aleixo

“Existe e/faz supor que/por situar-se/ entre duas coisas, tudo/ se resume ao intervalo/ entre elas”. Em seu mais recente livro publicado, Impossível como nunca ter tido um rosto (2015), Ricardo Aleixo nos coloca nesse essencial lugar de desconforto que é viver entre. Habitar o intervalo, como o poeta esclarece. No entanto, esquadrinhar sua poesia em qualquer espaço, ainda que seja nesse intervalo, ou mesmo nos rótulos que com tanta frequência o vestem - “mineiro”, “negro”, “periférico” -, é reduzir o alcance e a potência do que propõe Aleixo em seu trabalho, algo que, tantas vezes, foge da página, escorre por seu próprio corpo e desliza para fora de sua voz. Mesmo porque, como diria James Joyce, Aleixo se funde na ideia de tudo aquilo que é verbivocovisual. Ao ler a entrevista a seguir, considerem, portanto, o não dito. Aquilo que, em lugar de definir, ele sugere. Em suas provocações, achamos as pistas de sua formação, de como pela aceleração de seu pensamento passam referências de artistas plásticos, poetas concretistas, filósofos que usam a literatura como uma ferramenta fundamental para tensionar o mundo. Autor de livros como Modelos vivos (2010), Máquina zero (2004) e Festim (1992), performer, artista visual e pesquisador dedicado a questões do corpo e da voz poética, ele conversou com o Pernambuco sobre elementos centrais desse seu entrelugar.

O corpo é uma dimensão muito presente no teu trabalho. Seria possível afirmar que produzir a presença dos corpos estaria no cerne da tua poesia?

Tem menos a ver com produzir presença, mas tem a ver com aceitar presença. Posso dizer que tudo que eu chamo de minha poesia, que tanto pode ser livro, performance, música ou objeto tridimensional, tem sempre menos a ver com a tentativa de produzir algo e mais com a aceitação de um tipo de encontro que não pode ser premeditado porque é da ordem da relação fenomenológica. Lido com esta garrafa d’água como se fosse a primeira das garrafas e, portanto, eu o primeiro homem a tocar uma garrafa. É preciso que eu faça dessa forma pra poder ter sempre essa primeiridade que me devolve a curiosidade real pelo objeto e pela relação que se instaura ali. Porque se já sei tudo sobre uma garrafa, eu já sei tudo sobre todas as garrafas e, portanto, é dispensável a aproximação. Eu preciso ter a compenetração das crianças, que faz com que algo surja a partir da fusão de coisas. Por mais que eu corra o risco de idealização disso, é essa aproximação que eu quero ter seja com objetos, espaços, outros corpos, estados anteriores do meu próprio corpo ou mesmo no ato de escrever. Até porque esquecemos que a escrita já é performance, escrever em pé, sentado, deitado, andando... Tento fazer com que todas essas possibilidades não seja algo descartado no momento em que apareceria, aí sim, "o poema".

Hans-georg Gadamer, um filósofo alemão, disse certa vez numa entrevista que era preciso desafiar a dimensão predominante na leitura de um poema, rejeitando a ideia de que ele deve ser lido apenas na chave da cognição. Te faço a pergunta que Gadarmer fez ao seu entrevistador naquele momento: será que o processo pelo qual o poema fala só deve ser conduzido por uma intenção de sentido? Não existe ao mesmo tempo uma verdade em sua performance?

