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O problema de pequisa, o objeto de estudo, o referencial teórico, a justificativa, o método, ou melhor, o Método. Fazer ciência pressupõe estabelecer esses e outros parâmetros de manuseio do pensamento. Existem contratos, firmados e tácitos, em cumprir com as normas estabelecidas ao longo de muitos anos (séculos para alguns, décadas para outros) para que se possa, de fato, produzir ciência. Portanto, quando a principal revista brasileira das Ciências da Comunicação, aquela em que os critérios para publicação são supostamente os mais rigorosos possíveis, decide aprovar um artigo que descumpre, à primeira vista, com toda a arquitetura predeterminada do que se convencionou chamar de artigo científico, é muito possível que exista aí uma declaração. Na última edição da Matrizes, a mais bem conceituada publicação do campo, o dossiê era sobre as "novas perspectivas em teorias da comunicação". Quatro artigos foram aprovados. Entre eles, um do pesquisador, professor (da USP e ESPM) e escritor João Anzanello Carrascoza (Caderno de um ausente e Aos 7 e aos 40, ambos da Cosac Naify). O título de seu artigo antecipa a provocação: Suíte acadêmica: apontamentos poéticos para elaboração de projetos de pesquisa em Comunicação. Escrito, de fato, como um exercício lírico sobre tópicos rígidos da elaboração de um projeto de pesquisa (não há, por exemplo, referências bibliográficas nesse artigo), o texto de Carrascoza vem provocando nessas últimas semanas um tumulto dentro do ambiente universitário dos programas de pós-graduação em comunicação. Nessa conversa exclusiva com o Pernambuco, o autor da Suíte acadêmica fala sobre suas intenções dentro da possibilidade de se criar o que ele chama de "sistema de afetos na epistemologia da comunicação". Logo abaixo da entrevista, publicamos um trecho de seu artigo, bem como o link para o texto completo publicado na Matrizes.

Como surgiu a necessidade de se criar uma poética dos tópicos de uma pesquisa? E em que medida a poética de estruturas tão rígidas, que se pretendem cientificamente rigorosas, é também um gesto político?

Antes de ser professor universitário no campo da Comunicação, sou um escritor que, desde o livro de estréia, Hotel Solidão, vem buscando irrigar com poesia a substância de sua prosa. O ápice desse trabalho, por enquanto, pode ser aferido nas páginas de meu último romance Caderno de um ausente, primeiro volume de uma trilogia que será completada com a publicação do segundo e do terceiro tomos no próximo ano. Depois de escrever a trilogia, retornei ao conto, gênero que aprecio pela economia e intensidade que exige – e, não por acaso, a maior parte de minha obra é narrativas breves. Pois bem. Nesse retorno, escrevi um conto só com frases curtas que, por si só, tinham o teor de uma conclusão. Dei o nome de “Conclusão” à essa história. Ao elaborar o programa da disciplina que eu iria ministrar este ano no Programa de Pós-Graduação em comunicação e práticas do consumo da ESPM, me lembrei dela e me dei conta de que poderia fazer textos nesse estilo híbrido – no qual o épico e o lírico se dissolvem um no outro –, contemplando outros itens constituintes de um projeto de pesquisa, como “resumo”, “palavras-chave”, “objeto”, “metodologia” etc. Itens cuja elaboração, portanto, deve ser “ensinada” aos jovens pesquisadores. Resolvi, então, escrever a Suíte acadêmica, e passei a ler, no fim de cada aula, o trecho correspondente a um item, como adjuvante didático e não como um substitutivo do conteúdo programático da disciplina. Depois, ao confirmar que os alunos aprovavam essa abertura para o pathos, como uma brisa ante o árido rochedo das explicações racionais, acabei por submeter o “texto” a uma revista acadêmica respeitada, quase certo de que seria reprovado. Sim, todo e qualquer texto marca uma posição política. E a minha, se foi ousada, não o foi mais que a da revista e seus pareceristas, que se tornaram alvo, tanto quanto eu, de uma crítica cega, intransigente e avessa ao diálogo.

O foco do teu texto é no pathos da ciência da comunicação. Você, que é escritor e ministra disciplina de teoria e método, acha que é possível criar um sistema de afetos (e produção de presença) na epistemologia da comunicação?

