Rosa Montero A
Bruna Husky é uma andróide particular. À diferença dos outros robôs “tecno-humanos”, ela tem sentimentos, o que lhe permite sentir empatia – talvez até amor – pelas pessoas, mas também lhe acarreta uma aguda consciência da morte. Quando acorda pela manhã, a primeira coisa que pensa é quantos dias de vida lhe resta, e não são muitos. Uma máquina da sua espécie, robôs de combate do século XXII, está programada para ser acometido por um TTT (Tumor Total Tecno), quando completa 10 anos. Esse final já trilhado, irremediável, é algo que a indigna e enfurece.

Protagonista dos romances Lágrimas en la lluvia e El peso del corazón, Bruna Husky é também um alter ego da espanhola Rosa Montero (Madrid, 1951). Assim como a sua criatura, a escritora se sente permanentemente atormentada pela ideia de que um dia deixará de existir: “Odeio a morte, não aceito que seja assim”, diz com ênfase.
Jornalista que iniciou a carreira durante o franquismo, Rosa Montero publicou seu primeiro livro de ficção em 1979. Desde então, foram algumas dezenas de títulos. Nos últimos anos, a autora de La loca da casa deu início a uma corrida contra o tempo: sente que ainda tem muito sobre o que escrever – inclusive o final da trilogia de Bruna Husky –, mas pouco tempo de “vida plena”. “Tenho tentando diminuir o tempo que demoro para escrever um romance (cerca de três anos), mas é difícil, parece que há algo que se rebela dentro de mim.” Há seis anos, a escritora se despediu do seu companheiro Pablo Lizano, vítima de um câncer. “É preciso fazer algo com a morte. É preciso fazer algo com os mortos. Deixar-lhes flores. Falar com eles. E dizer o quanto foram amados”, lê-se em La ridícula idea de no volver a verte. A partir dos diários que a cientista Marie Curie escreveu após ficar viúva, Rosa Montero reflete sobre a perda.

Há alguns meses, fiz uma longa entrevista com a criadora de Bruna Husky. A seguir, uma parte dessa conversa:

Costuma dizer que a Bruna Husky é um alter ego seu. Por quê?

A Bruna se parece muito comigo, em várias coisas. Por exemplo, na obsessão que tem pela morte e pela passagem do tempo. Não só lhe dá medo, ela tem ódio da morte, detesta-a, parece-lhe um roubo. Como é que viemos ao mundo com tanta vontade de viver e morremos tão rápido? Não pode ser! E, para mim, é igual. Não é só um medo, é um desespero, uma fúria. Eu a odeio (a morte). A “Ladra dos doces”, como é chamada nas Mil e uma noites. Também sinto que a vida é um roubo, um engano. Eu não sabia que ia morrer quando vim ao mundo. Bom, é mentira, soube bem cedo, desde pequena tenho consciência da mortalidade e uma consciência muito aguçada da passagem do tempo. Mas não quero, não aceito. Não posso sair disso de outra maneira, a não ser morrendo? Não pode ser, não é possível.

Mas ser assim tem um lado bom, significa que você é uma pessoa que adora viver, que está muito presa à vida.

Adoro viver, sou uma pessoa que desfruta muito da vida. Tenho alegria e isso não é um mérito, é algo fisiológico. Devo ter muita oxitocina no corpo, não sei como explicar. É a minha sopa química. Posso estar triste, mas, de repente, saio na rua, vejo o sol azul ou qualquer outra coisa e pluf: todas as minhas células começam a vibrar de alegria de viver. Mas compreendo a melancolia. É a consciência da beleza e, ao mesmo tempo, de que essa beleza não vai durar. Se a pessoa tem vitalidade, a melancolia não é algo mau. A melancolia é intelectual, racional, e a vitalidade é o outro lado, é o corpo, o animal que somos. E esse animal que sou pede vida, e desfruta. O animal que sou é que me salva da minha cabeça.

Como Bruna, você conta o tempo que tem?

Antes, eu fazia um jogo de dobrar a minha idade. Quando tinha 15, pensava em como seria aos 30. Quando tinha 20, como ia ser ter 40. Mas faz tempo que deixei de dobrar, porque a conta já não fecha. Já vivi mais do que viverei e não quero chegar aos 100 anos. Bom, quando chegar a hora, não vou querer morrer, isso é verdade. O animal que eu sou, que há dentro de mim, não vai querer morrer.

A primeira frase de La ridícula idea é: “Como não tive filhos, o mais importante da minha vida são os meus mortos”. É uma maneira bastante forte de começar um livro, não teve medo de se expor muito?

Não, tinha muito claro que o livro começava assim. Além disso, acho que isso é um fato, algo que não é só meu e que é bastante claro. Nossos mortos e nossos filhos são a coisa mais importante que nos acontece na vida. Com esse livro, passou-se uma coisa muito impressionante. Sempre recebo muitas mensagens, porque sou bastante acessível. Mas com esse livro foram muitíssimas. E 90% das pessoas me escreviam para contar histórias de mortes próximas. O extraordinário é que essas histórias não eram tristes, eram preciosas, celebravam o amor. Isso é o extraordinário, essa parte de beleza que há no horror e acho que essas pessoas não tinha podido contar isso a ninguém, nem sequer podiam reconhecer que havia alguma beleza ali, porque, quando há uma morte, temos a cabeça posta na dor. Então, o meu livro, sem que eu tivesse proposto, proporcionou aos leitores o resgate da beleza das mortes próximas.

Ainda que seja um livro que fala de perdas, não é um livro sobre a morte.

