Aqui reproduzimos, na íntegra, as respostas de Fernanda Rodrigues de Miranda, que foram reduzidas na edição impressa por questões de espaço.
***
O que nos dizem nomes como os de Maria Firmina dos Reis, Ana Maria Gonçalves, Anajá Caetano, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo? São mulheres negras que transpuseram para a ficção uma experiência sobre a negritude que ainda passa ao largo das discussões em escolas, é negligenciada pela crítica e pouco visível na academia. Nomes desconhecidos ou pouco conhecidos dos leitores que seguem os lançamentos das grandes editoras ou as prateleiras da maior parte das livrarias.
Sobre essas autoras e as questões que levantam, entrevistamos Fernanda Rodrigues de Miranda – mulher “negra, migrante e feminista”. Natural de Bom Jesus da Lapa (BA), Miranda é graduada em Letras pela USP, onde também realizou o mestrado. Atualmente, cursa o doutorado em Letras na mesma instituição: dedica-se a pesquisar o romance de autoria negra e feminina na literatura brasileira. Ou seja, trabalha com um conjunto de obras fora do cânone literário. Seu mestrado versou sobre a obra de Carolina Maria de Jesus. Ela também atua em cursos de formação de professores para a educação étnico-racial.
Centramos este diálogo em discussões fundamentais levantadas por seu doutorado, problemas que envolvem a ideia do que seria essa literatura escrita por mulheres negras. Vemos como elas há muito tempo abrem espaço para o seu protagonismo na Literatura, ainda que sejam continuamente sufocadas pelos que estabelecem o cânone; e como suas obras revelam nuances complexas acerca de questões como representação, da noção de autoria e da ficcionalização do processo de compor a escrita.
Como entende a ideia de "literatura negra"?
Não existe consenso acerca da terminologia adotada para designar a produção literária de autoria negra brasileira, nem entre os/as críticos/as nem entre os/as autores/as. Desde o primeiro estudo dedicado ao tema – A poesia afro-brasileira, Roger Bastide (1943), até os estudos mais contemporâneos: Literatura negra, literatura afro-brasileira: como responder à polêmica? (2006), Maria Nazareth Soares Fonseca; Literatura negro-brasileira (2010), Cuti; Literatura e Afrodescendência (2011), Eduardo de Assis Duarte; entre outros – é possível constatar que se trata de um conceito em construção, implicando questões de ordem epistemológica, estética e política. Por um lado, a expressão “literatura negra” sub-repticiamente anuncia a “linha de cor” que funciona como norma para a constituição do cânone nacional, ou seja: quando afirmamos a “literatura negra” apontamos, pela negativa, a estabilidade da “literatura branca”, oculta na categoria ampla “literatura brasileira”. Além disso, o marcador “negro” coloca esta produção em consonância com as experiências e textualidades do atlântico negro, tendo a diáspora africana como elemento aglutinador. Por outro lado, a proposição literatura “afro-brasileira” problematiza a ideia de Nação, e mais especificamente, rompe com a tradição de pensamento sobre relações raciais e identidade nacional mais influente no Brasil até hoje: uma tradição de nacionalismo mestiço que ficou mais conhecida na forma elaborada no século XX por Gilberto Freyre e associada à expressão “democracia racial” – dispositivo complexo, a reafirmar sentidos de que a experiência negra colonial e pós-colonial aqui foi branda e pouco conflituosa.
Maria Firmina dos Reis foi a primeira mulher a publicar um romance no país e também a primeira a escrever um romance abolicionista. Ela revela, no prólogo de Úrsula (1859), uma consciência muito definida sobre o lugar oprimido da mulher na sociedade. E mesmo com o “indiferentismo glacial de uns” e o “riso mofador de outros”, ela, ainda assim, deu “o lume”. É possível entender essa ideia como algo que permeia conscientemente a produção negra de autoria feminina ainda hoje? Em caso negativo, como isso mudou?
Maria Firmina dos Reis escreveu e publicou no século XIX, quando o Brasil ainda tinha a escravidão negra como principal mecanismo de acúmulo de riqueza, de controle social e de ordenamento biopolítico da vida. Quando Úrsula vem a lume, a leitura/escrita era um lugar de poder restrito a poucos (não à toa, a autora se engajou na alfabetização de meninas, criando a primeira escola mista da região), o cenário, portanto, era diverso do que temos hoje. No entanto, o “indiferentismo glacial de uns” ainda permanece sobre essas obras, pois as autoras negras estão à margem do cânone literário, pouco visível na critica acadêmica, nos livros didáticos, nas grandes editoras, etc. Mas, assim como fez Firmina, tais autoras não se deixam invisibilizar: estão escrevendo, publicando, formando leitores, criando seus espaços, colocando seus corpos no poema, suas tônicas na prosa, seus universos no mundo – basta procurar.
