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“O autor deveria estar aqui”, diz o Cão, que protagoniza a primeira parte de Livro das Postagens (7 Letras), obra lançada na última segunda-feira (21), no Rio de Janeiro, pelo poeta e editor Carlito Azevedo (Rio de Janeiro, 1961). Bem, inevitável dizer que, desta vez, o autor (o da obra) de fato está. Carlito, um dos poetas mais significativos dos últimos 25 anos, volta a publicar poesia inédita após sete anos. Só isso já faz com que prestemos atenção a Livro das Postagens.

Mas reduzir a nova obra à qualidade da trajetória de seu autor é extremamente injusto, dado que Livro das Postagens nos ajuda a olhar algumas dinâmicas do contemporâneo em poesia, tanto na forma quanto no conteúdo.

Dividida em duas partes, é composta pelo “Livro do Cão”, um longo poema protagonizado por um canino oprimido pela obrigação de aparecer, encenar algo sob os apupos de plateia nenhuma, sempre afirmando que O autor deveria estar aqui (no lugar dele, se expondo) e que chegou ali por que foi induzido ao erro; já na segunda, também chamada “Livro das Postagens”, vemos uma sobreposição de fragmentos textuais de diferentes perfis – inboxes de Facebook, postagens, cartas, e-mails e afins. Começa com uma foto que alude ao exílio (uma garota pendurada em um prédio na Argentina, à espera de saber para onde exilados serão encaminhados) e segue por temas mais individuais: amor, relações entre pais e filhos e afins. Ou seja, parte do coletivo ao individual, e nisso lembra muito uma timeline por ter aquela pluralidade de temas cuja linearidade se dá mais pelo fato de ter sido publicado pela mesma pessoa (os afetos dela) do que por uma curadoria nos moldes tradicionais (diálogo de temas ou estéticas entre os poemas ou partes de forma mais evidente).

Nas duas partes, é possível ler a obra como uma ideia sobre a encenação e seus limites. O Cão questiona abertamente onde está o autor, que entendo como a busca por uma experiência genuína de “ser” nesses processos de exposição: quem devia falar aqui preferiu ficar em casa?/ […] quem nos devia palavras / preferiu esconder-se? […] como se as palavras pudessem se dizer sozinhas/ mane thecel phares/ contadas pesadas divididas/ e pronto. Na segunda parte, a encenação é trabalhada pela transposição de experiências de interação/apresentação (mas também há poemas em um formato tradicional). Isso também nos faz questionar até que ponto Carlito ficcionalizou o processo de composição desse livro, um dos temas que ele trata na entrevista abaixo, cedida por e-mail.

Livro das Postagens transmite uma visão angustiada desse processo de estar em interação, de se expor a um outro ou a outros – mas essa angústia não é necessariamente negativa, se olharmos bem; seu teor é mais reflexivo: Estou vivendo mais os poemas / que traduzo / do que a vida em que não faço / outra coisa / além de anotar / esses falsos cálculos / de distância / de afastamento. É uma obra ancorada no presente e a ele crítica.

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Você não publica livro inédito desde Monodrama (2009). Em entrevista ao Jornal do Brasil, quando do lançamento de Monodrama, você fala de uma crise pessoal em que, nas suas palavras, “o mundo, a vida, tudo me mostrou a falsidade desse pacto me atingindo direto no coração, mostrando sua face brutal e me desafiando: Escreve agora”. E que isso te levou a demorar 13 anos para publicar Monodrama. Suponho que a publicação de Livro das Postagens, 7 anos após seu predecessor, também dialogue com o que ficou dessa crise. Pode falar sobre isso?
Dá vertigem imaginar que, comparado com o Brasil de agora, o mundo de agora, aquele cenário de 2009 parece um mundo bastante razoável: o pior estava por vir, ou estava vindo, ou ainda está vindo. A esperança é a de que o melhor também, a nunca descartável possibilidade de uma insurreição. Por outro lado, já me conformei com a ideia de que escrevo lentamente, sou lento, quase escrevo contra a pressa, há um poeta francês que muito admiro, Jacques Roubaud, que diz num poema: “Por que você lê tão depressa? Leia mais devagar. Volte pra linha inicial. Volte dez poemas atrás. Não mude a página! Não leia o próximo poema!” O que ele diz sobre a leitura eu digo sobre o próprio escrever. Não no sentido esteticista de ficar caprichando, buscando a forma exata, a palavra justa. É mais a consciência de que a nossa discordância com o mundo tem que passar também pela crítica a essa pressa que ele exige como exemplo do mérito: tudo tem que ser rápido, feito depressa, o sujeito que termina tudo mais rápido ganha, o velocista do coração, a Fórmula Um da competência capitalista, fale agora ou se cale para sempre. Os poemas longos recentes nascem um pouco do desejo de simplesmente não ter pressa de terminá-los, ter vontade de ficar mais um pouco ali, puxar mais alguns fios desencapados de sua usina central em vez de já partir para outro poema. Uma das coisas mais belas que li recentemente foi o livro do Kazuo Ohno, Treino e(m) poema. Onde se podem ler coisas assim:

