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As questões abaixo lançadas surgiram de uma primeira leitura de O método Albertine, de Anne Carson (Canadá, 1950), cuja tradução será lançada pela Edições Jabuticaba nesta quarta-feira (1º) em São Paulo. Publicamos um trecho aqui. A tradução e apresentação são da ensaísta e tradutora Vilma Arêas, com quem conversamos sobre a obra de Carson. É o primeiro livro da autora traduzido no país.

O método Albertine trava uma queda de braço com Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu, em francês), de Marcel Proust. O ponto óbvio entre ambos é Albertine, a personagem encarcerada pelo narrador da obra do autor francês. Em tom de observações ensaísticas, O método... é dividido em duas partes: na primeira, são elencadas 59 reflexões rápidas sobre a figura de Albertine na trama; na segunda parte, há apêndices com reflexões mais extensas e profundas.

É preciso reconhecer, entretanto, que as questões lançadas abaixo dificilmente resistem a uma segunda leitura do livro. É uma obra bastante racional. Ainda assim, bastante arredia a ideações - pois a sensação de que algo escapa é evidente: sejam algumas emoções ao longo do texto, a reles pretensão de dar conta de forma rápida uma obra como a de Proust, ou ainda a evidente estranheza que salta ao leitor; o livro parece falar de Proust, mas também de nada específico (apesar das óbvias referências à obra do francês). 

Ao ler o livro, a primeira sensação diante da apresentação de Vilma Arêas é a de incompletude: como um texto tão rápido pode apresentar de forma coerente os pontos de O método Albertine? Na segunda leitura, entendi que qualquer coisa que Vilma falasse além do já dito poderia soar como uma extrapolação. Por isso, seu texto é uma rápida apresentação que, ao fim, deixa a cargo do leitor descobrir ou desenvolver o seu método de leitura. É um olhar plausível.

Portanto, divulgamos essa conversa cientes de seu escopo limitado. Que ela ao menos possa despertar alguma curiosidade nas leitoras e leitores.

 

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Na sua opinião, para uma pessoa não-familiarizada com a obra de Proust, existe dificuldade em acompanhar a obra? Como a leitura ou não leitura do autor francês, na sua opinião, pode influenciar a leitura do livro de Carson?

Quem conhece a obra de Proust aproveitará mais do livro da Carson, sem dúvida. Mas na verdade, mesmo que não tenha lido todos os volumes da Recherche, acredito que pessoas interessadas em literatura já foram apresentadas ao assunto, à madeleine e a alguns personagens de Proust. É o que acontece com as grandes obras da tradição. Além disso é um convite para os que não leram o livro, que o leiam.

 

Uma rápida pesquisa mostra a dificuldade em se achar a obra de Anne Carson em português – a não ser em traduções pontuais e esparsas na internet. Que saibamos, se trata da primeira tradução no Brasil da obra da poeta. Você pode falar sobre o lugar de O método Albertine na obra de Carson?

A intenção da Jabuticaba é justamente esta: colocar em circulação alguns livros de grande interesse e de pouco acesso à maioria das pessoas.

A obra da canadense Anne Carson acolhe perfeitamente O método Albertine, pois é construída, com grande risco, no fio oscilante entre prosa, poesia e ensaio, sem recuar diante da crítica e da ironia, manejadas com grande inteligência.

 

Você diz, na apresentação, que “o livro desafia o leitor ao exercício mental para alcançar uma compreensão desejável do livro, com suas alegrias e penas”. Para você, qual o método Albertine?

É justamente este: forçar a leitura atenta, lenta, como um exercício, que expulse a preguiça, a “gordura” de nossa percepção, desejavelmente elástica e enxuta para atingirmos a compreensão do que lemos. Tudo isso, claro, exige método, tanto a escrita quanto a leitura. Lembra daquele colega que dizia “não estudei nada” e só tirava 10? Grande mentiroso. Tinha vergonha do suor do esforço e esperava que acreditássemos que tudo lhe caía da luz do céu.

 

O método Albertine soa como uma catalogação das obsessões, evidenciando, em pilulas, a complexidade de uma paixão/ciúme/doença. O fato se de ser erigido em fragmentos passa a ideia de que somos guiados pelas ruínas de uma obsessão.

