Finalista da última edição do PEN Award e vencedora do prêmio de melhor livro traduzido para língua inglesa nos Estados Unidos, Hilary Kaplan se dedica à leitura e tradução dos poemas de Angélica Freitas desde 2007, quando tomou conhecimento do livro Rilke Shake. Sua relação com a língua portuguesa e a literatura brasileira, no entanto, começou uma década antes, quando obteve uma bolsa para estudar no Espírito Santo, em 1997. Além de ser a responsável pela celebrada tradução da escritora gaúcha, ela também tem trabalhado com os textos da poeta Marília Garcia e pensa em se dedicar à obra de Vinicius de Moraes. Em sua opinião, há muitas lacunas na circulação da literatura brasileira entre leitores anglófonos, tanto de autores consagrados quanto – e principalmente – de nomes contemporâneos.
Natural de Los Angeles, na Califórnia, a norte-americana também é poeta e pesquisadora com grande interesse não apenas pela poesia brasileira atual, mas também pelas vozes silenciadas e a urgência de uma maior diversidade no cenário literário. Não à toa, dentre os seus projetos atuais, está a organização de um encontro entre representantes negros da poesia brasileira e norte-americana idealizado junto a escritora Tonya Foster. Hilary realizou ainda um importante estudo sobre as ecopoéticas transnacionais do século XXI, uma investigação que dialoga bastante com os trabalhos sobre zooliteratura que vêm sendo desenvolvidos pela professora e escritora Maria Esther Maciel.
Tomando como ponto de partida a premiada tradução de Rilke Shake, quando você conheceu a obra da Angélica Freitas e por que decidiu traduzi-la?
Descobri Rilke Shake na Livraria Cultura, em Porto Alegre, no ano de 2007. Estava olhando a estante de poesia, buscando a nova poesia brasileira. Vi vários livros da coleção Ás de Colete, parceria entre as editoras 7Letras e Cosac Naify, mas fiquei impressionada com o título Rilke Shake. Gostei do jogo de palavras, me fez rir. Então abri o livro, comecei a ler e encontrei poemas numa voz engraçada – de mulher, do sul, lésbica – e que tratava de questões de identidade pessoal e poética através de uma mistura de perspectivas locais e globais, pop e canônica. Achei essa voz diferente da maioria da poesia brasileira que já tinha encontrado. Também a visão global era bem diferente da narrativa-padrão (que encontramos nos Estados Unidos, ao menos) de uma poesia brasileira que trata de questões nacionais. Comprei o livro, claro, e decidi começar a traduzi-lo para compartilhar esses poemas com leitores anglófonos.
Na escrita da Angélica ressoam literaturas de muitos países e de diferentes épocas. É possível estabelecer um diálogo entre sua poesia e a produção norte-americana contemporânea? Como tem sido a recepção de Rilke Shake no país?
Eu achava que esses poemas seriam interessantes para autores norte-americanos curiosos pela poesia das Américas, poesia hemisférica, e também pela poesia que usa formas e palavras da internet. Muitos dos poemas de Rilke Shake começaram no blog da Angélica, e ela tem dito que eles têm o seu tamanho compacto por causa da restrição de escrever diretamente no programa do Blogger. Não conheço um diálogo direto entre a poesia da Angélica e a dos poetas norte-americanos contemporâneos, mas é possível comparar e falar de ligações entre essas produções da mesma época. Por exemplo, as experimentações com a linguagem da web e a possibilidade de escrever na internet surgiram quase ao mesmo tempo no Brasil e nos Estados Unidos. Quase. Porque acho que Angélica publicou os seus poemas online, no blog dela, e suas experimentações com palavras achadas online antes dos poetas dos EUA. Por isso acredito que ela foi inovadora nesse campo. Mas também penso que os poetas norte-americanos não sabiam da poesia da Angélica; foi simplesmente um interesse que surgiu na mesma época. Mesmo assim, por exemplo, quando apresentei algumas traduções de Rilke Shake em Yale, em 2010, o organizador Richard Deming introduziu Angélica Freitas como o primeiro poeta no Twitter a ser sujeito da discussão do grupo de pesquisa de poesia contemporânea em Yale. Já a recepção de Rilke Shake nos EUA tem sido excelente. Estou feliz que esse livro já está circulando entre poetas e tradutores do país e entre pessoas que não estão acostumadas a ler poesia. Também temos tido uma excelente recepção na Inglaterra. Urayoán Noel, o juiz do PEN Award, me falou que quer que todo mundo leia Rilke Shake e ensine Rilke Shake nas aulas. Eu concordo. Publicamos os poemas numa edição bilíngüe, e os leitores já têm dito que eles gostam de ver os poemas nos dois idiomas. Nos EUA, não temos muitos leitores de português, mas temos muitas pessoas que lêem em espanhol e que podem perceber os poemas; eles gostam de poder ver e entender as escolhas que eu fiz nas traduções.
Sua relação com a língua portuguesa e com a literatura brasileira é, no entanto, bem anterior a essa tradução. Como se deu a opção por esses estudos e de que forma você avalia a difusão da produção cultural brasileira nos Estados Unidos?
