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Aqui reproduzimos na íntegra a entrevista com Bernardo Carvalho, reduzida na edição impressa por questões de espaço.

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Diante de um terrorista ferido, assustado e que pode se imolar a qualquer instante, um homem começa a contar-lhe a sua vida. “Minha vida acabou faz três anos, às vésperas dos meus cinquenta e três anos, na antessala de um teatro, em Berlim. Quer dizer, ali eu comecei a morrer.” Pouco importa ao funcionário da agência humanitária que o seu algoz não entenda uma palavra do que é dito. O importante é contar, contar e contar, talvez na tentativa de entender, e sobreviver.

Esse homem perdido, mergulhado numa crise, é o personagem que Bernardo Carvalho encontrou para falar sobre o desejo, a dificuldade de lidar com a deterioração do corpo, a necessidade (e o perigo) de voltar a se apaixonar, o preço de estar vivo. Esses são os temas centrais de Simpatia pelo Demônio, mais recente romance do escritor nascido no Rio em 1960, mas que há duas décadas adotou São Paulo como casa.

Formado em jornalismo, o que Bernardo Carvalho queria era fazer filmes. Virou crítico de cinema e editor de um suplemento cultural da Folha de S.Paulo. Dali foi ser correspondente em Paris e Nova Iorque. Estreou na ficção em 1993 com o livro de contos Aberração. Em 2003 recebeu o Prémio Portugal Telecom pelo o romance Nove Noites. Em agosto publicou Simpatia pelo Demônio, livro que motivou essa entrevista feita em Portugal, no final de setembro, num lugar cujo nome parece inventado: Imaginário. Nessa vila ao lado de Óbidos, a uns 100 km de Lisboa, conversamos.

Você contou que quando escrevia o Simpatia pelo Demônio aconteceu uma coisa que nunca tinha experimentado, teve medo de morrer sem terminar um livro. E por isso ia na rua pensando que não podia ser atropelado, que tinha que chegar em casa logo...
Sim, e não era uma sensação boa nem de angústia. Apenas era que eu tinha que voltar pra casa e acabar o livro, porque havia nesse livro um sentido de urgência que nunca tinha sentido antes. Ou seja, eu não podia morrer antes de terminá-lo. É mais isso, essa urgência de terminar. Àquela altura, eu já sabia mais ou menos o que ia acontecer no enredo, mas a urgência tinha a ver com o risco de alguma coisa acontecer comigo antes de eu ter chegado ao fim.

Você demorou bastante para fazer esse livro, não?
Demorei porque fiz o livro de forma intervalada. Durante muito tempo eu não tinha consciência de que ia fazê-lo. Por exemplo, há uma espécie de peça de teatro que aparece no romance, não? Comecei a esboçar aquilo quando morei em Berlim em 2011 e 2012. Pensei que estava escrevendo uma peça de teatro de verdade. E depois deixei aquilo. Quanto entrei numa crise da meia idade comecei a dar forma para o livro. Incorporei também a questão do terrorismo e no final acho que juntei um monte de coisas que já tinha escrito ao longo do tempo. Aparece um monte de citações, [notas de] visitas a museus, descrições de quadros, parte disso foi feita quando eu não tinha ainda a consciência do livro.

A matança na boate em Paris, em novembro de 2015, está no livro. Como aquilo foi parar na sua história?
Naquele momento eu já tinha plena consciência do livro, os personagens já existiam. E como o protagonista trabalha com essa coisa da violência no Oriente Médio, na África, tinha a ver com esse acontecimento. Quero dizer, tudo o que tem a ver com terrorismo passou a fazer parte do livro. Então aconteceu isso em Paris e eu incorporei.

