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Há obras literárias que são verdadeiras catedrais, como cidades até, que deixam perplexos seus visitantes ou turistas desavisados. São “geografias” que exigem guias, bússolas e mapas ou mesmo um locas descolado, que nos ajude a driblar as armadilhas para forasteiros. Assim é Ulysses, de James Joyce, obra síntese do século 20. O mais recente tradutor para o português do romance, Caetano W. Galindo, acaba de publicar Sim, eu digo sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce (Companhia das Letras). Seu título diz tudo: trata-se de um roteiro, detalhista e ótimo de ler, dessa obra que assusta e afasta leitores na mesma medida. A seguir uma conversa em que Galindo explica o porquê do seu serviço de “guia turístico”ser exemplar.

Você se coloca nessa obra como um guia, um guia visitando uma galeria de arte, um museu, uma cidade e tudo isso de certa forma é também Ulysses. Mas qual foi a sua primeira "excursão" com Ulysses, como começou sua relação com a obra?

Eu tive diversas abordagens frustradas, sempre na tradução Houaiss, que até então era a única disponível. Em 1997, quando a minha filha estava "no forno", eu não sei por que decidi que era hora de ler Ulysses, agora no original. Essa leitura andou um tanto, mas acabou enterrada na rotina e, claro, nos cuidados com ela. Voltei ao projeto quando, justamente por ter me separado da mãe da Beatriz, logo antes de receber uma bolsa integral de doutorado na Alemanha (o que me fez desistir de ir: claro: teria que deixar a minha filha aqui), eu resolvi inventar um novo projeto de doutoramento (o que eu queria fazer na Alemanha, linguística histórica do romeno, era impossível fazer aqui), que Cardozo, estava começando com a ideia de criar um bacharelado de estudos da tradução aqui na UFPR, e eu resolvi, meio que num ímpeto, no meio de uma caminhada no Jardim Botânico, que ia traduzir Ulysses. Eu até disse isso em voz alta. Aí, nesse processo de "pré-tradução", foi que eu realmente li o livro pela primeira vez, e continuo lendo até hoje.

Eu tentei vários caminhos de leitura de Ulysses. Quando o cronológico não deu certo pela primeira vez, para mim o que acabou funcionando foi abrir o livro de forma arbitrária e seguir a leitura até onde me desse prazer ou curiosidade. O que você acha desse método de leitura do livro?

(risos) Pra Ulysses acho meio radical. É muito bom pro Finnegans wake (também escrito por James Joyce). Mas Ulysses é bem linear, é bem ordenadinho, na verdade. Eu ainda acho que o melhor meio de ler Ulysses é aceitar o fato de que ele não se presta a ser lido no ritmo e com o grau de atenção que a gente normalmente devota a um romance. Ele precisa de mais tempo e, acima de tudo, precisa de uma concentração e de um grau de "inquisitividade" (existe isso?) que a gente não costuma considerar. Eu tinha um professor (de linguística!) que dizia que a grande falha do ensino de matemática era que a gente era forçado a seguir pro próximo nível sem ter entendido direito os anteriores. E aí o prédio ruía. Ulysses, idealmente, é assim. Se você decide que só vai seguir em frente quando tiver realmente (ou satisfatoriamente) entendido o que está acontecendo, as recompensas são imensas. Mas é claro que nem todo mundo, em nem todas as situações, vai ter disponibilidade de tempo e de espírito pra entregar tanta atenção e tanta devoção antes de receber as tais recompensas da leitura. e é precisamente aí que entra a ideia de um guia. Pense que você vai visitar a catedral de Notre Dame. Você pode entrar, ir até o fundo da nave, contornar o altar, olhar os vitrais, passar na lojinha de presentes, subir na torre e ir pra casa bem satisfeito. Claro. Mas qualquer pessoa sabe que, se antes de ir ela tiver tempo de ler dois ou três livros sobre a história da França, a história da construção das catedrais góticas, os detalhes arquitetônicos daquela igreja, ora, ela vai "ver" muito mais coisa. Vai "entender" muito mais. E a visita vai ter um "peso" muito maior na sua vida. Mas a gente nem sempre tem tempo. Então o que é que a gente faz? pega um guia, uma pessoa que leu isso tudo e vai te mostrando e te explicando...Por isso chamar o livro de "visita guiada".