Creio profundamente nisso e talvez fosse até mais sensato terminar a minha resposta aqui. Mas não sou sensato, e faço o uso que posso do significado mais amplo possível que é o da aproximação desse universo estranhíssimo que é o da poesia em relação a mim. Uma coisa sou eu ter me aproximado na adolescência do que é convencionalmente chamado de poesia. Outra coisa é: que forças são essas que me puxam pra isso? E aí já entra na ordem do inexplicável, não é possível explicar isso. Fiz dessa impossibilidade uma chave de relação com todo e qualquer poema. Preciso ser atraído por algo ali, ter interesses despertados por aquele universo complexo e muitas vezes excessivamente aberto no plano cognitivo que é o poema. Se ele não for assim, prefiro ler um ensaio. O poema terá que se apresentar a mim como coisa estranha que me lança questões que possivelmente eu não conseguirei responder. A comparação que mais gosto de fazer é entre poema e o pensamento filosófico. No tratado filosófico, essa busca de uma verdade está enunciada em textos que, por mais abertos que sejam, te prometem algo. Nada disso aparece no poema. O poema me parece um jogo muito perverso, às vezes, de escavação para o alto. Quanto mais te falta chão, mas você procura escavar para o alto, onde as pontas estão soltas. Portanto, meu prazer intelectual em relação a um poema está ligado a não compreendê-lo. Posso até entendê-lo, mas acho que ele não deve se prestar a ser compreendido.

Quem são as pessoas na formação do teu pensamento?

Posso falar de um teórico que me interessa muito e que a sua leitura me levou a buscar as referências dele e tentar ultrapassá-las, que é o Mario Pedrosa. Ele me ajuda a organizar o pensamento em função dessa atenção da materialidade do signo como parte indissociálvel do processo criativo e o quanto isso, o jogo formal da obra, já é pensamento. Posso citar também a Lygia Pape,que foi uma grande interlocutora do Mario Pedrosa e que apontava para isso de não pensar o pensar como algo distinto da obra. Incluiria igualmente alguém que, além de fazer como a Lygia todo esse modo de traçar os princípios composicionais, produziu muitos textos sobre isso, o Hélio Oiticica. E toda essa complexidade e sofisticação ténico-formais estavam também associadas à política. Isso tudo me deu um lastro maior pra lidar com questões com as quais eu já lidava na adolescência, pela minha própria contradição de base que é nascer numa família pobre, vivendo na periferia de Belo Horizonte e ter esse tipo de interesses. Conhecer a poesia concreta e entendê-la como algo que, mais do que me permitir viver num ambiente criativo e reflexivo, poderia me ajudar a montar um programa de estudos sobre o passado da poesia, sobre o que de fato interessou nas várias épocas pelas quais passou a poesia, a interrelação com as demais artes. Quando avisei aos meus pais que eu não concluiria o segundo grau, eles não tiveram nem a preocupação de me perguntar do que eu iria viver, mas eu apresentei pra eles um programa de estudos baseado no que um poeta precisaria aprender.

Então, desde esse momento já sabia que queria ser poeta?

Sempre tive muito respeito pela minha intuição. Ao mesmo tempo, sou virginiano, e virginianos são desconfiados da intuição. O que essas leituras fizeram, e vivendo na periferia sem ter interlocutores, era provocar em mim quase um sonho inatingível. Mas eis que minha irmã fez o curso de Letras e eu terminei, por tabela, fazendo o curso junto com ela. Eu lia os mesmos livros e isso me ajudou a definir alguns autores que se tornaram referência, como (Roman) Jakobson, os formalistas russos e no Brasil filósofos como Benedito Nunes, importante não apenas pela filosofia, mas também com a relação com a crítica literária. Eu vivi um momento em quem um jovem artista podia montar um repertório a partir dos cadernos de cultura. O modo como fui recebido enquanto poeta e poeta de livro fez com que algumas pessoas atentassem para o fato de que ali no meu projeto havia mais do que o desejo de fazer boa poesia, havia o desejo de ocupar um lugar e tensionar esse lugar, que é o da figura do poeta público, daquele que busca pensar o papel social da poesia a partir do desenho de um diálogo transepocal que faça pensar, por exemplo, quais as consequências do barroco para a fundação de uma literatura brasileira o que no barroco ainda pode ter reberberações hoje.

Você já mencionou em algumas ocasiões a ideia de verbivocovisual, de Joyce, e de como ela te agrada. De que forma se pode retrabalhar isso?