Um dos seus objetos de pesquisa é o livro As mulheres de Tijocupapo, de Marilene Felinto. A escritora rejeita a categoria autoral-negra. Essa rejeição interfere na construção que a autora faz do corpo negro feminino no romance?
Brincando com Foucault, poderíamos perguntar “O que é uma autora (negra?)”, quais implicações capitaliza no texto? Se a figura da autora for um ponto de referência indissociável da obra, uma ferramenta social cuja função seja controlar as expectativas do texto na mesma potência em que pode ser controlada de fora pelas forças sociais, então a obra de Felinto abre várias janelas de leitura analítica. Somado a isso, acrescente-se que quando fazemos um apanhado da fortuna critica de Felinto observamos que muitos trabalhos acadêmicos classificam seu romance como autobiográfico. Em suma, o fato de a autora rejeitar lugares de enunciação pré-determinados não torna sua personagem menos negra, mas nos ajuda a pensar na complexa questão da autoria. Do meu ponto de vista, a obra se torna mais interessante quanto menos pacíficos forem os elementos que orbitam sua estrutura, por isso o romance de Felinto é central para pensarmos tais questões.
Como a visão de Felinto nos ajuda a entender as complexidades de interpretação da obra de autoria negra e feminina (ainda que a autora rejeite essa designação)?
Se imaginássemos uma grande roda ficcional, formada por Rísia, Kehinde, Ponciá, Mãe Susana, Bitita, e outras, certamente seria uma roda em dissenso, pois embora tenham em comum o fato de serem tecidas a partir da desestabilização dos arranjos constitutivos da tradição literária – que configura a personagem feminina negra de forma a reiterar os estereótipos vigentes – e, apesar de serem personagens construídas por autoras negras, seus discursos não são uníssonos, e essa é uma imensa riqueza. Rísia, protagonista de As mulheres de Tijucopapo, é uma das personagens mais fortes do meu corpus de pesquisa. Nela está inscrito o corpo negro, feminino, pobre, migrante, em busca de si mesma. Neste romance muitas problemáticas estão condensadas, como a reivindicação da fala transformada em ato (como nos alerta Audre Lorde), para escapar da morte social ou da loucura, e a questão da identidade – que ao ser buscada vai sendo paulatinamente construída. Nesse sentido, embora a autora rejeite qualquer rótulo, constrói uma das personagens mais intensas da literatura brasileira: contraditória e belicamente negra.
Você trata o romance de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, como uma espécie de paradigma dentro do tipo de literatura que estamos falando. Você pode falar sobre como essa obra reverbera na produção mais atual de autoria negra (ou negra feminina)?
O romance Um defeito de cor é paradigmático dentro da historiografia literária brasileira de modo geral. Amplia os limites da ficção, pois ficcionaliza o próprio processo de composição da escrita. Inscreve no discurso agências para corpos negros sempre construídos como subalternos na literatura canônica. Potencializa signos de liberdade na escrita desses corpos – que são vividos através de múltiplos aspectos da experiência negra. Acendendo a itinerância como ponto de partida para ler a tradição, inscreve o atlântico enquanto fluxo, a partir do percurso da protagonista Kehinde, africana que foi escravizada, tornou-se livre e morreu na velhice, depois de idas e vindas de um itinerário diásporico. Reverbera na produção negra feminina atual na medida em que inscreve no discurso a potência do feminino negro, investe na reescrita do tempo e da história subvertendo narrativas oficiais nas quais a feminilidade negra esteve sempre à margem.
Quais as principais marcas que a crítica literária canônica deixou no entendimento da literatura de autoria negro-feminina?
