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Temos visto associações da mídia entre a era Trump e algumas das grandes obras distópicas do século XX. Inclusive, títulos como 1984 e Admirável mundo novo voltaram para o topo da lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. Mas o que de fato dizem essas obras do século passado sobre o momento atual? E em termos da América Latina, qual o legado de narrativas distópicas diante do nosso histórico de medidas restritivas e de regimes autoritários – na segunda, dia 30, por exemplo, o presidente da Argentina Maurício Macri assinou um decreto restringindo a entrada de imigrantes do Peru, da Bolívia, do México e do Paraguai?

Sobre esses temas conversamos com Alfredo Cordiviola, professor titular do departamento de Letras da UFPE e organizador do livro Fábulas da iminência - ensaios sobre literatura e utopia (Editora UFPE), que está fazendo um pós-doutorado em Nova York. Na entrevista, entre outros pontos, sugeriu que o romance de ditadura talvez seja um bom exemplo de literatura distópica na América Latina.

 

A vitória de Trump levou obras que trazem narrativas de distopia, como 1984 (George Orwell) e Admirável mundo novo (Aldous Huxley), de volta para a lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. De uma hora para outra, vários sites políticos passaram a fazer relações de Trump com o enredo de 1984, por exemplo. Você acredita que as grandes distopias da literatura do século 20 estão dando conta bem do momento político que estamos vivendo?

Além de Orwell e Huxley, e de outros clássicos como Bradbury e Philip K. Dick, outras distopias que estão tendo destaque são The handmaid´s tale, de Margaret Atwood, e os romances de William Gibson. Outra é mais antiga, dos anos 30, e talvez mais certeira e visionária para descrever a era Trump: It can´t happen here, de Sinclair Lewis [nota do editor: romance de meados dos anos 1930, publicado no crescimento do fascismo na Europa, sobre um presidente dos EUA que é eleito prometendo drásticas mudanças econômicas e o retorno dos valores pátrios. O livro voltou à lista dos mais vendidos após a vitória de Trump].

Hoje, depois de decretado o travel ban, muitas das críticas passam pelo discurso de que Trump não é América, que isso não pode acontecer, que o país tem uma tradição de inclusão e respeito etc. Mas Trump não veio de outro planeta, é um produto cem por cento americano. Esquecem que quem começou o muro na fronteira com o México foi Clinton, continuado por Bush e Obama; Obama foi o presidente que mais deportou imigrantes. Esquecem também de todas as conspirações que foram tramadas pelo governo americano durante o século XX, e que continuam até hoje. Ou seja, a distopia e os desarranjos não começaram há uma semana, são bem mais antigos e bem mais profundos, infelizmente. Eu confio, de toda forma, que a resistência aumente, já que os Estados Unidos contam com uma admirável tradição de resistência civil, que tenderá naturalmente a crescer nestes tempos.

Transformar o imigrante em inimigo é um velho recurso utilizado por governos desesperados em busca de aprovação. Alimentar a xenofobia pode render votos fugazes, mas é desastroso para o tecido social, e totalmente nulo como instrumento de combate ao crime. Que o governo de Macri tome agora esta medida não surpreende; é mais uma medida vergonhosa de um governo inescrupuloso, que se sustenta nas mentiras, nos juízes amigos e na proteção midiática das grandes empresas de comunicação. 


Quando falamos de distopias, em geral, tratamos de obras sobre estados totalitários e escritas por autores europeus e ou norte-americanos. Mas a América Latina também tem um histórico de regimes ditatoriais. Existem obras sobre distopias de autores latino-americanos que denunciem esses regimes, ou a tradição literária do continente se interessou em tratar desses temas por outras vias, como romance de ditadura/de ditador?


Uma das distopias mais importantes da literatura latino-americana eu acho que é El eternauta, de Héctor Oesterhled, vítima, como quase toda sua família, da barbárie da ditadura argentina. Na literatura argentina contemporânea há outros casos, como Pedro Mairal (El año del desierto) e Marcelo Figueras (El rey de los espinos).  Por outro lado, os romances de ditadores do século XX podem ser lidos de certa forma como distopias, e certamente também Roberto Bolaño (por exemplo, La literatura nazi em América) tem contribuído para ampliar os sentidos das nossas distopias.

 

Estamos falando sobre distopias no momento em que a Utopia, de Thomas More, completa 500 anos. O que ainda ganhamos na leitura desse texto?

A Utopia de More está baseada numa certa ética da amizade, que permite a reunião dos homens que em Antuérpia falam e escutam as histórias sobre a ilha atlântica. Aponta a uma certa globalização harmoniosa, mesmo que indique que isso, provavelmente, não venha a acontecer. E, mais importante ainda, a obra de More, entre a mordacidade e o desencantamento, nos deu uma palavra, utopia, que sempre será fundamental para pensar, encarar e transformar o futuro.

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