Foto: Adriana Vichi

De mim já nem se lembra
é e não é um novo livro de Luiz Ruffato. Publicado originalmente em 2007 como “jovem adulto”, foi revisto e modificado para lançamentos em Portugal, na Itália e, agora, no Brasil, em edição da Companhia das Letras. Mas aqui pouco importa a “novidade”. Importa, sim, que esse romance epistolar sobre as mudanças políticas, econômicas e culturais ocorridas durante a ditadura militar brasileira, chega ao público em geral.

Cartas supostamente escritas por Célio, irmão do escritor mineiro, são reunidas no livro e aos poucos sugerem um panorama dos anos 1970 no país. Trata-se de um dos temas caros ao colunista da edição brasileira do El País e autor do projeto Inferno provisório (pentalogia que abarca a história do Brasil dos anos 1950 ao fim do século 20, a partir da experiência da classe média baixa) e de Estive em Lisboa e lembrei de você (sobre a debandada de brasileiros para o exterior). Importante destacar que não se trata de literatura partidária, como Ruffato explica na entrevista a seguir: “(...) a literatura, independentemente de quem é o autor, qual a sua intenção, em que língua escreve, em que contexto, sob que condições, tem que ultrapassar-se para oferecer ao leitor, qualquer leitor, a possibilidade da empatia, quando deixamos o conforto do nosso lugar no mundo e nos submetemos ao desconforto do lugar do outro”.

Luiz Ruffato, nesta entrevista via e-mail, também fala sobre sua relação com os movimentos sindical e estudantil nos anos 1980, o período da ditadura militar, o espaço das minorias na literatura, o atual cenário político e o desenraizamento que marca o povo brasileiro.

Como seu irmão nas cartas, você foi operário, participou de movimentos sindicais e da fundação do Partido dos Trabalhadores. Em que passo estão sua esperança, seus sonhos, suas reivindicações de então, mais de três décadas depois?

Impossível ser estudante universitário no começo da década de 1980 e manter-se alheio ao que estava acontecendo no país. O Brasil vivia a agonia da ditadura militar e acompanhava o nascimento de um partido político nascido da experiência sindical, uma das primeiras e únicas agremiações de esquerda não comunista da história. Participei ativamente do movimento estudantil, seja na refundação da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE-MG) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), seja na discussão para a implementação do Partido dos Trabalhadores na cidade onde morava, Juiz de Fora, embora, a bem da verdade, eu nunca tenha sido filiado. Acreditava que estava vivendo um acontecimento histórico sem precedentes e apostava em mudanças efetivas na sociedade, mas pensava também que, como jornalista, devia me manter distante das paixões para tentar uma impossível isenção. Penso hoje que o país sofreu modificações importantes e profundas, a maior parte delas devido à atuação do PT. Não tenho dúvidas de que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) foi o melhor da história do Brasil, mas também não tenho dúvidas de que pouco do que eu sonhava foi feito. O acesso à educação foi ampliado, com o regime de cotas raciais e sociais, mas o sistema educacional é de péssima qualidade – o ensino universitário gratuito, por exemplo, continua restrito aos ricos, enquanto os pobres pagam para estudar em faculdades de fundo de quintal, uma incongruência inaceitável. O sistema de saúde é caótico. O sistema de segurança inexiste. Há um desprezo pelo meio ambiente, em função de uma visão desenvolvimentista da economia. Milhões de pessoas melhoraram de vida, mas tornaram-se consumidoras, não cidadãs, porque não foi feito um programa de distribuição de renda e sim de transferência de renda. Ou seja, em resumo, as reformas estruturais que pregávamos não ocorreram, porque o PT trocou um projeto de governo por um projeto de poder, como resumiu muito bem o escritor Frei Betto.

Célio era sonhador e buscava uma vida melhor para sua família; se frustrava com o descaso do Estado em relação aos pobres e com os privilégios dos ricos. Além do estudo e do trabalho, sua maior esperança de mudança parece ter sido por meio da luta sindical. Em um momento de descrença nos partidos – inclusive naquele que representaria os interesses dos trabalhadores – e no sistema político, em quê as pessoas podem ter esperança? Que perspectiva se pode ter?

Infelizmente, estamos vivendo um perigoso vácuo de poder. A percepção de que o PT também afundou no pântano da corrupção coloca-o na vala comum da política brasileira. E as pessoas vão para a rua fanatizadas, já que perdemos completamente o senso de justiça. Os medíocres infantilizados que reduzem o mundo a um sistema binário tomaram as redes sociais e se sentem poderosos para julgar amigos, parentes, vizinhos, conhecidos e desconhecidos de forma implacável, agressiva e maniqueísta. Caminhamos para um confronto, porque não temos líderes responsáveis e sensatos dispostos a pensar grande. Este é um meio de cultura ideal para o surgimento de salvadores da pátria. E a História nos ensina que os salvadores da pátria sempre conduzem o rebanho para o abismo.