Comecei a aprender a língua portuguesa na universidade, graças a uma bolsa que me levou ao Espírito Santo para estudar português. Nessas aulas, tive meu primeiro contato com a poesia brasileira. Na época, pensei que seria botânica e trabalharia na Floresta Amazônica. Mas adorava a literatura. Então, voltei à universidade e comecei a estudar a literatura brasileira e portuguesa. Sobre a difusão nos Estados Unidos, a música é a forma de produção cultural brasileira que conhecemos mais. E os concretistas eram e são conhecidos em certos círculos de literatura e poesia — poesia visual, conceitual. Mas vi, recentemente, um livro de poesia visual contemporâneo, internacional, e não tinha nenhum poeta brasileiro contemporâneo. Eu acho que não se pode falar de poesia visual hoje em dia sem falar de Ricardo Aleixo. Então, penso que os poetas contemporâneos brasileiros não são bem- conhecidos ainda. A exibição das obras de Lygia Clark no MoMA em 2014 foi ótima e, finalmente, formou-se uma audiência norte-americana para essa artista-chave. Clarice também é mais conhecida agora, graças ao projeto de retradução da editora New Directions. Agora, temos todos os contos de Clarice, o que é verdadeiramente um evento para comemorar. Portanto, estamos começando a ter mais literatura e arte brasileira nos EUA. Temos um livro de Waly Salomão, Algaravias, traduzido por Maryam Monalisa Gharavi, que vai sair em junho pela editora Ugly Duckling. Esperamos ter uma edição norte-americana de A teus pés de Ana Cristina Cesar, traduzida por Brenda Hillman, no ano que vem..
Traduzir um poeta vivo pode ser o paraíso, pela possibilidade de diálogos e cooperação, ou o inferno, se houver inclinação do autor a controlar e tolher o tradutor. Como foram as trocas entre você e Angélica?
Ótimas. Sempre sentia o apoio dela e gostei do ritmo que a gente criou. Tive sorte de achar alguém que estava aberta a ter seus poemas traduzidos e que também é tradutora, entende a transcriação, como disse Haroldo de Campos, que o tradutor faz. E que considero minha contemporânea. Como disse Gertrude Stein, “it is so very much more exciting and satisfactory for everybody if one can have contemporaries”. Que quer dizer, é muito mais satisfatório ter contemporâneos. Contatei Angélica pela primeira vez para mostrar-lhe uma coleção das minhas traduções iniciais. Ela adorou. Sorte minha! Depois disso, a gente iniciou uma correspondência por email. Eu perguntaria para ela quando estivesse com dúvidas que ninguém mais poderia resolver, e eu precisasse de clarificação. Ela sempre respondeu, mas nunca foi prescribente. Usualmente, eu não mostraria os poemas a ela até que eles fossem versões finais ou quase finais.
Apesar de sermos facilmente cativados pelo aspecto satírico e as engraçadas imagens mundanas da poesia de Angélica, ela tem, ao mesmo tempo, uma sonoridade muito precisa e um aspecto formal calculado e difícil. Quais foram os principais desafios no processo de tradução dessa obra?
Dizem que é difícil traduzir humor, brincadeiras. Gostei dos desafios de traduzir o humor e o jogo de palavras em Rilke Shake. O prazer de traduzir foi maior por causa das brincadeiras e do sentido do jogo que enche esse livro. Tirei grande proveito de uma comunidade de amigos brasileiros e poetas que me ajudaram a pensar em opções e soluções para alguns desafios que encontrei nos poemas. A metáfora do shake me inspirou.
As vozes tradicionalmente silenciadas te interessam especialmente. Como você percebe o cenário literário no que diz respeito à partilha de espaço entre as diferentes vozes, desde eventos e festivais até tradução e difusão de obras?
Sei que há uma conversa entre poetas no Brasil agora sobre a necessidade de diversificar o cenário literário brasileiro. Temos uma conversa paralela nos Estados Unidos e, felizmente, é possível achar uma diversidade de vozes e escritores na poesia daqui. Às vezes, é necessário buscá-la, mas a cada semana a diversidade de poetas está ficando mais visível. Acho um pouco mais difícil encontrar diversidade na poesia (e na literatura em geral) no Brasil. Por exemplo, uma editora na Califórnia que publica literatura da diáspora asiática me pediu para indicar alguns textos literários de escritores asiáticos brasileiros, de qualquer época. Eu não sabia nenhum nome para indicar, nem meus amigos sabiam. Recentemente, uma amiga que trabalha numa organização que dá apoio aos artistas e escritores lésbicas e trans me pediu para indicar algumas escritoras brasileiras negras lésbicas ou trans para possivelmente receber os fundos do instituto. Eu não sabia quem indicar. Pessoalmente, eu gostaria de ler a poesia dessas poetas brasileiras contemporâneas de qualquer sexualidade.
Quais outros autores ou obras brasileiras você gostaria de traduzir e quais os seus projetos atuais?
Gostaria de traduzir a poesia de Vinicius de Moraes. Precisamos de uma coleção completa dessa figura importante, e estou com vontade de viajar ao passado. Também a obra de Ricardo Aleixo. Vi uma performance dele, em 2007, e tenho gostado da sua produção. Estou organizando junto à poeta norte-americana Tonya Foster um encontro entre poetas negrxs brasilerxs e norte-americanxs. O propósito é trocar ideias e experiências; ensinar e aprender um com o outro; produzir novas obras e, dependendo do interesse dos participantes, algumas traduções. Pretendemos fazer esse encontro em 2017 ou 2018 e gostaríamos que o primeiro fosse no Brasil.