"O sofrimento é o melhor remédio para acordar o espírito", disse Émile Zola. A frase sintetiza a tônica do naturalismo, movimento artístico que, na Literatura, tornou-se conhecido por suas críticas sociais contundentes. Os escritores eram exortados a sair da esfera individual e falar sobre o coletivo.
As obras naturalistas costumam ser leitura obrigatória no ensino médio. Ofertam um olhar sobre as mazelas do Brasil em momento importante para a formação da identidade nacional: a mudança do século XIX para o XX. Mas como esses livros são lidos hoje em dia? Ou antes: esses livros são lidos? De quais formas podemos olhar o presente a partir do naturalismo?
Sobre esses assuntos, entrevistamos a pesquisadora Ana Cristina Chiara, professora da UERJ, sobre como o naturalismo nos ajuda a compreender certos movimentos literários atuais, o preconceito que essa corrente sofre em instâncias como a crítica literária ou a academia, e de como ele nos ajuda a pensar certos marcadores da nossa identidade - como o futebol, democracia racial, carnaval e afins.
Temos uma safra de romances muito recentes que lançam questões (em diversos níveis) a respeito do real em eventos recentes ou sobre as dinâmicas da sociedade: O marechal de costas (o impeachment), A tradutora (Copa do Mundo), A vista particular (as dinâmicas da arte e a violência nas grandes cidades), Simpatia pelo demônio (o terrorismo), entre outros. Isso para nos determos apenas em autores de características hegemônicas (homens brancos, elevado grau de ensino etc). É possível falar em um "senso do real" que se irmana ao do naturalismo, nessas obras?
A expressão “senso do real” foi usada por Émile Zola numa convocação aos escritores para deixarem seus “gabinetes de leitura” e observarem o mundo. Eu já usei esta expressão para reforçar a ideia de que nossa literatura teria uma vocação “realista” terceiro-mundista talvez, em que as contradições e complexidades da sociedade forçariam o escritor (e também o artista) a se expressarem essa consciência, a terem este tipo de compromisso em tela. O senso do real não estaria necessariamente ligado à estética fotográfica, à linguagem objetiva, tratar-se-ia como disse Machado de Assis no texto Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade (1873): "O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço". Ou como exigia Glauber Rocha uma arte latino-americana para latino-americanos, ou ainda, como nos ensina Silviano Santiago, o importante é “a imaginação crítica” e não as boas intenções dos artistas.
Em matéria recente no jornal O Globo, vemos um enfoque problemático da questão da homossexualidade na literatura. Parece negligente com os trabalhos do naturalismo, que foram pioneiros em lançar na literatura uma série de assuntos antes considerados tabus, como o da homossexualidade. Inclusive, há quem diga que O bom crioulo, de Adolfo Caminha, foi o primeiro romance ocidental a abordar a temática da homoafetividade de forma mais central. Como vê esse tipo de análise feita pela mídia? E o que isso diz, na sua opinião, do conhecimento que temos do naturalismo hoje em dia?
Não creio que a matéria tenha sido negligente em não abordar o livro O bom crioulo de Adolfo Caminha, que nunca soube ter sido considerado o primeiro romance ocidental a abordar a temática. Neste caso teríamos de alargar o espectro de omissões (ou negligências) para outros autores como João do Rio, Machado de Assis (vide a amizade ciumenta de Bentinho com Escobar), entre outros mais em que a mulher figura como o ‘avatar’ de um amor gay entre homens. A apreensão da gama de orientações sexuais nos romances depende muito do olhar do leitor, pois estas nem sempre são explícitas. A revelação de que Diadorim é uma mulher anula o torturado desejo homoafetivo de Riobaldo, desenvolvido com intensidade e culpa ao longo da narrativa?
No caso de O bom crioulo, o romance aborda uma questão política também importante que é o tratamento militar e uma relação incestuosa entre o grumete e a dona da pensão, além do romance entre os dois homens: Amaro e Aleixo (a dobra da letra A). Portanto, é um romance de temática bastante ousada e transgressiva para 1895. Mas o que sustenta o romance de pé até hoje é sua trama de linguagem muito culta e aberrante.
Diferentemente, esta matéria, conforme eu a entendi, enfoca mais diretamente a questão atual do mercado de livros e de sua segmentação em nichos. Neste caso, o nicho que abriga a literatura “gay”, cuja recepção hoje em dia está, digamos assim, naturalizada (ou seja, já foi assimilada e seu caráter transgressivo atenuado, basta conferir os pares gays das teledramaturgias, embora o preconceito talvez esteja mais violento em função disso mesmo), seria bom refletir, então, se os autores entrevistados omitem esta sedução (ou apelo) do mercado pressionando suas escolhas com a abertura das editoras à publicação de livros com temáticas gays. No caso de Adolfo Caminha e dos outros escritores do Naturalismo do fim do século XIX, as escolhas temáticas enfocavam o homoerotismo de forma bastante dúbia: por um lado, como perversão; de outro, como sedução do público e afronta.
