no entanto, não é apenas positiva. Por vezes, não é fácil viver com essa falta de privacidade e, também, com o julgamento coletivo, a vigilância da moral coletiva.
E de que maneira acredita que a infância em Galveias – “raiz a partir da qual cresceu”, como já afirmou – lhe moldou, formou parte importante das suas noções? Há uma forma de pensar e ver o mundo que advém da ruralidade?
Para mim, é muito difícil fazer uma avaliação isenta dessa influência. Este facto é, em si mesmo, representativo da importância dessa “raiz”. Creio que a ruralidade impõe marcas muito fortes no modo como se encara a vida. Por um lado, há a proximidade da natureza e a maneira como essa relação influencia noções essenciais, como é o caso da morte. Por outro lado, há o tempo. A maneira como entendemos o tempo, como respiramos, é determinante em tudo o que fazemos, tem reflexo nas dimensões que medimos, nas proporções que atribuímos, naquilo que valorizamos. Além disso, há também a importância que é dada ao indivíduo nas pequenas comunidades, como já referi, e vários outros elementos também fundamentais. A ruralidade determina bastante e, parece-me, aquilo que mais importa dessas características é transnacional, apesar das especificidades de cada realidade.
Sua sensibilidade e percepção são frequentemente elogiadas em críticas, e visíveis tanto em obras mais autobiográficas, como Morreste-me e Galveias, quanto em Livro, que trata de uma geração anterior à sua, e mesmo em Dentro do segredo, relato sobre a Coreia do Norte. O que será que lhe confere essas características? Atualmente, mais de uma década depois de seu primeiro livro, qual a característica que mais lhe interessa trabalhar enquanto escritor?
Como a vida, a escrita é uma procura permanente. Ao longo do tempo, tenho seguido caminhos que me pareceram sedutores por questões pessoais. Interrogo sempre a mim próprio acerca da pertinência de cada questão que desenvolvo nos livros que escrevo. Nestes anos e nestes títulos, tenho aberto ramificações que, essencialmente, estão ligadas à questão da identidade. Em qualquer desses livros, a pergunta fundamental é: quem sou? Muitas vezes, parece-me que essa é a principal questão, aquela que está debaixo de todas as outras. Esse é o tamanho que considero para essa busca. Por isso, independentemente daquilo que o futuro me trará, creio que continuarei trabalhando essa questão, mesmo que nem sempre de forma evidente.