"Ao entrar num determinado sentimento, procure não se afastar dele; será que assim, só com ele, você já não adentra num mundo sem limites? Não deixem que essa emoção mude a cada instante, penetrem nela profundamente até onde for possível, com firmeza. Podem pular, podem saltar, podem rolar, podem fazer o que quiserem que essa emoção não se desprende. Só não pode ser um sentimento qualquer."


Suas postagens têm muitos admiradores. Como é sua relação com as redes sociais? Pensa muito no que vai postar?
Eu gosto do Facebook. Entrei em 2011 porque tinha a sensação de que não acompanhar a linguagem que fatalmente se produziria ali, naquela praça de atritos, seria fechar os olhos para alguma coisa forte. Queria mesmo que, se possível, a linguagem do livro novo nascesse um pouco desses atritos. Gosto do que é vulgar, como disse Frank O’Hara num brilhante poema. Agora, depois do livro pronto, penso que a experiência contrária também pode ser boa: sair totalmente do mundo conectado e deixar que o possível futuro livro nasça da ausência de contato com aquilo. Sair das redes sociais, do computador, fazer um livro quase anacrônico nesse sentido. É só uma ideia, uma possibilidade.

Nunca penso no que vou postar, acontece que trabalho grande parte do tempo no computador, traduzindo, preparando aulas, e às vezes um poema traduzido ou selecionado para uma aula qualquer acontece de parecer muito propício para tal ou tal momento, para tal ou tal discussão em voga na praça de atritos, aí eu posto com algum comentário introdutório. Também adoro essa forma de humor nova e anonimizante dos memes e gif’s. São pequenas células desconcertantes que irrompem no meio do blá-blá-blá. Sem falar que essa forma de in-consciente que é o INBOX também é fonte contínua de poesia pelo próprio caráter de misterioso, irrevelável, ficcional, mensagem secreta. Criou-se essa fantasia de que acessar AS MENSAGENS inbox de outra pessoa seria quase descobrir o verdadeiro Eu dela, como se isso existisse. Literariamente acho muito produtivo. Fico pensando numa poeta como Ana Cristina Cesar, que trabalhava tanto com a forma-Diário, e imaginando que ela estaria agora escrevendo um romance chamado: INBOX.


Na segunda parte de Livro das Postagens, você sobrepõe poemas, postagens, conversas no Facebook, cartas e afins. É uma narrativa bastante cortada – e a sinalização desses cortes é a mudança no tamanho ou no formato (itálico etc) da fonte do texto. Todos esses excertos vieram de outras pessoas/livros ou você criou algo?
O Goethe dizia: “tudo o que eu escrevi, eu vivi, mas não como eu escrevi.” Esses excertos foram recebidos por cartas, e-mails, inbox, mas, sendo eu bem menos radical do que tantos artistas contemporâneos que simplesmente assinam o material colhido na internet, como o genial Kenneth Goldmisth, eu transformei tudo, misturei, adulterei, criei um texto novo a partir das mensagens de muitas pessoas diferentes.