Para mim, é um livro sobre a vida. Sobre como aprender a viver com menos medo de morrer e com menos medo dos mortos, com mais serenidade. O que acontece é que, para chegar à essa serenidade na vida, é necessário previamente alcançar um certo acordo com a morte, a própria e a das pessoa que amamos. Por isso é um livro sobre a vida e que fala tanto sobre a morte. Para aprender a viver é preciso, antes, aprender a fazer algo com a morte.

Mas li uma entrevista sua em que dizia que seus livros são muito mais sábios que você, que muitas vezes não é capaz de aplicar essa sabedoria à vida.

Com certeza, meus livros são muito mais sábios que eu. Sem comparação. Os leitores às vezes leem algo de um livro meu, e digo: ok, muito bem, se sou capaz de escrever isso, por que não sou capaz de viver isso? (Risos). É complicado, a serenidade vem e vai, é como uma vibração, como uma nota de música que o vento leva e traz.

Você diz no livro que a morte de um companheiro é uma coisa insuperável e que nunca voltará a ser a mesma pessoa, que é preciso se reinventar.

Muda a vida de maneira radical. A vida que eu tinha acabou. Uma pessoa vive muitas vidas e eu vou pela terceira, ou talvez quarta.

Escreveu o livro para deixar gravado, para não se esquecer dele?

Sempre há o medo de esquecer, ainda mais eu que tenho uma memória de peixe. Mas não se escreve por isso, eu já disse isso em outro livro. Escreve-se para dar ao mal, à dor, um sentido, para suportá-la, para tentar dar à vida um sentido, sabendo que ele não existe. Um escritor escreve, ou pelo menos eu escrevo, para tentar responder às angústias. Não escrevo para tentar ensinar nada, mas, sim, para aprender, e é por isso que ao final escrevemos sempre sobre os mesmos assuntos.

Disse ao Héctor Abad (escritor colombiano e amigo de Rosa Montero) que iríamos fazer esta entrevista e ele me mandou uma pergunta para que lhe fizesse. Diz assim: sempre nos ensinaram a cuidar do corpo, a não lhe infligir dores desnecessárias. Que sentido tem as tatuagens, essa espécie de ofensa à pele?

Bom, de entrada´, eu nego a premissa. Sempre nos ensinaram? Isso é mentira, querido Héctor. Depende da cultura, não é assim. A cultura judaico-cristã é restritiva ao corpo, maltrata-o com jejuns, com a abstinência sexual etc. A maior parte das culturas inflige, maltrata, machuca o corpo. Muitas culturas fizeram e fazem intervenções no corpo: escarificações, alargamento de pescoço, achatamento de membros, brincos, tatuagens etc. Por algo será, e por que é? Porque todas as culturas precisam marcar o conflito que existe entre o espírito, por chamá-lo de algum modo, e o corpo; entre a razão e o físico. Nós nos sentimos presos ao corpo. Não escolhemos o corpo que nos deram. Não pudemos escolher sermos bonitos ou feios, saudáveis ou doentes. E nosso corpo, no final, adoece e nos mata.

Então a tatuagem funciona quase como uma vingança contra o corpo?

É uma maneira de fazê-lo seu. A história humana está cheia de intervenções físicas, dessa luta do ser humano contra o corpo. Essas intervenções são uma maneira de converter esse corpo que nos escraviza em nosso. Fazer-lhe uma marca, de acordo com a sua vontade, é torná-lo seu. Por isso uma pessoa que faz uma tatuagem quer fazer 20 mil. Você tem alguma?

Não.

Pois não imagina o prazer que é. Eu fiz esta (mostra uma salamandra de um palmo de largura pintada no antebraço) há 15 anos e tive que me conter para no dia seguinte não fazer outra. Fiquei meses olhando para o meu braço e dizendo: Uau, que linda! É uma sensação de libertação, uma felicidade. Como se eu dissesse para ele (corpo): Seu filho da mãe, agora esta salamandra, que eu decidi fazer, vai ficar aqui até que você morra. Você, que me aprontou tantas, vai agora ter que suportá-la. Por isso dá vontade de encher o corpo de tatuagem. Quando operei a coluna e me colocaram uns parafusos enormes pensei: preciso fazer uma tatuagem para voltar a tomar conta desse corpo que me está fazendo sofrer. Foi quando fiz esta (mostra três pequenos pássaros que sobem pelo braço e chegam até o ombro).

Vai fazer outra?

Quero fazer mais uma, a última. Vou escrever na perna a frase: ni pena ni miedo. É um verso de um poeta chileno chamado Raúl Zurita, um homem que foi detido e torturado durante a ditadura do Pinochet. Quando estava sendo torturado, em pleno horror, para fugir, para evadir, ele pensava que estava escrevendo poemas no céu, no deserto, nas montanhas. Então, quando acabou a ditadura, conseguiu um apoio e no deserto do Atacama, o mais árido do planeta, com uma retroescavadeira, fez uma espécie de linhas de Nazca. Cavou essa frase numa área de 3 km, cada letra mede 400 metros de largura e dois de profundidade, e só pode ser vista de cima. Faz uns meses, fui ao Atacama e vi aquilo.

Você escreveu um livro (Instrucciones para salvar el mundo) que conta a história de um homem cuja mulher morre de câncer. Um tempo depois, o seu marido morreu de câncer...

Isso foi brutal. O romance saiu em maio de 2008 e no dia 12 de julho de 2008 diagnosticaram-lhe o câncer.

O seu personagem está o tempo todo pensando que, se tivessem diagnosticado antes, o câncer, teriam salvo a mulher. Pensou nessas coisas também?

Fiquei petrificada. E, depois, quando passou tudo aquilo, um dia me peguei pensando se tinha feito bem no livro. Se tinha sabido descrever o que é realmente perder alguém daquela forma. E a resposta é sim. Aquele personagem me contou o que era aquela dor.

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