Como o naturalismo é visto hoje na crítica, academia e espaços afins? Existem preconceitos contra essa corrente literária? O que precisa mudar no entendimento sobre as obras naturalistas, na sua opinião?
Creio que o naturalismo em arte é hoje visto de modo negativo, como replicador de ideologia dominante, reacionária e de classe média, como um tipo de representação travestida de um certo “charme da burguesia”, a chamada arte consoladora ou entretenimento. Outra coisa foi a Escola Naturalista do século XIX, esta também vista com certo preconceito moralista a seu tempo, e, depois, criticada também pela estética modernista do século XX pelo caráter de ruptura desta última com procedimentos do Naturalismo. A crítica de filiação modernista vê com olhos bem severos os romances que atualizam a estética naturalista em constantes retornos à cena literária. Cito um livro como Tal Brasil, qual romance [de Flora Süssekind] que faz um mapeamento de ressurgimentos da estética naturalista com evidente oposição ao mesmo que privilegia os casos desviantes nestes retornos naturalistas. Não é o meu caso como leitora, gosto muito destes livros naturalistas, embora reconheça neles os preconceitos do seu tempo.
Hoje em dia, os problemas da representação naturalista não se restringem mais à disputa com os meios de reprodutibilidade técnica, como dizia Walter Benjamin, a respeito da fotografia, mas à saturação de aspectos contra-revolucionários desta linguagem. Por outro lado, apesar do propalado “retorno do real” (Hal Foster) ou retorno do sujeito (Klinger), que na verdade, não são naturalistas no sentido da arte naturalista do século XIX, creio que o naturalismo em arte se tornou quase impossível diante dos quadros de “realidadeficção”, termo de Josefina Ludmer, que constantemente fazem vacilar nossa percepção da realidade. Nossa visão de mundo se rachou em fragmentos , frequentemente somos colocados como em “vitrines” para as quais representamos um momentâneo papel, as relações se tornaram mais fluídas tanto em questões de identidades nacionais, linguísticas ou de gênero.
A identidade do Brasil se constrói, em parte em torno de certos marcadores persistentes: democracia racial; a pujança da natureza; futebol; carnaval; novelas etc. São marcas que escamoteiam as disputas sociais historicamente em questão. Marcas que persistem no imaginário coletivo e que são amplamente reforçadas pela mídia e por grupos hegemônicos. Como obras naturalistas podem nos ajudar a compreender melhor esses fenômenos, a desenvolver uma consciência crítica em relação a esses marcadores?
Acho que a questão é a longa duração das mentalidades. Na atualidade brasileira, as forças em tensão ganharam maior visibilidade, os preconceitos ganharam voz, perderam seus disfarces, ou pudores em se revelar, assim como as lutas libertárias e antifascistas também puderam se expressar com maior evidência. A canção de Cazuza: “Brasil, mostra tua cara” revelou uma nação muito mais complexa, reacionária e menos cordial do que podíamos imaginar, mas, simultaneamente, vozes contra o preconceito, contra o machismo, por exemplo, podem até derrotar candidatos. A produção cultural está dentro deste processo, pois, não se precisa de atestado ideológico para ser artista como em países de ditaduras fechadas.
Em sua opinião, é possível afirmar que a literatura de autoria negra (masculina e feminina) no Brasil tem um perfil mais próximo ao naturalismo? Boa parte dessas obras traz consigo reflexões sobre as opressões e outras dinâmicas da negritude no país.
A frase de Blaise Cendrars que figura no Manifesto da Poesia Pau Brasil: “– Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.” É uma frase poética, alegórica e muito sugestiva. Creio que o dia em que o Brasil for capaz de reconhecer o negro girando a manivela do seu destino não como povo escravizado, mas como sujeito de seu destino, o país dará o passo que transcenderá o vergonhoso passado escravagista que perdura nas formas de exclusão disfarçadas ou explícitas, teremos alcançado verdadeiramente a democracia racial.
Outra coisa são os livros escritos por negros. Uma das maiores autoras brasileiras, para mim, é Carolina Maria de Jesus. Trata-se, neste caso, do senso poético de sua linguagem, da força, da potência e do desejo. Quanto à questão da cor, ela pode ser usada para produzir uma literatura forte ou para reforçar os estereótipos que muitas vezes são levados a lema de campanhas políticas. Mas vejo como positivo o interesse crescente dos meus alunos negros por uma literatura escrita por negros, como se buscassem uma “voz” mais próxima da realidade de exclusão por “questão de cor” em que vivem.