Sobre a primeira parte, o “Livro do Cão”, terminei lendo-a a partir de algumas dinâmicas em torno da ideia de publicar: – senti/entendi o cão como uma encenação de todos nós, como se o cão encarnasse o eu do poema, o eu da arte. Esse cão é conhecido por artistas – Tsvetaeva, Maiakovski, Godard, Cézanne, Miguel Gomes etc – e fareja ossos com Hécuba, o que me reforça minha ideia de encenação e a coloca em contato com os clássicos, como algo que a eles remonta. Mas essa interpretação ganha outro caminho com a segunda parte do livro: o cão parece falar às encenações nas relações (cartas e afins, mas as mídias sociais, também). Essas ideias fazem sentido para você? Gostaria que você comentasse sobre esse cão e seus descaminhos.
Contam que um dos maiores compositores do século XX, o grego Iannis Xenakis, certa vez apresentou um conjunto de peças novas para um grupo de críticos e professores de música. E logo depois de executá-las, esse seleto público, entusiasmado, encheu-o de perguntas sobre as obras e o sentido das obras etc. Ele disse apenas: “A minha parte foi compor, a de comentar, interpretar etc é com vocês. Agora eu fico caladinho e vocês falam.” É o que sinto também. Essa sua leitura aí me pareceu brilhante. Nunca tinha pensado nisso porque nunca tinha pensado em nada. Esse cão que de repente se vê colocado no palco, obrigado a improvisar diante de uma possível plateia, sem saber o que fazer ou dizer, é um pouco cada poeta que abandona o pré-formatado, o já feito, o que “conquistou” com sua linguagem, a “voz” por que é reconhecido. Não ser reconhecido por seu cãozinho é a prova dos nove da vida viva, como disse Gertrude Stein.

“Livro do Cão” parece apresentar o eu poético que continua em “Livro das Postagens”: aparentemente, alguém jogado em uma opressora rede de encenações. A diferença é que o cão tem uma postura abertamente reflexiva a respeito disso e sempre busca o “autor” (um eu real, ou uma experiência genuína de ser naquele ambiente opressivo, talvez), enquanto no segundo, essa consciência é exposta de forma mais sutil. Não sei se você vê sentido nisso que digo. Caso veja, como surgiu a ideia de criar esse diálogo?
Algumas coisas se repetem nos dois poemas. Por exemplo, a referência à ópera Lulu, de Alban Berg, mais especificamente ao verso cantado no momento em que Lulu, essa intensa e maravilhosa personagem, é obrigada a cruzar a fronteira. Nasce também dessa ópera o desejo de criar um prólogo. Como se sabe, em Lulu, antes que se abram as cortinas, um sujeito sobe ao palco e canta um prólogo sobre tudo o que se verá assim que comece a função. Ele se faz de domador ou apresentador de circo, e anuncia que dentre todos os animais já vistos em zoológicos e feiras, ele apresentará o mais perigoso: Lulu. Que no fim das contas só se dá mal nas mãos de homens cujo apetite sexual desperta invariavelmente, até terminar morta por Jack, o estripador. Sendo essa ópera, talvez, a obra de arte que mais amo na vida, quis muito reproduzir essa estrutura de prólogo e encenação. Mas o cão, alimentado por outras e próprias vontades, cresceu demais e virou um longo poema à parte. Depois surge esse “poema em vozes”, o “livro das postagens” propriamente dito, onde não mais um cão preso num cubo, mas um homem preso num apartamento, esperando a volta de alguém que se foi, dialoga com vozes imaginadas, ou que chegam pelas redes sociais. Ele se emociona muito com um post (real, com foto real) de uma mulher sobre sua fuga do Brasil, quando criança, na época da ditadura militar, numa tentativa de sua família de se exilar no Chile. É um mundo de muita paixão, muito desejo, muito impulso utópico, contrastado violentamente com um momento em que nada disso parece fazer parte da lista de prioridades oficiais. Hoje em dia, parafraseando Doblin, trata-se apenas de assegurar o pão com manteiga.