Acho muito geral este comentário, pois o livro não esconde que é uma leitura de parte da Recherche. Muito da paixão, do ciúme, da doença – como você colocou- não é examinado em geral, mas perfeitamente condicionado pela época, pela ideologia do tempo, pelo privilégio de classe e de gênero. Condicionado pela lilmitação de qualquer livro. Mas não se trata de um trabalho acadêmico, e a autora zomba disso, conforme tentei mostrar. O fragmento é a forma ideal para soltar as idéias e forçar o leitor a ir atrás delas. Além disso, estamos todos condenados ao fragmento nos dias que correm. Nossa vida é aos pedaços. Acho até que o coração também.

 

Na apresentação, você diz que há uma “luta corpo a corpo” entre O método Albertine e Em busca do tempo perdido. A estruturação do livro em fragmentos (como sefossem tópicos), além do tom investigativo e pretensamente sóbrio – inclusive com dados percentuais e afins – mostra uma tentativa de domesticar a obra de Proust de forma ficcional. Mas que se destina à falha, como nos momentos em que surgem a ironia ou a lástima. Enfim, um embate e uma falha performáticos, que nos mostram tanto a potência de Carson quanto a grande sombra que é a obra de Proust.

Olha, muito inteligente a observação. Só acho que a autora não pretende exatamente domesticar a obra de Proust. Este é um termo muito forte. Talvez ela pretenda se aproximar, abraçar a obra, embalando-a com grande energia para trás e para a frente, de Hamlet a Vertigo [Um corpo que cai, 1958, filme de A. Hitchcock], entre passado e presente.

 

Segundo vários estudiosos, Proust pode ter concebido Albertine a partir de uma assimilação de Alfred Agostinelli (seu chofer). Ou seja, uma mimetização muito próxima ao real, que complexifica suas interpretações. É possível pensar que O método Albertine se erige de forma parecida para Anne Carson? Com o ofício dela como pesquisadora e o modo como decide “investigar” Proust semelhante a um estudo – no caso, a estética calcada na realidade dela como pesquisadora.

Concordo em parte. Sim, é uma ficção investigativa – como aliás a própria obra de Proust. De forma mais clara, para mim, acho que a Anne Carson é uma escritora que aposta na inteligência, também na inteligência do leitor, para evitar talvez a contaminação usual da literatura com a pieguice e com a sentimentalidade. Sem esquecer os dividentos comerciais.

 

Você é especialista na obra de Clarice Lispector. É possível estabelecer pontes entre ela e Carson?

Acho muito diferentes o trabalho de uma e de outra. Clarice é uma escritora intuitiva. Agora virou santa, o que sucedeu um dia com Fernando Pessoa, que é o pior que pode acontecer a um escritor.

Porque ninguém avalia mais – trata-se de um sacrilégio - já chegam para adorar. Então não leem.

Ambas, Clarice e Carson, não temem a radicalidade do tratamento dos assuntos, cada uma a seu modo. A primeira pode abandonar o barco ao sabor da corrente – às vezes dá certo, às vezes não- e a segunda controla mais a construção, o que também pode trazer problemas.

 

Na sua interpretação, é possível ver algum tipo de entendimento político em O método Albertine?

Acho que sim. Primeiro, porque tudo é político, até pela negação da política.

Eu diria que propor uma nova leitura de um livro extraordinário como o de Proust, que todos elogiam, mesmo os que não o leram, é político. O que ela aconselha é que expulsemos as leituras soltas, amorosas ou sisudas a favor de um método de leitura. Ela nos oferece seu método. Violentamente fragmentado. Adorando e criticando. Procure você o seu. Procure seriamente, com paciência, una e separe, retorne, avance. Leia de novo. Consulte seu repertório. Isto também não é uma denúncia a essa nossa louca correria que assola todas as atividades, intelectuais ou não? Por que somos forçados a ler tudo enviesadamente? É que não há tempo. Tempo para quem ou para o que, cara pálida?

A desmistificação do que se chama “amor” a favor de um jogo de forças e de classes é também bastante interessante. Além, claro, de passagens pontuais como o da “escrava pesada” e o do apêndice 8, “a miopatia por captura”. Não se esqueça: não existe tratamento médico para essa doença terrível. Doença social, claro.

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