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A escritora cearense Jarid Arraes (Juazeiro do Norte, 1991) ganhou projeção ao trabalhar a vida de mulheres negras invisibilizadas pela historiografia oficial em uma plataforma pouco usual no meio literário hegemônico: a literatura de cordel. Nomes importantes, mas ainda pouco conhecidos, como Acotirene, Agontimé, Luisa Mahin ou Maria Firmina dos Reis, figuram entre as protagonistas de seu trabalho. Abaixo, um excerto do cordel sobre Tereza de Benguela:

Nos contaram que escravos
Não lutavam nem tentavam
Conquistar a liberdade
Que eles tanto almejavam
E por isso só passivos
Os escravos se ficavam.

Ô mentira catimboza
Me dá nojo de pensar
Pois o povo negro tinha
Muita força exemplar
E com muita inteligência
Sempre estavam a lutar

Um exemplo muito grande
É Tereza de Benguela
A rainha de um quilombo
Que mantinha uma querela
Contra o branco opressor
Sem aceite de tutela. [...]

José Piolho era o marido
Mas chegou a falecer
Então Tereza de Benguela
Veio pois rainha a ser
Liderando com firmeza
Na certeza de crescer. [...]

Tinha armas poderosas
Pra lutar e resistir
Com talento pra forjar
Se botavam a fundir
Objetos muito úteis
Para a vida construir.

Em um ritmo de produção veloz – ela diz poder escrever dez cordeis em duas horas –, Arraes já publicou mais de 60 cordeis sobre diversos temas, todos pautados por uma proposta inclusiva de minorias sociais ou de temas que envolvam essas minorias: aborto, machismo, além de preconceitos racial, de gênero e de sexualidade. Também lançou o livro As Lendas de Dandara, que reúne todas as histórias em torno da guerreira Dandara dos Palmares (? - 1694). A obra entrou no mercado como publicação independente, mas a edição esgotou e agora será republicada pela Editora de Cultura, que deve chegar às livrarias ainda neste ano.

Para pensarmos alguns pontos sobre o trabalho de Jarid Arraes, conversamos com ela sobre literatura de cordel, sobre o alto teor educativo de seu trabalho e seus próximos projetos.

 

 

Como se deu a aproximação com o cordel e com essas mulheres negras invisibilizadas pela historiografia oficial?

O cordel faz parte minha família, é tradição que aprendi com meu avô e meu pai. Sempre amei, sempre li e sempre quis escrever, mas achava que era difícil demais e totalmente inacessível para mim. Lembro que estava preocupada com a continuidade do cordel na nossa família e no Brasil e fui pedir ajuda para meu pai, porque eu queria começar de alguma forma. Ele me sugeriu que eu escolhesse um dos seus cordéis e tentasse "copiar" um pouco a escrita, apenas modificando detalhes, palavras. Quando sentei para escrever, nem precisei. Fiz o meu primeiro cordel sozinha, em cerca de 10 minutos. Foi mágico. E aí percebi que essa intimidade com a leitura do cordel tinha me ensinado sobre sua métrica e ritmo. Isso me abriu os olhos para a própria questão do que é talento ou "dom", porque se eu não tivesse crescido totalmente cercada pelo cordel, provavelmente não teria tanta facilidade. É tudo uma questão de intimidade, hábito e prática.

E então comecei a escrever cordéis com protagonistas mulheres, negras, trans, lésbicas, bissexuais, etc., até mesmo para trazer uma nova pegada ao cordel, que sempre trata pessoas desses grupos com tanto deboche. Isso me incomodava e eu achei que poderia fazer essa transformação com meu trabalho. Logo comecei a procurar maneiras criativas de espalhar o cordel e de fazer com que esses temas chegassem até as pessoas. Tive a ideia da série de cordéis com heroínas negras na História do Brasil porque essas referências me faltaram; na escola e na faculdade, nunca me falaram de nenhuma mulher negra que criou algo importante ou marcou a história. Tive que pesquisar sobre isso por conta própria e com muita dificuldade, então se eu tinha em minhas mãos uma literatura acessível, barata e didática, nada melhor do que contar as histórias dessas mulheres nos meus cordéis. 