A instituição Literatura na sociedade brasileira esteve irremediavelmente ligada aos significados coletivos alinhados aos valores e tradições eleitos para a construção da identidade nacional, seguindo uma prática comum nas sociedades ocidentais. Esses significados coletivos adquiriram conformidade simbólica e política conciliável apenas com os propósitos dos grupos sociais hegemônicos, e o cânone literário tornou-se resultado de uma forma autoritária de organizar o mundo, hierarquizando-o a partir das categorias de raça, de etnia, de gênero, de sexualidade e de propriedade. Entre as diversas consequências desse processo, os textos produzidos por mulheres, e mais fortemente, os textos produzidos por mulheres negras foram e permanecem sendo continuamente negligenciados nos compêndios da historiografia literária. Posto que a obra literária é um produto da cultura – tanto política e economicamente quanto social e historicamente fundamentada – entendemos que, no Brasil, o sistema de hierarquização social e institucional estruturado sob a intersecção das categorias de raça, gênero e classe, de um lado pauta as experiências e o discurso das escritoras negras brasileiras e de outro, problematiza sua ausência no conjunto das obras canônicas; em segundo, as instâncias que giram ao redor da instituição Literatura – a crítica, as editoras, a imprensa, a academia – não estão imunes a esse sistema de hierarquização, ao contrário, muitas vezes o alimenta. Embora possamos encontrar, desde as últimas décadas, estudos rigorosos e amplas análises críticas acerca dessas autoras e da problemática que envolve seus discursos diante das ideias de identidade nacional, cânone literário e construções epistemológicas normativas, muito há ainda para investigar.
Sobre essas marcas, quais precisam ser revistas com mais urgência?
A literatura brasileira – acompanhada por sua crítica – desde os textos formadores até a mais recente contemporaneidade, retratou (quando não invisibilizou) as mulheres negras principalmente sob a égide da dominação e criou categorias de representação estereotipadas que persistem até hoje: ora o corpo-objeto ultrasexualizado da mulata; ora a passividade submissa, generosa e auto-sacrifical da mãe-preta; ora a bestialização da negra escravizada. Imagens de controle de fácil observação ao leitor que se debruçar sobre as obras de escritores como José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Gregório de Matos, Manuel Antonio de Macedo, Monteiro Lobato, Bernardo Guimarães, Jorge Amado, entre outros, que compõe nossa tradição literária. Somado a isso, o pensamento inscrito pelas mulheres negras brasileiras não foi incorporado ao conjunto das obras que formam o cânone e essa ausência, além de invisibilizar uma certa série literária; colabora para a manutenção de uma hegemonia da representação baseada nos mesmos valores de raça, gênero e classe – frequentemente apoiada em abordagens teóricas que negam a evidência de que toda e qualquer enunciação vem de alguém e de algum lugar no tempo e no espaço.
Em artigo apresentado à Abralic (O romance negro de autoria feminina: leituras do corpo diaspórico em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves), você diz: “o conjunto de romances brasileiros de autoria negro-feminina aponta para um devir-Brasil, uma outra história”. O que podemos esperar?
Homi Bhabha, escrevendo a respeito da poesia do colonizado, diz que o seu discurso poético não só “encena o direito a significar” como questiona o poder de nomeação que o colonizador detém sobre o colonizado e o seu universo particular. Muitos paradigmas do pensamento colonial ainda incidem no Brasil, e são rompidos apenas quando sujeitos historicamente silenciados lançam seus discursos na arena de signos e sentidos que organiza nossa interpretação do país. Dessa forma, os romances de autoria negro-feminina apresentam-se como novos modos de ver, de significar, de representar. Trazem a tona outras histórias, outras semânticas.
É muito difícil encontrar escolas que discutam autoras negras com seus alunos. Essa perspectiva tende a piorar graças a projetos como o Escola Sem Partido. Você consegue vislumbrar alguma “tática” para que se possa incutir o estudo dessas autoras nos currículos estudantis?
Eu creio que o problema não é exclusivo às obras de mulheres negras, pois os autores negros também são pouco discutidos, assim como as/os africanas/os de língua portuguesa. Não se discute textualidades ameríndias ou obras que declinam da heteronormatividade como única via legitima de experiência amorosa/sexual. Não se discutem textos produzidos por atores sociais que ocupam territórios geográficos/afetivos/estéticos/políticos pertinentes às periferias urbanas, mesmo quando a discussão é sobre literatura contemporânea. O problema, portanto, é a contínua reiteração da norma, dos “perigos de uma história única”, para usar as palavras da romancista nigeriana Chimamanda Adichie, pois as autorias por aqui estiveram sempre implicadas em posicionalidades de raça, gênero e classe delimitadas. A tática de furar os silêncios, contudo, também não é nova, e essas autoras são grande fonte de inspiração para a nossa resistência ante projetos nocivos como o Escola sem partido, pois não se resignaram, colocaram seus textos em circulação enfrentando o epistemicídio.