A primeira vez em que a australiana Alison Entrekin tentou conhecer o sertão de Riobaldo, Diadorim e de outros personagens inesquecíveis do escritor João Guimarães Rosa, esse universo lhe pareceu demasiadamente nebuloso e os obstáculos praticamente intransponíveis. Se hoje Alison é uma renomada tradutora do português para o inglês, na época, ela ainda dava seus primeiros passos no aprendizado da língua e, certamente, a escolha de um dos maiores cânones da literatura brasileira não foi adequada.
Mais recentemente, em 2014, Alison voltou ao Grande Sertão e não apenas conseguiu embarcar por suas veredas, como dessa vez se apaixonou por elas. Mestre em Criação Literária pela Universidade de Sydney, Alison mora no Brasil há 20 anos e teve que aprender o português “na marra”. Ela já traduziu mais de 50 livros, entre ficção e não ficção, para o inglês de autores com estilos bem distintos. Entre eles, estão Chico Buarque, Paulo Lins, Clarice Lispector, Cristóvão Tezza e Daniel Galera. Colunista da revista Pessoa há quase dois anos, atualmente Alison traduz O irmão alemão, também de Chico Buarque (publicado pela Companhia das Letras em 2014) e está em busca de patrocínio para viabilizar o maior desafio de sua carreira: traduzir Grande Sertão: Veredas.
Alison traduziu um pequeno trecho da obra, que foi publicado em julho pela revista americana Words Without Borders juntamente com um ensaio de sua autoria. Nesta entrevista, ela fala sobre alguns de seus trabalhos e tece comentários sobre o sertão rosiano, que comemora 60 anos de publicação neste ano.
Até que ponto você acredita que o tradutor precisa ser também um escritor? O que busca em suas traduções?
Sim, acredito que o tradutor precisa ser escritor, mas precisa ser um escritor generoso, capaz de suprimir o próprio estilo para deixar transparecer o do outro. Alguns cursos de tradução nos Estados Unidos têm matérias obrigatórias em Criação Literária, o que eu acho fantástico. Não tive isso no meu curso de tradução, mas sinto que meu mestrado em criação literária na Austrália foi uma parte fundamental da minha formação, pois isso ajuda a compreender melhor um escritor e a respeitar suas escolhas. Nas traduções, busco fazer exatamente o que o autor fez no original. Parece simples, mas não é. Há livros que parecem fluir em estado líquido de um idioma para o outro, sem muito esforço, e tem outros (a maioria) que resistem a uma tradução fácil e requerem algum grau de reconstrução para que a ironia, a graça, ou um trocadilho possam ser resgatados no idioma alvo.
Você já traduziu autores brasileiros de estilos bem diversos, como Chico Buarque, Paulo Lins e Clarice Lispector. Que desafios distintos eles lhe trouxeram?
Eu entrei em crise com a primeira linha de Budapeste, do Chico: “Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira”. Todas as opções que me ocorriam em inglês exigiam uma inversão do tipo: “Mocking someone who tries his luck in a foreign language should be prohibited”. Mas isso já entrega o jogo, a gente sabe desde o começo o que é que devia ser proibido e eu queria que a minha tradução atrasasse essa descoberta, como no português. Brinquei com vários verbos até me lembrar de “it should be against the law”, que poderia ficar no começo da frase. E foi assim no livro todo e no seguinte (Leite derramado), e no que estou traduzindo agora (O irmão alemão). Traduzir os livros do Chico é traduzir uma poesia densa. Não há nada supérfluo, não há gordura. Há ritmo e musicalidade na composição das frases. Tem um jogo constante de contrapesos, uma coisa aqui que equilibra algo ali, partes das frases que se espelham, mas mostram coisas diferentes. Sempre tem algum elemento surpresa, uma palavra inusitada ou uma frase cuja ironia ou humor só se revelam por completo quando a gente termina de ler. Tudo isso é problema na tradução, mas é um problema delicioso. É raro eu conseguir traduzir uma frase inteira assim, num estalo. Geralmente vou e volto diversas vezes, massageando a sintaxe, pondo e tirando sinônimos até ficar satisfeita. É um processo muito lento. Cidade de Deus, do Paulo Lins, foi difícil por outras razões. Não havia, em inglês, um mundo paralelo ao mundo daquela favela, de cujas gírias eu pudesse me apropriar. E mesmo que houvesse um lugar parecido, nem poderia lançar mão das gírias de lá, porque acabaria dando a cara daquele lugar ao livro, e não a cara da Cidade de Deus. Ainda mais num livro que ia ser publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde o inglês falado é bastante diferente. Eu não podia me dar ao luxo de usar algo que soasse muito inglês ou muito americano, porque para o leitor do outro país, teria um sotaque indesejável, que ia distrair o leitor. A linguagem coloquial é muito presa ao lugar de origem e também à época de origem. E isso foi outra dificuldade na tradução. O livro se passa ao longo de diversas décadas, e as gírias vão mudando, evoluindo. Foi um desafio destrinchar isso no inglês, ainda mais em áreas como drogas, armas, crime, prostituição. Fiz muita pesquisa. Clarice também me deu trabalho, mas num outro sentido. Não tive que fazer tanta pesquisa, nem ficar quebrando a cabeça para achar um jeito idiomático de dizer isso ou aquilo porque, afinal, a escrita dela não é lá tão convencional. Em Clarice, me parece que é a linguagem que está a reboque das ideias, que são complexas, sem precedentes, sem formas prontas e bonitinhas para explicá-las. A italiana Elena Ferrante me lembra um pouco Clarice, não no estilo, mas nesse jeito obsessivo de ir minando as ideias, em busca do cerne delas, numa tentativa de trazer à luz verdades ocultas. As frases que resultam dessas ideias são difíceis de traduzir. Traduzir o não convencional é difícil. Mas nem sempre é um simples caso de se manter rente ao original na tradução. Às vezes, isso não dá, como em qualquer tradução, por inúmeras razões. Outras horas é isso mesmo: resistir à vontade de mexer, de aparar o que pode parecer arestas e o que soa estranho. Nessas horas, o trabalho não se dá na página; é uma queda de braço do tradutor com seu editor interno. É reconhecer que o que ela disse causa estranhamento, sim, se convencer de deixar como está e ir fazer terapia.