Você diz que Ulysses tem vários mistérios, alguns deles, de fato, importantes para as várias possibilidades de leitura que a obra proporciona. Quais mistérios de Ulysses ainda faltam ser desvendados ou melhor compreendidos?

Tem coisas pontuais, que eu até comento: tipo a data do aniversário do Bloom ou quem é o homem da capa de chuva. Tem coisas mais da natureza de todo grande romance complexo, tipo qual é a do casamento dos Bloom? Qual é aquele amor? Como ele funciona? Acima de tudo há o grande mistério que é Leopold Bloom... A única coisa com que todo mundo há de concordar é que ele é adorável, ele é um fofo. Fora isso, no entanto... Ele é sádico? Masoquista? Manipulador? Tolo? Perdido? Santo? E o maior de todos os mistérios da literatura do século vinte: o que foi, e como foi o dia 17 de junho de 1904. Molly levou o tal café na cama pro marido? Dedalus voltou? O casamento dos bloom "recomeçou"? Molly pretende ter um caso com Dedalus?

Você aponta que, em certa medida, a figura feminina não tem um papel central no romance, mas o trecho mais famoso do livro acaba sendo o Monólogo de Molly, de onde inclusive você tirou o título da sua “visita guiada”. Você podia comentar um pouco o apelo que esse trecho do romance tem?

Veja bem, eu disse que a mulher não tem papel central na obra antes do monólogo. Até ali ela é como que uma ausência gritante. Mas o libro como um todo acaba reequilibrando as coisas todas, e com sobras! Sobre o peso do monólogo... bom: tem o lado virtuosístico mesmo, de ele ter tido a coragem (ou a cara-de-pau?) de escrever aquelas dezenas de páginas do fluxo ininterrupto daquela voz. Tem o lado daquele lindo movimento do cinismo (ela começa de saco cheio do Bloom) pra maravilhosa aceitação sonolenta das últimas linhas... E essas duas coisas juntas já geram uma sensação meio do último movimento da Nona de Beethoven, né? Um triunfalismo. Um SIM gritante... Tem a constituição incrível da voz da Molly, as ambiguidades, as tosquices, o senso de humor, a baixaria, o amor... o que somado ao fato de ela ter acesso ao leitor só nesse trecho final, e de meio que agir como "onbudsman" do livro, relendo coisas que a gente já viu, forçando o leitor a considerar tudo de novo por outro ângulo, gera além de tudo um mega comentário poderoso sobre o lugar da mulher naquela (e na nossa) sociedade: um lugar ao mesmo tempo de certa superioridade e de inferioridade cotidiana.. de domínio, de pretenso domínio, de subjugação e de revolta contra isso... Tem muita coisa ali.

Além de Ulysses, você traduziu Graça infinita, outra obra de dimensão e complexidade gigantescas. O que mudou no seu processo de tradução após o término do trabalho de Ulysses?

Mudou muita coisa. E na verdade mudou durante o processo de tradução de Ulysses. Primeiro porque quando eu sentei pra traduzir a primeira linha eu era um tradutor inédito. Quando eu publiquei a tradução, dez anos depois, o Ulysses já era o meu 17 º livro. E o aprendizado ali foi de mão dupla. Aprendi a ler Ulysses, aprendi a ler (bem mais detidamente) com Ulysses, aprendi a ser versátil com as outras traduções (tinha teatro do século XVIII, poemas, romance, diários...), e tudo isso se alimentou continuamente. E teve o processo encantador de trabalhar, entre 2010 e 2011, na revisão do romance com o grande mestre Paulo Henriques Britto. Ali, naqueles meses, eu aprendi mais do que em todo o resto da minha pretensa "carreira".

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