É uma alegria para o personagem melhorar o padrão de vida da família (presentear a mão com uma geladeira, por exemplo) e um orgulho se perceber tão digno quanto os ricos – a festa de casamento da irmã “vai ser coisa de gente rica” e pede à mãe que, na ocasião, vá ao salão de beleza dos ricos de Cataguases. O que acha da crítica que se faz à ascensão da classe C, que teria significado acesso a bens de consumo, mas não contemplaria educação e cultura?

É evidente que quem critica o programa das bolsas sociais são pessoas que nunca passaram fome na vida. Um sujeito com fome não existe como subjetividade. Ele somente passa a ter autoconsciência quando elimina do seu horizonte de preocupações esse instinto básico de sobrevivência. Portanto, o projeto de eliminação da miséria no Brasil é um dos mais importantes passos dados pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Perto dos números da corrupção, o dinheiro gasto na manutenção desses programas resulta em um montante ridículo. Também é evidente que sanada essa necessidade primária as pessoas querem comprar coisas às quais nunca tiveram acesso. E o governo apostou nesse consumismo desenfreado para manter a economia em crescimento. Nada contra, desde que, concomitantemente, tivesse havido um esforço sério no sentido de promover mudanças estruturais, e aqui me atenho à educação, que garantisse a esses milhões de pessoas um futuro radioso. No entanto, como disse, ampliamos o acesso ao consumo, mas não à cidadania. A crise econômica em que estamos afundados levará todos de volta à situação de penúria.

Entre outros grupos, escritores e profissionais do livro no Brasil assinaram um manifesto em defesa da democracia, em resposta aos recentes acontecimentos políticos no país. Alguns preferem não entrar no debate público, outros acham que política não cabe na literatura. Qual considera ser o seu papel, enquanto escritor e intelectual, em relação à sociedade em que vivemos, e não somente nesse momento em especial?

Não se pode exigir de ninguém que tome partido ou que se manifeste publicamente a respeito do quer que seja. Essa seria uma atitude autoritária. Cada um, segundo sua consciência, tem a liberdade para decidir o que fazer de sua vida. Eu acredito que a literatura – a arte, em geral – tem esse poder de modificar as pessoas e por consequência de modificar o meio no qual estamos inseridos. Mas minha literatura não é partidária – isso seria contraproducente, seria submeter a arte à política, quando ela é maior e mais abrangente. Escrevo sobre o universo da classe média baixa, mas não exclusivamente. Flores artificiais, de 2014, por exemplo, nem tem como cenário o Brasil. Porque, muito mais que classe social, me preocupa o ser humano mergulhado em sua inautenticidade. Meus livros, todos eles, são sobre o desenraizamento, o não pertencimento, sobre homens e mulheres mergulhados em seu momento histórico. Busco, portanto, a transcendência, a ultrapassagem de temática, cenário, tempo, espaço, língua. Sou, antes de tudo, escritor. Como cidadão, me preocupa o que se passa ao meu redor. E então, como cidadão, me pronuncio como fiz na abertura da Feira de Frankfurt, nas mesas das quais participo aqui e no exterior, na minha coluna no El País. Acho que esse é o papel que devo desempenhar, visando ajudar a tornar o nosso país um lugar melhor para todos viverem.

Um fator que o motivou a começar a escrever foi a abordagem demagógica, idealizada ou caricatural do operário brasileiro que você observava na nossa literatura. Você nota avanços nesse sentido, de classes mais baixas e minorias estarem mais bem representadas?

Há um inegável esforço no sentido de ampliar o espaço das minorias: as mulheres e os autores afro-brasileiros, gays e índios alcançam cada vez maior visibilidade, e pela primeira vez a periferia se autorrepresenta. Tudo isso é importante, mas, para mim, todos esses rótulos estão para além ou para aquém da literatura. Pertencem ao mercado editorial, pertencem ao campo da sociologia. A literatura tem que transcender, ou seja, tem que ter a capacidade de superar-se. Em outras palavras, a literatura, independentemente de quem é o autor, qual a sua intenção, em que língua escreve, em que contexto, sob que condições, tem que ultrapassar-se para oferecer ao leitor, qualquer leitor, a possibilidade da empatia, quando deixamos o conforto do nosso lugar no mundo e nos submetemos ao desconforto do lugar do outro. E isso se consegue por meio da linguagem. Literatura é isso: palavras encadeadas. Quem dá vida a essas palavras encadeadas é o leitor. Se a literatura não consegue essa ultrapassagem, corre o risco de limitar-se a guetos, corre o risco de ser outra coisa, documento histórico, antropológico, jornalístico, etc. Importante como depoimento, sem dúvida, mas esvaziado do poder transformador inerente à literatura.