Atualmente, você tenta viabilizar a tradução de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Como foi o seu primeiro contato com essa obra e que impressões ela lhe despertou como leitora?
Eu tinha tentado ler Grande Sertão: Veredas 20 anos atrás e desistido por não ter condições de acompanhar na época. Eu lia e patinava no texto, sem encontrar algo que pudesse servir de ponto de referência. Meu segundo contato foi mais recente, em 2014, quando a Wylie Agency, que cuida dos direitos do livro, me sondou para saber se estaria interessada na tradução. Pediram uma amostra e eu topei, para ver se era mesmo traduzível. Neste segundo contato, eu já tinha mais tempo de imersão na língua e cultura brasileiras. Mesmo assim, foi difícil (se é difícil para um brasileiro, imagine para uma estrangeira), mas não há jeito melhor de se aproximar de um texto do que pela tradução. Desta vez li, traduzi um trecho de três páginas e me apaixonei pelo livro. No começo, eu lia o português em preto e branco, mas hoje consigo perceber as cores e as nuances.
Grande Sertão: Veredas é uma obra que explora múltiplas possibilidades da língua portuguesa, repleta de estruturas estilísticas particulares, como os neologismos, e de características intraduzíveis, a começar pelo próprio título. Além disso, se passa em uma paisagem tipicamente brasileira, que é o Sertão. Nesse contexto, quais os principais desafios da tradução?
É menos uma tradução do que uma reconstrução em outro idioma. No pequeno trecho que traduzi, nota-se que da linguagem original praticamente nada se mantém. O desafio para o tradutor é encontrar a voz de Riobaldo em inglês, com todos os arcaísmos, regionalismos, neologismos, aliterações etc. a que tem direito. Só que os arcaísmos não vão ser os mesmos, nem os regionalismos, nem os neologismos, nem as aliterações, nem nada. Tudo tem que ser reconstruído no espírito do original, num jogo de compensações, resgatando aqui o que se perdeu ali.
Guimarães Rosa mantinha uma relação intensa e extremamente exigente com seus tradutores. Ele dizia possuir a “ânsia da perfectibilidade”, era excessivamente detalhista e, além de esclarecer dúvidas, enviava desenhos, listas com nomes de plantas e animais, explicava a etimologia de palavras etc. Em uma carta à tradutora para o inglês Harriet de Onis, ele afirmou que queria chocar o leitor, que “tem que aprender a sentir e pensar”. Você gostaria de ter sido um desses tradutores ou acredita que essas interferências poderiam ser um fardo muito pesado?
Dependendo da obra, o autor excessivamente inserido no processo pode atrapalhar mais do que ajudar, mas, neste caso, acho que seria divertido trocar correspondências com o autor. Que me dera receber desenhos, listas e explicações sobre a etimologia das palavras! Mas, se o projeto vingar, pretendo me basear nas correspondências que ele manteve com todos os tradutores, não só as que trocou com Harriet de Onis, pois são uma fonte riquíssima de informações, uma espécie de visita guiada à cabeça dele.
A tradução de Harriet de Onis, cujo português era a terceira língua, recebeu críticas, inclusive do próprio autor. Em texto publicado na revista Pessoa, você comenta que a versão de Onis foi domesticadora. Qual a sua avaliação dessa tradução?
Sim, a primeira tradução para o inglês, publicada nos Estados Unidos em 1963, começada pela Harriet de Onis e terminada pelo James Taylor, é domesticadora e nem por isso deixa de ser um livro divertido. Entretanto, não houve nenhuma tentativa de reproduzir a linguagem tão distinta e colorida do Guimarães Rosa. As feições tão brasileiras do livro são esmaecidas, restam os ossos da narrativa, e a prosa convencional que substitui a voz do autor tem um quê de faroeste.
A primeira recepção de Grande Sertão: Veredas nos Estados Unidos não foi muito bem-sucedida. Parte da crítica atribui isso ao contexto cultural e à expectativa de alguns estereótipos comumente associados ao Brasil. Embora o contexto do Sertão seja característico do país, o romance aborda questões universais, como a luta entre o bem e o mal, o amor e a morte. Nesse sentido, como você acha que seria a recepção do romance nos países de língua inglesa no contexto atual?
Já se passaram mais de 50 anos desde a primeira tradução. Embora ainda restem alguns estereótipos, acredito que hoje as pessoas entendem que o Brasil é um país distinto, com trajetória, cultura e literatura diferentes das do resto da América Latina. É um momento propício para Grande Sertão: Veredas viajar.