Leis que punem professores caso eles emitam opinião em sala de aula, deputados legislando sobre o debate de gênero nas escolas, estudantes de Direito da UFMG proibidos por juíza de debaterem a situação política no país. As instituições de ensino no Brasil estão em alerta e o Ministério da Educação (MEC) divulgou nessa sexta, 6 de maio, um texto em que vem "a público manifestar nossa indignação frente a recentes iniciativas de setores da sociedade que buscam cercear os princípios e fins da educação nacional, mais especificamente acerca de documentos autodenominados 'notificações extrajudiciais contra o ensino de ‘ideologia de gênero’ nas escolas'". Também recente foram as denúncias de "casos de cerceamento de professores de sociologia no ensino médio em alguns estados brasileiros", e diante delas a Sociedade Brasileira de Sociologia emitiu uma nota de repúdio em que deixa claro que a perspectiva crítica em relação ao repertório intelectual desses professores "não deve ser evitada; ao contrário, será estimulada". Em conversa com a professora de sociologia Maria Eduarda Mota Rocha, da Universidade Federal de Pernambuco, questionamos sobre as implicações das medidas de coibição em sala de aula para o presente e o futuro do pensamento crítico no Brasil.
Simbolicamente, o que implica esse atual processo de silenciamento de professores de sociologia do ensino médio brasileiro, além das leis que estão sendo aprovadas neste momento na tentativa de cercear opiniões e, por exemplo, discussões sobre gênero em salas de aula?
Estamos diante da maior onda reacionária desde 1964. Todas as manifestações de ódio de classe, de racismo, de machismo, de homofobia expressam uma corrente conservadora muito forte entre nós, mas que esteve contida diante do consenso alcançado pelo governo do PT até 2013. A crise econômica e a apropriação direitista das jornadas de junho alteraram esse quadro e agora assistimos, estupefatos, a eclosão desse lado nefasto do “Brasil profundo” na mídia, no Congresso, no Judiciário e nas ruas. Diante desse pensamento conservador, até os direitos mais fundamentais conquistados nos países ocidentais, como a liberdade de expressão e de pensamento, estão ameaçados. A proibição da discussão da desigualdade de gênero nas salas de aula e do debate político em algumas universidades fazem parte desse quadro. Não espanta que a sociologia, como uma disciplina que incentiva a crítica a todas as formas de ideologia, seja um alvo preferencial.
Como professora universitária, na sua opinião que papel deve ter a Academia sobre mordaças no ensino brasileiro dentro do atual contexto politico?
Um dos papéis da universidade é formar cidadãos capazes de atuar com autonomia na vida republicana e não só profissionais com estrita competência técnica em seus respectivos domínios. O golpe de 1964 abastardou a educação ao tentar suprimir essa dimensão crítica e firmar o primado do pensamento instrumental, em alunos treinados para marcar “x” e não para interpretar textos. No ensino superior, as ciências humanas tentam reverter um pouco esse déficit e por isso são tão odiadas pelos que querem transformar os brasileiros em um rebanho conformado com uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta.
Nesses últimos meses, o senso comum fala bastante na máxima do "país dividido". Do ponto de vista da sociologia, de que maneira uma ideia como essa pode se articular, positiva ou negativamente, com os últimos acontecimentos nas ruas do país?
Depois do segundo turno das eleições de 2014, vi na imprensa alguns apelos contrários à polarização política que estaria “dividindo” o Brasil. Ora, o que nos divide não é a diferença de opiniões ou as preferências partidárias. O que nos divide é a maneira mesma como essa sociedade se constituiu, baseada no trabalho escravo, e o fato de que essa injustiça primordial não foi reparada com a Abolição, em 1888. Muito pelo contrário, foi reposta nos termos impessoais e supostamente racionais do mercado de trabalho assalariado. Os negros e negras foram os últimos a ter acesso ao emprego formal, a partir dos anos de 1950, e até hoje muitos são condenados ao subemprego, com os piores ganhos e salários. Do ponto de vista das relações de gênero e do respeito à diversidade sexual, o altíssimo índice de assassinato de mulheres e de homossexuais falam por si. Estamos vivendo um momento muito delicado, mas espero que ele sirva para mostrar o quanto as diferenças de classes, de raças e de gênero são brutais no Brasil. Espero que essas diferenças nos permitam desmontar o mito da “democracia racial” que, alimentado pela mídia e pelos governos autoritários, levou tantos brasileiros a acreditarem no afeto e na proximidade que supostamente nos uniam. Bastou um governo que fizesse um pouco pelos trabalhadores e pelas minorias para a máscara cair. Os pobres, negros e negras, mulheres, lésbicas, gays e transgêneros podem até ser tolerados, desde que “saibam o seu lugar”.
Quem são os sociólogos brasileiros que estão produzindo pensamento sobre as questões deste momento? Que tipo de debate está sendo levantado por esses pesquisadores?
As análises que Jessé Souza tem feito sobre o Brasil contemporâneo são especialmente agudas, sob o meu ponto de vista. Ele tem coordenado muitas pesquisas sobre a estrutura de classes no Brasil e se contraposto a essa ideia do senso comum de que teríamos nos tornado um país de classe média. Suas investigações mostram que existem condições psicossociais que levaram alguns brasileiros a desfrutar das possibilidades de melhoria de renda abertas no ciclo petista. Esses “batalhadores”, como nomeou, tiveram alguma influência familiar ou religiosa que os incentivou a investir tempo no estudo ou no trabalho, de modo a surfar a onda de prosperidade que vivíamos. Mas outros tantos simplesmente não podiam, porque nasceram em famílias desestruturadas e não acreditam em nenhuma ideia de futuro, no que a realidade insiste em lhes dá razão. Acima dos dois grupos, está uma classe média que acredita que seus interesses são os mesmos das elites, e que sai em defesa dessas últimas vestida de verde e amarelo. Os nossos interesses não são os mesmos das elites econômicas, que investem na Bolsa, em papéis da dívida pública, e que assim se apropriam da maior parte das verbas do Estado e do trabalho social de todos nós. Além disso, como proprietárias das grandes empresas, vampirizam o resto da sociedade obrigando-lhe a pagar por produtos e serviços muitas vezes ruins e em cujo preço está embutida uma taxa de lucro exorbitante. Como em 1964, o que está em jogo é uma disputa entre dois projetos para o país: manter as coisas como sempre foram ou tentar construir uma sociedade menos injusta e mais solidária.