Esse termo maravilhoso que os concretos ajudam a transformar em conceito aparece numa página do Finnegans Wake. E gosto muito dele porque, ter nascido na família em que nasci me ensinou a ter uma relação de liberdade com os signos de uma forma bem desierarquizada. Vivi numa casa onde se cantava todo dia, onde meu pai me ensinou a reconhecer minha própria voz na leitura, sem precisar haver função nenhuma nisso. Ali foi o início no ambiente da simultaneidade, da multiplicidade. Conhecer a teoria da poesia concreta e ver que alguém já havia pensado nessa mescla sígnica, que as coisas podem coexistir no mesmo espaço e tempo, isso foi uma revelação fabulosa. Verbivocovisual, uma coisa que pode ser ela mesma, e alguma outra e mais uma e quantas mais. Mas entre o momento em que eu leio essa palavra e a possibilidade de ver e ouvir algo feito nessa dimensão múltipla passaram-se quase duas décadas, quando assisti a um espetáculo do grupo Ouver, em Belo Horizonte, 93, com Augusto de Campos, Décio Pignatari, Arnaldo Antunes e vários outros. Como eu iria saber, antes disso, o que significa "projetar palavras"? Aí tive que me valer dos livros de cinema e pegar, por exemplo, os livros sobre Godard, que talvez seja o mais poeta, mais músico e mais artista visual de todos os cineastas. Foi com Godard que fui entender, por exemplo, o papel da tipografia em termos da abertura de um outro caminho perceptivo, em consonância ou atrito com o uso da voz. Ele usa a voz não mais como um suporte, mas como linguagem. Vozes soltas que não têm uma relação direta com o que está se passando na cena e isso gerando um ruído com todo o campo sonoro.

A poesia é, com frequencia, protagonista nos teus poemas. Desmembrá-la é preciso?

Eu, de fato, não sei o que é poesia. O que eu sei é que algumas das melhores definições de poesia que conheço e que remetem à ideia de linguagem concentrada dão o que pensar para além da convenção poesia. Porque, se é linguagem concentrada, uma pergunta que precisa ser feita é: somente a poesia lida com concentração de linguagem? E: em que momento histórico isso se deu enquanto um atributo a ser destacada dentre muitos? Outra questão: em que medida a atenção a esse aspecto da ordem da materialidade do signo me ajuda a entender o desenvolvimento da poesia, não somente dentro da tradição do Ocidente europeu, mas em relação às culturas extraeuropeias? Durante muito tempo, essas perguntas me bastaram. Até que entrei em contato com as poéticas ameríndias, africanas e afro-diaspóricas, que muitas vezes nem têm palavra para isso que chamamos de poesia. Mas está lá a concentração, o tensionamento da linguagem e, em graus desenvolvidíssimos, a relação com a voz, o corpo como um modo de instauração do espaço em que a poesia vai se dar e que não está, portanto, em algo que é fetiche para as poéticas do Ocidente, que é o livro. Surgem outras perguntas: Como é que eu posso chamar de poesia isso que não partiu do texto escrito? E que na verdade está fundando uma outra ideia de texto que se define pela impossibilidade de reprodução?

Estética e política pertencem ao mesmo plano?

Sim, são a mesma coisa. E gosto também, até pela homofonia que isso permite, da associação entre ética e estética, e a política aparecendo aí como uma outra conformação da ética, compreendida não mais como atributo pessoal, que é a moral, mas como entendimento que se vive a dimensão da coletividade.

Percebo em alguns momentos do teu trabalho uma ideia das coisas que vivem entre polos, mas tu te atens ao que vive entre elas. O que te interessa é o que habita nesse intervalo?