Gostaria que você falasse sobre o seu processo de pesquisa acerca das protagonistas dos seus cordéis. Muitas delas são desconhecidas do grande público. Onde e como você as busca?

Muitas eu ouvi falar em eventos que discutiam racismo, então passei a pesquisá-las por conta próprio, tanto em sites do movimento negro quanto em trabalhos acadêmicos. Depois que publiquei as primeiras, os próprios leitores passaram a me sugerir novas heroínas. Muitas são conhecidas apenas em determinado estado ou cidade, e aí se torna bem mais difícil reunir material, mas tenho conseguido conversar com pesquisadores e pessoas de cada estado que me ajudam a levantar as informações. Uso muito as ferramentas de pesquisa acadêmica online, mas ás vezes peço para amigos de universidades específicas me indicarem trabalhos, me enviarem pelo correio. Eu acho essa etapa bem gostosa, porque acabo conhecendo todo o contexto histórico de cada uma dessas heroínas; tenho estudado e aprendido muito.

Quais os principais desafios éticos e estéticos na hora de criar suas narrativas em cordel?

Acho que os desafios estão mais na distribuição e na valorização do cordel do que em qualquer outra coisa. Digo isso porque o cordel já é muito barato, muito acessível, mas algumas pessoas ainda se sentem no direito de tirar xerox sem minha permissão. Considero isso uma desvalorização grave, não só do meu trabalho como do cordel em si. Felizmente são poucas, pelo menos que chegam ao meu conhecimento. Mas isso faz parte da própria mentalidade em torno do cordel, porque a literatura de cordel não é valorizada como os outros tipos de literatura, é um reflexo do preconceito contra o nordeste.

Já quanto a produção do cordel, eu tenho muita facilidade em escrevê-los, sempre flui muito bem. O mais cansativo é a montagem, porque envolve corte na guilhotina e movimentos repetitivos, até tenho tendinite devido ao esforço constante. Mas faz parte e vale a pena.

Você também escreveu o livro de contos As Lendas de Dandara, no qual você mistura ficção e realidade para retratar a vida de Dandara dos Palmares. Como sente a diferença entre o alcance didático dos contos e dos cordéis? Quais as principais diferenças, segundo sua experiência, na criação dessas duas modalidades de literatura?

As Lendas de Dandara tem um formato interessante, porque os capítulos são como contos, mas a história segue sua linearidade. Todos os capítulos estão ligados e continuam o que aconteceu nos anteriores. Mas eu escolhi essa pegada para transmitir uma aura de lenda, de algo que ouvimos dos mais velhos, histórias tradicionais que são repassadas, sabe? Ele esgotou completamente e agora sairá pela Editora de Cultura, ainda esse ano, mas as pessoas compram muito mais cordéis. Acredito que o fator do valor relacionado a quantidade de cordéis é bem importante nessa decisão. Na escrita, para mim, cordel e prosa são coisas totalmente diferentes. O cordel eu escrevo rapidinho, numa sentada só. Separo um domingo, sento e levo 2 horas para escrever 10 cordéis! Já a prosa exige muito mais tempo e revisões constantes. São processos criativos muito diferentes pra mim. Com a rima e a melodia do cordel, eu jogo com gírias, com termos regionais, até mesmo com palavras escritas de maneira "errada", e eu percebo que me expresso muito no embalo do sentimento daquele exato instante. Acho que é algo mais impulsivo. A prosa me transforma numa pessoa mais paciente e detalhista, penso muito sobre as palavras que uso, sobre a pontuação. Acho mais trabalhoso. Mas é claro que isso está super relacionado com minha história e minha origem. Se eu não tivesse lido cordel desde criancinha, talvez fosse até o oposto. –

Além de cordelista, você fez graduação em Psicologia. Imagino que o aprendizado na graduação influencie seus cordeis infantis ou sobre gênero e sexualidade. Gostaria que você comentasse a intersecção entre a psicologia e o seu trabalho com cordel.