A sua maneira de trabalhar é sempre assim sem plano, deixando-se levar pelo que aconteceu durante a escritura do livro?
Não, depende. Tem vezes que o final e o início estão prontos e só vou recheando a história. Acho que cada livro é um livro. Esse teve um processo muito particular que é o fato de eu ter passado por essa crise, de ter sido escrito por um motivo pessoal. Tomei consciência do que eram as coisas que eu queria dizer ao longo desses anos, precisei desse tempo para entender o que eu estava passando, o que era essa crise, e também de entender a ideia de juntar a crise que o desejo provoca no íntimo com a questão pública, coletiva. Por exemplo, para mim, no caso do terrorismo, é claro que esses caras, com o pretexto de estar lutando por Deus, contra a opressão do Ocidente nas ex-colônias, eles estão mirando lugares que são muito definidos sexualmente como boates gays.

Você fala da intolerância?
Não, não tem a ver com intolerância, tem a ver com uma dimensão da frustração do desejo. Por que ele atacou a boate gay se o negócio dele era Deus? Acho que tem uma grande dimensão pessoal em relação ao desejo, ao amor, e uma frustração em relação ao sexo. Isso pra mim me interessava, ou seja: o quanto essa dimensão pessoal, individual, do desejo influencia nas ações violentas? O que essa frustração sexual e amorosa acarreta na produção da violência?

Isso é uma preocupação recente sua, ou era algo que o acompanhava e agora você conseguiu levar para um livro?
Não é recente, mas acho que tem a crise da meia idade que faz com que o seu desejo, o seu sexo, o seu corpo piorem, e com isso você tem uma frustração do desejo e das suas expectativas. O personagem do livro tenta renovar a vida na meia idade tentando reatar com uma paixão adolescente fora do lugar. Isso é claramente o resultado de uma frustração. Acho que ele está nessa porque tem uma consciência da perda, vê o desejo e o prazer no outro e está inconformado porque não tem mais.

E você acha que o terrorista também sente isso?
Tem alguma coisa no terrorista que faz com que ver o prazer do outro seja insuportável. Tem essa analogia desses dois lugares no livro. Mas não precisa estar na meia idade para sentir isso, pode estar em qualquer momento. Depende da maneira como a pessoa lida com o desejo, o afeto etc. Mas é claro que esses caras, sendo educados numa sociedade muito restritiva...

O assunto do Mal é recorrente nos seus livros, não é?
Claro, mas neste tem uma coisa muito pontual que me interessava e cuja consciência eu tomei um pouco por essa ideia de chegar aos 50 anos e perceber que as coisas não serão mais iguais ao que foram nesse quesito sexual, afetivo. Isso me interessava, me interessava a profissão do personagem [funcionário de uma agência humanitária]. Tem um problema nele que não está nomeado e é disso que ele precisa fugir o tempo inteiro. Ele vai trabalhar com a guerra porque ali a violência está nomeada, é o porto seguro, não tem perigo na guerra. O perigo é muito maior ao enfrentar o desconhecido, um lugar em relação ao qual ele não tem domínio. Você estuda para enfrentar a guerra, aprende táticas para combater a violência – ele tem uma tese sobre isso – mas nada disso é suficiente para combater uma violência interna, uma crise interna da qual ele está tentando fugir desde sempre e que acaba estourando na meia idade.

E acha que escrever um livro que fala disso o ajudou também a superar essa crise? Serve um pouco como terapia?
Não, não é terapia, mas esse livro me ajudou muito a sair da crise porque eu dei um nome às coisas, e quando você dá nome às coisas fica mais fácil lidar com elas. Quando você escreve está buscando entender alguma coisa. Não se escreve para efeito terapêutico, senão o livro não teria motivo de existir, bastaria você se curar para jogar o livro fora. Acho que o entendimento talvez tenha acontecido antes, a consciência veio na hora que entendi que tinha um livro.

E esse momento é angustiante? Isso de estar escrevendo sem saber bem por quê e para quê?
O processo é um processo normal. Angustiante é você passar por uma crise em que você vê que o seu corpo não é mais o mesmo, angustiante é lidar com essas frustrações. E aí você pode escrever um livro ou matar 50 pessoas numa boate gay, você resolve. Não tem a ver com terapia, são objetivos diferentes. Esse da literatura tem mais a ver com a razão, com a razão como instrumento para se criar um negócio que é artístico, estético... Eu podia, de uma forma bárbara, animal, embrutecida, sair atirando para tudo que é lado. Então acho que a diferença é essa, mas essa diferença existe a priori, não é a literatura que salva. Eu já não sou o cara que vai atirar em todo mundo, porque quero fazer literatura.