Isso que chamo de intervalo em um poema é me valer de um termo que torne possível a mínima apreensão de algo que vai escapar sempre, é o que eu posso perceber, mas não posso definir, mas que tem a ver com as temporalidades com as quais a gente lida todo tempo. Quando você fala de polos, esse termo responde a uma necessidade de fazer uma demarcação que só atende a fins de uma tentativa de apreensão de algo que, creio firmemente, não tem começo ou fim. Pensar que habito intervalos, mesmo que não consiga identificar o momento em que ele se instaura, é uma percepção que me acompanha desde muito cedo e que o contato que eu passei a ter, desde os 21 anos, com a cosmovisão africana me deixou mais à vontade com isso, porque essa cosmovisão tem a ver com a ideia de tempo circular. Gosto de ilustrar isso com o oriki de Exu: Exu acertou ontem o pássaro com a pedra que só hoje atirou. Isso dá um nó na razão.

Ser um poeta negro no Brasil é ainda correr por fora do “oficial” no mercado editorial?

Eu corro dos rótulos como o diabo corre da cruz. Agora mesmo declinei de participar de uma antologia de poesia mineira pelo simples fato de não saber o que é isso que se chama de poesia mineira. Assim é minha postura em relação à poesia negra. Já tem alguns anos que sou malvisto por todos os setores por fazer a mesma anedota sempre: sou poeta e sou negro, mas não sou poeta negro. É uma ilusão de ótica e um automatismo de linguagem achar que sou um poeta negro. “Ah, mas você escreveu orikis, você denuncia a chacina do Cabula.” Mas eu não sou gay e posso tematizar isso na poesia. A questão das mulheres trans, por exemplo, vai aparecer em algum momento na minha escrita sem que eu tenha que reivindicar uma identidade trans. Do ponto de vista da casa-grande, eu deveria estar no mesmo lugar em que ela colocou, por exemplo, Cruz e Sousa. E olha que, na virada do século 19 pro 20, os negros nem eram tão minoritários assim na literatura brasileira. Tem um texto do Nicolau Sevcenko em que para falar de quem produzia literatura nessa época, ele cita Euclides da Cunha, Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa. Três negros e um branco. Acho que uma das provas de genialidade do racismo brasileiro é como ele consegue, num espaço muito curto de tempo, transformar essa rotina que era a presença de homens negros no ambiente intelectual, em absurdo. Cruz e Sousa quando surge e provoca aquele estrago todo na estética parnasiana, as pessoas precisam lidar com o fato de que ele era descendente de escravos, e aí surgiram os epítetos supostamente enaltecedores: poeta negro, dante negro, cisne negro. De forma que o termo “poeta negro” me parece totalmente tutelado, é uma permissão que o sistema literário dá. Percebi muito cedo que a cama estava feita pra mim e que eu poderia muito bem deitar nela. Seria aceito tanto pela casa-grande quanto pela senzala. Mas aí decidi tensionar isso. Por exemplo, sempre que me convidam para algum evento sobre literatura brasileira, provoco a discussão sobre questões raciais. Mas se me chamam pra discutir literatura negra, falo de várias outras coisas que não passam por essa questão.

Você está escrevendo um livro de memórias, gostaria que contasse um pouco desse projeto.

É uma tentativa de entender qual foi, de fato, o percurso que fiz nas minhas leituras. Comecei a colaborar com a imprensa muito cedo, aos 27 anos eu já tinha uma coluna fixa em jornal, e desde então eu me cobrei o máximo de rigor e conhecimento e passei a ler muito livros. Será uma tentativa de repertoriar isso, bem uma tentativa de escapar de um estereótipo que aqui e ali aparece pra mim, que é o do sujeito que se fez sozinho, negro, pobre, morador da periferia... O título provisório é Salvo pela imaginação e remete a um momento em que começo a escrever poesia entendendo já que é um caminho que eu queria seguir. Eu jogava futebol e essa era minha razão de existência. Mas, numa daquelas peladas que, segundo Nelson Rodrigues, podem ser de uma complexidade shakesperiana, levei uma bolada no olho e, entre os 18 e 21 anos, fui submetido a cinco cirurgias. Havia dores intensas o dia inteiro. Então, só sobrou a poesia, que foi também uma forma de aprender a lidar com a dor.

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