Já conclui minha jornada na Psicologia, não pretendo exercer como profissão, mas sou apaixonada pela ciência, pelo conhecimento e estou sempre encarando o mundo pelas lentes que recebi durante o curso. Acho que consegui me tornar uma pessoa muito mais empática; aprendi sobretudo a ouvir. Escutar os outros é muito importante, é fundamental para que a gente possa falar sobre respeito e diversidade, mas também é um exercício incrível para quem escreve. Quando você aprende a escutar de verdade, consegue compreender a fundo, enxergar detalhes e nuances, e eu acredito que isso melhora a qualidade da sua escrita. Porque você cria personagens e situações mais reais, mais intensas, mais complexas. Então, a Psicologia me ajudou muito nisso.

Qual o público que hoje consome os teus trabalhos? E quais os retornos que você tem recebido a respeito do impacto dele?

Hoje quem compra os meus cordéis em maior número são educadores. Muitas vezes são professores que pagam do próprio bolso e apoiam meu trabalho porque acreditam no potencial que os cordéis possuem em sala de aula. Eu acho isso emocionante, sou profundamente grata porque consigo fazer diferença com o que escrevo e sempre penso em como eu gostaria de ter sido uma dessas crianças e adolescentes que hoje aprendem sobre mulheres heroicas e pioneiras que marcaram a história, ou ainda que tem a oportunidade de aprender literatura, poesia, rima e métrica com versos que falam sobre diversidade, respeito e aceitação.

Eu sempre recebo fotos, relatórios e depoimentos dessas atividades e é invariavelmente lindo. Muitas vezes as crianças ilustram meus cordéis ou escrevem suas próprias estrofes inspiradas nas minhas. Ganho fotos de todo mundo junto, me mandam cartinhas, perguntas... é uma delícia. Acredito que isso vai semear valores e ideias incríveis, boto fé nessa geração e no que vão trazer para nossa sociedade no futuro, mas também desde já.

Isso parece muito positivo dentro da sua proposta de ação. Mas qual a perspectiva de atingir outros públicos? Não sei se você concorda, mas me parece existir certa resistência hoje, mesmo no Nordeste, à literatura de cordel.

Sim, as pessoas não valorizam a literatura de cordel. E é um problema generalizado que é alimentado pelas editoras, livrarias e eventos literários. No meu caso, me considero uma cordelista muito realizada, porque eu consegui conquistar leitores muito diferentes. Existem os leitores que já conheciam o cordel, mas nunca tinham lido nenhum cordel com os temas dos meus; existem os leitores que se interessam pelos temas que abordo, mas não conheciam a literatura de cordel e ainda existem os leitores que se deparam com meu trabalho com um conjunto de coisas novas. O fato de eu bastante jovem para a média da idade dos cordelistas brasileiros também tem um fator importante nisso; eu tenho só 25 anos e já publiquei mais de 60 cordéis. Isso atrai a atenção e curiosidade das pessoas. O fato de que eu não me encaixo exatamente num estereótipo que a sociedade cria para uma cordelista também. Eu tenho tatuagens, não vou aos eventos com um chapeuzinho de couro, enfim, são vários elementos que diversificam mais os lugares onde consigo estar. O cordel é a coisa mais maravilhosa da minha vida, sou muito abençoada por ter leitores tão maravilhosos que realmente se importam de fazer a diferença no mundo.

Já lidou com preconceito pelo fato de trabalhar com literatura de cordel? Ou pelo fato de trabalhar com uma dimensão documental e educativa da história de mulheres negras e de temas ainda polêmicos na sociedade?