Você criou essa fantasia para falar de um assunto que deve existir desde sempre, o desejo. Mas fala também de um assunto de agora, o terrorismo...
Hoje, tem uma espécie de regra, de preceito do romance realista contemporâneo, sobretudo o anglo-saxão, que diz que o romance realista não diz, ele mostra. Por exemplo, um romance em que o narrador dá opinião e explica quem é o personagem é considerado um mau romance. O interessante dentro desse preceito, que tem coisas maravilhosas na origem, como Tchekhov, é que você não diz quem é o personagem, você mostra o que ele faz e o leitor entende a partir da ação. Eu estava lendo muito o Proust na época, e o Proust faz um romance super realista, mas o narrador proustiano também dá muita opinião, ao contrário desse preceito. E tem horas que ele, de tanto tentar descrever as coisas, com um esforço sobre humano, chega a verdadeiras epifanias e consegue descrever um copo, por exemplo, melhor do que jamais foi descrito na história da humanidade, com sentimentos, sensações. E isso é incrível. Não estou me comparando, mas eu queria fazer um romance realista no qual o narrador refletisse o tempo inteiro, desse opinião, tivesse juízo de valor.

E por que personagens sem nome, em forma quase de fábula?
A fábula é um gênero claramente reflexivo, não é uma forma realista, é uma parábola. Meu livro não é a ilustração de uma tese, mas eu queria que ele fosse lido como uma fábula, como uma parábola contemporânea que talvez não tenha moral mas que fosse um texto de reflexão. O narrador recorre a um monte de elementos, citações, quadros, obras literárias, e tudo serve para tentar entender um objeto. É como se o Chihuahua fosse um objeto, uma projeção, por quem ele [o personagem principal, chamado Rato] tem essa obsessão amorosa, um objeto que ele está tentando entender loucamente. Tem muita coisa repetitiva no livro, sobretudo no final, quando ele fica super analítico em torno do personagem, porque é como se fosse um desespero de entender um mundo, entender um objeto que é totalmente opaco. E o narrador, embora seja em terceira pessoal, está colado no protagonista. O narrador e o leitor só conseguem ver o que o Rato vê e só têm as informações que o Rato tem. Isso também vem da ideia de criar um personagem que é opaco, o Chihuahua, e que pode ser só uma projeção, uma fantasia do Rato.

Mas o leitor não sabe até que ponto o Chihuahua realmente manipula ou aqui é uma interpretação do Rato...
É, o fato é que, na relação, pelos olhos do Rato, o que acontece é uma interpretação extrema, e eu queria botar o narrador e o leitor do lado do Rato. Só que tem uma coisa importante, o Rato não é uma vítima inconsciente, ele é consciente do que acontece. Ele vai sendo manipulado, ele diz que está sendo manipulado, mas prefere ser manipulado a não ter aquela relação. É uma ideia de que para estar vivo você precisa correr risco de vida, e é uma opção que ele tem. Ele prefere isso a ter uma vida sem o risco da paixão.

No outro dia você dizia que achava muito bom viver, que mesmo quando tudo dava errado não perdia essa vontade de estar vivo. Foi difícil atingir essa paz?
Esse negócio de gostar de viver não tem nada a ver com paz ou espiritualidade, tem a ver com a vida. Vida não é paz, mas é bom. É disso que eu estava falando. O protagonista do livro também parte desse princípio e acaba se fodendo. É ambíguo. Ele não vai buscar a paz (tenta fazer isso profissionalmente), não vai buscar algum tipo de espiritualidade fora do mundo. Ao contrário, ele quer estar no mundo, quer viver, quer a paixão como na adolescência. É o contrário de religião, meditação, tranquilidade etc. É muito bom, mas pode te matar. É isso.

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