Numa carta de 1976, Célio demonstra preocupação quanto à presença de um “dedo-duro da Polícia Federal”, que estaria ali para vigiar e entregar ele e seus colegas do movimento sindical ao governo, e recomenda à mãe que não comente nada para não correr o risco de ser taxada de comunista, e que rasgue as cartas para evitar problemas. Que memória tem do período da ditadura militar? O que isso significou para uma lavadeira e um pipoqueiro no interior de Minas Gerais?

A ditadura vista a partir de uma periferia operária no interior do país era quase invisível. A censura era grande, não se comentava a respeito de nada e eu vivia mergulhado na mais profunda alienação. Vez ou outra alguma estranheza, um delegado que perseguia cabeludos, uma professora que comparava os sistemas capitalista (Estados Unidos) e comunista (União Soviética), exaltando um em detrimento do outro, mais nada… O mundo era pequeno, se resumia às ruas da minha cidade, e a nós não chegavam os gemidos de dor dos torturados nos porões das delegacias, nem o alarido das poucas manifestações de rua, nem notícias das reportagens censuradas, nem a voz dos políticos de oposição. Só vim a saber da ditadura, de uma maneira mais efetiva, ao me mudar para Juiz de Fora e entrar na Universidade Federal para cursar Comunicação Social. Aí, numa cidade que era sede do 2º Batalhão da Polícia Militar e da 4ª Região Militar do Exército, eu sentia a tensão no ar. Foi quando passei a entender melhor o que estava acontecendo à minha volta.

Célio é um operário honesto, trabalhador e bom sujeito. É marcante o respeito que ele tem pelos pais, o apreço pela família, o senso de responsabilidade com o futuro de todos, a preocupação em não decepcioná-los nessa tentativa de uma vida melhor. E, além dessa relação, a saudade, a solidão, a sensação de não pertencer a um local. O que mais admira no personagem?

Célio é um homem multifacetado. Procurei dar a ele uma dimensão humana e a dimensão humana é complexa. Célio é um sujeito comum, igual a tantos outros que um dia saíram de sua casa no interior e foram tentar melhorar de vida na cidade grande pensando em um dia voltar. A maior parte da população brasileira se encaixa nessa descrição. Somos um povo em constante deslocamento. Por isso, desenraizados. Tenho para mim que enquanto não enfrentarmos a questão da desterritorialização, que é parte constitutiva da sociedade brasileira, não conseguiremos superar alguns dos principais obstáculos que marcam e emperram nossa história. Creio que muito do nosso descompromisso com o bem comum, muito da explosiva violência urbana, muito da nossa passividade poderia ser explicado por esse sentimento de não pertencer a lugar algum, de ser sempre um estrangeiro onde quer que estejamos.

“O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro.” Essa frase é do seu discurso de 2013 na Feira de Frankfurt. Como estamos lidando com essa dicotomia e com o individualismo, agora num cenário distinto, de crise econômica e política? Como estamos exercendo a democracia, “a maior vitória” da sua geração, como disse na Alemanha?

Somos inexperientes no trato com a democracia. Nossa história política é uma sucessão de golpes de estado e de ditaduras. Quando nos tornamos independentes, enquanto todos os países da América Latina, sem exceção, tornavam-se república, nós enveredávamos por um fantasioso império, que se alongou por todo o século 19. Um golpe militar pôs fim a esse arremedo de regime aristocrático e outro golpe, agora, civil, encerrou o período conhecido com República Velha. Getúlio Vargas, que governou com mão de ferro por 15 anos, abdicou do poder e tivemos um breve interregno democrático entre 1950 e 1964, quando outro golpe de estado instalou outra ditatura. Além disso, temos que lembrar que a escravatura foi abolida há menos de 130 anos... Todo esse viés autoritário e violento marcou profundamente o nosso imaginário, a nossa constituição psicológica. Agora, temos pouco mais de 30 anos de democracia... É pouco, muito pouco, mas é o maior período ininterrupto de voto direto de toda a história brasileira. Aos trancos e barrancos vamos consolidando esse projeto...

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