Em verdade, não sou especialista em disciplinas que abordam metodologias de pesquisa, leciono outras matérias, como “Histórias das estratégias publicitárias”, “Temas contemporâneos com interface em comunicação e consumo”, “Lógicas de produção de discursos corporativos”. Mas, por meio de um rodízio, coube a mim, pelo segundo ano, ministrar a disciplina “Seminários de pesquisa”, que objetiva abordar com os estudantes o olhar interessado do pesquisador, o trabalho artesanal da investigação científica, a pesquisa como obra inacabada e sua autoria coletiva. Uma vez à frente da disciplina, procurei partilhar também com o grupo exemplos de projetos artísticos que, sabemos, operam no registro do sensível. E, claro, não só é possível criar um sistema de afetos na epistemologia da comunicação, como já existe.

Artigos científicos partem do pressuposto que se possa rebatê-los. É possível rebater um texto lírico?

Todo texto pode ser rebatido, pois todo texto é uma resposta de seu autor a algo que o afetou. A premissa vale para o artigo científico (que contém células de arte) e para o texto artístico (que guarda, em seus não-ditos, uma ciência). Um texto científico pode se contrapor a um artístico, mas o ideal é que ambos, a flecha e o alvo, sejam do mesmo material. O poema “No meio do caminho” de Drummond não é uma crítica ao soneto “Nel mezzo del camin” de Bilac? O poema “Os sapos” de Bandeira não é um contraponto à toda a estética parnasiana? Eu gostaria muito de ler um manifesto poético, escrito por um purista da comunicação, contra a Suíte acadêmica.

A ciência da comunicação ainda é uma criança diante de outras ciências humanas mais sólidas como a sociologia e antropologia. E para que a comunicação se legitimasse enquanto ciência diante das instituições fomentadoras, limites e definições foram criados ao longo desses últimos anos. Nesse contexto, em que medida escrever apontamentos poéticos em um dossiê que pretende justamente apontar para "novas perspectivas em teorias da comunicação" é também questionar essa corrida da Comunicação por se aproximar daquilo que se conhece como ciências "duras"?

Sim, é preciso haver definições, normas, limites, que, todavia, não garantem senão certezas provisórias. A ciência não é um penhasco imutável, um conhecimento com destino absoluto. Polêmicas, quando legítimas, não fazem desserviço para o campo da comunicação, nem negam seus avanços; ao contrário, revelam a solidez de suas conquistas e as invisíveis fissuras. A poesia também está nas ciências duras, ou não? Inumeráveis aproximações têm sido feitas, há décadas, entre a matemática e a música, a química e a literatura, a física e as artes plásticas. Então?

Cada vez mais, temos lido depoimentos de pesquisadores (de todas as áreas do conhecimento) que questionam as possibilidades de um pensamento profundo e de pesquisas realmente relevantes diante das demandas quantitativas do Lattes. Qual seu posicionamento em relação a essas demandas?

A índole produtivista abole, ou reduz a quase zero, a criatividade, a transgressão e a insubordinação, vetores indiscutíveis de toda ciência – e também da arte –, e opera como um freio, não como uma força-motriz a favor do novo. A ciência se faz com o assentamento de seus saberes, e, igualmente, com a inevitabilidade de seus deslizes.

A seguir, trecho do artigo Suíte acadêmica, no tópico sobre o problema de pesquisa:

"PROBLEMA
Até quando a vida dói? O dia em que ela cessa, coincide com o seu fim? Quem disse que não há abismos belos? Por que não dormimos em pé, como os cavalos? Por que fechamos os olhos dos nossos mortos? O fundo do poço tem outro fundo, mais fundo e poço? O céu existe para quem? Para si e mais alguém? Onde fica o repasto das estrelas? Que palavras, sem glória, o crucificado do meio disse aos dois, que o ladeavam? Quem vê a racha irromper nas paredes? Quem vê a flor no ato de abrir-se? Rebelar-se contra o quê? E a pedra, não sente o peso do corpo que nela se deita? Lázaro, pra que te devolver à vida? Apela-se a quem, quando a aflição esfola nossa polpa? Por que seus pés tremulam dentro da água azul? Tremulam ou são meus olhos, agitados, que assim os veem? O que dizem à brisa as palmas dos coqueiros? Quem inventou o frescor dos pátios? O que fere mais uma asa, seu fecho ou o voo? Estradas se desenham, como mapas, na sola do pé dos peregrinos? E se uma suspeita nos consumisse, feito vela votiva, até o toco? A existência mais o saber e menos o tempo – como se resolve essa equação? Com quantos “não” se faz uma pergunta? Quantos “sim” se espera de uma resposta?"

Baixe o artigo completo de Carrascoza aqui.

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