Na segunda parte da obra, chamada “Livro das Postagens”, você parte de uma imagem comentada para seguir um caminho que vai e vem em temas de ordem coletiva (a política por trás daquela imagem de uma garota pendurada à espera de notícia sobre o exílio) e individual (relações amorosas, ou entre pais e filhos, por exemplo). Como uma experiência de usuário de Facebook (a ideia de postagens na timeline e diálogos inbox), seu "Livro de Postagens" parece preocupado em lançar o que afeta o eu poético ao invés de buscar uma linearidade mais tradicional às obras de poesia. Pode comentar essas ideias?
Se me é permitida uma resposta tão particular assim, em 2011 eu fui convidado para a experiência mais revolucionária da minha vida. Dar oficinas de poesia em comunidades carentes e quente do Rio de Janeiro, mais especificamente: a Favela da Rocinha e o Complexo do Alemão. Foi o momento das Upp’s, do caso Amarildo, da Copa, da crise do Estado. E trabalhar ali com aquele grupo de pessoas, algumas delas as mais extraordinárias que dei a sorte de conhecer, deslocou totalmente o que eu pensava de poesia, na verdade deslocou totalmente o que eu pensava da vida. A poesia foi só uma consequência. Lembro que no primeiro dia de aula havia uma greve de lixeiros no Rio, e eu cheguei na Rocinha achando que isso seria um bom tema para conversa e escrita, a greve do lixo, a greve, o cruzar os braços, a reivindicação, Bartleby etc. Chegando lá, eles me perguntaram: “Ah, estão em greve os lixeiros? A gente não sabia, porque eles só aparecem aqui uma vez a cada dois meses e tal...”, bem, isso é só um exemplo de um primeiro dia de aula de uma oficina que não para de me ensinar e re-situar no mundo. As perdas que sofro hoje, que todos sofremos hoje, já me encontram um pouco mais preparado por ter tido essa experiência tão funda de poesia ao lado de quem perdeu sempre. O que quero dizer com isso é que, a partir disso, qualquer coisa que eu escreva vai ter, pelo menos idealmente, na minha cabeça, cada vez menos relação com o que tradicionalmente se pensa que deve preencher um livro de poemas. O que quer que eu escreva e faça agora tem que encarar o fato de que luta de classes não se apazigua, luta de classes se ganha. E a poesia ou aumenta o número de véus sobre esse fato, ou rasga esses véus.

Seguindo a linha de interpretação que estou propondo aqui, Livro das Postagens (a obra como um todo) oferta um olhar totalmente ancorado no presente, mas crítico a ele – ou seja, é contemporânea. Em suma, entendo a obra como uma reflexão sobre a encenação social na atualidade (ainda nas cartas, mas na timeline das mídias sociais, caixas de mensagens dessas mídias etc). Você complexifica essa reflexão ao trazer interlocutores que cortam a narrativa (na segunda parte da obra) e ao escrever um prólogo que alegoriza o ser que encena. A visão criada no livro sobre essas dinâmicas da encenação não chega a ser negativa, mas é uma busca a tal ponto profunda que transmite certa angústia. Gostaria que você falasse sobre isso.
Causar essa angústia é tudo o que almejei. Um desconforto, em lugar de conforto. Penso que parte da poesia atual se aproveita do vazio deixado pelos “grandes letristas” de MPB, e tenta aquela mesma voz dócil ao ouvido do leitor, aquele mesmo poema-afago. É uma poesia que cumpre exemplarmente as expectativas do leitor de poemas: colocar a mão no coração, dar um suspirinho e pensar: “ah, é isso mesmo o que eu sempre quis dizer e não sabia como”... A poesia que desejo é outra. Quase uma poesia de que se dissesse: “ah, como eu preferia não saber isso, mas agora que sei não tem mais jeito, ela não me permite mais o auto-engano”. Não há ninguém que ame mais a vida do que eu, uma caminhada pelo centro do Rio (não o Rio das praias), Catete, Largo do Machado, Laranjeiras, Botafogo, uma parada num de seus inúmeros sebos, onde encontro frequentadores que parecem ter vindo do mundo de onde eu vim, uma certa forma da luz bater nuns cabelos esvoaçantes dentro de um ônibus (só ando de ônibus), tudo isso é tão forte. E por isso minha discordância do agora, todo feito de inviabilidades. Querem que você não saia mais de casa, não vá mais para a rua, que a rua seja só a rota de passagem de mão de obra para o trabalho, não mais o lugar do encontro. Todo poeta é de oposição, já dizia o polonês, Zbigniew Herbert, e agora mais ainda.

“Se depois de tudo ainda consegui preparar um livro novo é porque fui buscar no veneno o antídoto, e porque escrever é mesmo como arrancar espinhas”, você diz na entrevista ao Jornal do Brasil. Quais as suas preocupações ao fazer poesia, hoje?
Ah, a maravilhosa Clarice Lispector. Você sabe que isso vem de uma entrevista dela, não é? Perguntaram pra ela porque é que ela escrevia e ela disse: “Não sei. É como arrancar espinhas. Um dia você acorda e ela está lá, e é preciso arrancá-la”. O que é bonito porque mostra a criação não como algo etéreo que vem do céu trazido por uma musa diáfana, mas sim como algo seboso, que tem a ver com pústulas, cistos, inflamações, e brotam de dentro, e não são previstas. Um dia acordei com esse cachorro latindo dentro, e tive que arrancá-lo.

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