Já lidei com muitos tipos de preconceito, tanto os explícitos quanto os velados e mais silenciosos. Os convites que não são feitos também fazem parte desses preconceitos. Mas já ouvi coisas absurdas. Já participei de um evento com outras escritoras em que todas foram apresentadas como escritoras, menos eu. Fiquei me questionando se na cabeça da organização eu não era escritora porque escrevo cordel ou se ignoraram completamente que eu também escrevo poesia e prosa além de cordel. É um trabalho que também envolve enfrentar a discriminação contra o nordeste e o que vem do nordeste. Já com As Lendas de Dandara, por exemplo, acho que o preconceito envolve a temática, o fato de que é uma literatura de fantasia com temática africana e história no período da escravidão. Ouvi, de uma editora para quem apresentei o trabalho, que meu livro "falava muito disso de cor". Mas faço questão de salientar que passei por pouco coisa do tipo, enxergo muito mais o fato de que meu livro esgotou e que hoje minha principal fonte de renda é a venda dos meus cordéis. Isso quer dizer que muita gente gosta, espalha, recomenda, apoia e curte os temas que utilizo. Acredito que estamos interessados nisso tudo, que precisamos de novos ares, de protagonistas e histórias que não sejam mais do mesmo.

Pode adiantar alguma coisa de seus próximos projetos literários?

Ainda nesse ano meu livro As Lendas de Dandara está disponível nas livrarias; a edição independente esgotou e agora o livro está sendo publicado pela Editora de Cultura. No início de 2017, provavelmente em março, lançarem um livro com 15 cordéis das Heroínas Negras na História do Brasil: vai ser um livro lindo, todo ilustrado pela Gabriela Pires, uma designer e ilustradora maravilhosa, e sairá pela Pólen Livros. Estou em processo de finalização do meu livro de poesias e contos eróticos e espero que em 2017 ele também seja publicado. Além disso, estou trabalhando em xilogravuras, que também aprendi a fazer com meu avô e meu pai e fazem parte da tradição da minha família e do cordel.

Também estou dando início a um projeto de editora voltado para publicar apenas mulheres, a Revoada Editora, junto com minha amiga Vanessa Rodrigues. Nós duas facilitamos oficinas de escrita erótica e estamos sempre pautando esses temas no universo da literatura. Por fim, continuo mediando o Clube da Escrita Para Mulheres em São Paulo e já tenho cordéis novos na fila para serem publicados. Ufa! (risos).

Na sua opinião, qual a forma mais justa de entender o seu trabalho? Como uma introdução a essas personagens ou a esses temas, ou você entende que dá conta de dimensões mais complexas?

Eu acho que tudo e todos precisam ser encarados da forma que são: complexos. Nada é apenas uma coisa. Ninguém é somente uma coisa. Eu não sou só cordelista, eu também sou um outro tipo de poeta, eu também escrevo prosa, contos, romance. Eu não só escrevo, eu também canto. E eu gosto de séries e de dança. Não gosto muito de balada, mas ás vezes eu curto uma balada LGBT, porque acho mais divertido. Entende? Todos esses fatores fazem parte da minha escrita e do meu trabalho. São referências que eu reúno, informações que me servem de inspiração, pessoas diferentes que conheço e escuto, etc. Para mim é muito importante que meus personagens sejam diversos e eu absolutamente vou continuar escrevendo coisas que tenham uma proposta de impacto e transformação social. Muitas vezes penso que só o fato de eu escrever uma protagonista que é negra já é um baita ativismo, pois infelizmente quase não encontramos mulheres negras como protagonistas de livros. A lógica é mais ou menos essa. Mas nunca vou me permitir a limitação ou o comodismo. Em breve vou publicar um livro de poesias e contos eróticos, algo que é completamente diferente do que tenho feito até então. Porque eu acho que a escrita é isso: liberdade para experimentar, incluir, transformar, criar sem amarras, sem padrões ou até mesmo sem coerência. Se eu não puder criar mundos dessa forma na literatura, onde farei isso com semelhante liberdade?

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