Nota: A entrevista com Amara Moira, reduzida no impresso por questões de espaço, segue abaixo na íntegra.
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Amara Moira é travesti, puta e cursa o doutorado em Letras na Unicamp. Mais recentemente, assumiu o lugar de escritora: é autora do livro E se eu fosse puta? (Hoo Editora), no qual narra sua experiência pessoal trabalhando nas ruas. Mas é uma vivência coletiva, porque todas as mulheres trans que ofertam serviços sexuais têm histórias fortes para contar.
Composto por textos breves e dinâmicos, E se eu fosse puta? é um livro político e didático que convida o leitor à alteridade, a se colocar no lugar da protagonista. O fato de ser escrito em primeira pessoa fortalece essa proposta: Amara é protagonista da sua história e essa potência, associada a um trabalho estético apurado, dota a obra de caráter envolvente. Seus textos, originalmente publicados em blog, foram escritos no “calor” daquelas vivências e, posteriormente, revisados para se compor em livro.
Há algum tempo, o termo puta, assim como o termo bicha, passa por um processo de transformação, indo de xingamento a ferramenta para resgate da autoestima e instrumento contra as humilhações. É um processo ainda em escala reduzida (mais restrito à militância LGBT), mas crescente, e mostra a estratégia em transformar a palavra que oprime na que liberta. A linguagem é algo político.
Amara, que estuda James Joyce no doutorado, domina esse conhecimento. Nessa conversa com o Pernambuco, ela fala sobre como encara seu livro, os processos de composição dos textos, suas influências literárias e recomenda leituras.
Após ler seu livro, consigo enxergá-lo como uma reunião de crônicas políticas. Como você o entende?
É ambíguo pra mim o que esse livro significa. Quero ser escritora, sempre quis ser escritora, então gosto de entendê-lo como literatura, como laboratório de linguagem, eu brincando com as palavras como se usasse luvas, pinças e tubo de ensaio, à procura da melhor reação química que elas possam provocar. Por outro lado, se bato o pé que esse livro é literatura, pode parecer que o seu conteúdo é ficção, obra da minha mente criativa, coisa que me desagrada muito, pois preciso que as pessoas entendam que isso que retratei ali, por mais pavoroso que pareça, é vida cotidiana pra travestis, é a vida a que a maioria de nós tem direito, principalmente as que são prostitutas. Então é sempre nessa tensão que tento compreendê-lo, valorizando meu trabalho com a linguagem, meu trabalho de escritora, mas sem abrir mão jamais de afirmar que ele é reflexo das minhas experiências como prostituta, da vida que encontrei pela frente ao me afirmar travesti.
Como surgiu a ideia de transformar os textos do blog em livro?
Quando comecei a escrever no blog dois anos e meio atrás, já existia uma sensação de que um dia isso poderia virar livro. Digo que essa sensação existia porque dava pra ver o tamanho do alvoroço que cada post causava. Quando a página ainda não havia sido excluída no Facebook por motivos de linguagem indecente, dava pra ter uma noção mais precisa desse alvoroço: cada post com média de 3 mil visualizações, 70% do público acompanhando a página era de mulheres (o que me agradava, pois odiaria estar escrevendo sobre prostituição para homens, pra conseguir clientes), mas apenas 5 ou 6 curtidas, pouquíssimos comentários. Ninguém queria se envolver, assumir que leu, curtiu, mas todo mundo acompanhava avidamente as postagens. Recebi muitas mensagens à época dizendo coisas como "eu adoro o que você escreve, mas não posso curtir nem compartilhar porque tenho família no meu perfil". Esse assunto era novo e poder acompanhar o dia-a-dia de uma profissional do sexo, ainda mais através de uma narrativa que mexia com os sentimentos de quem lê, chamando a pessoa pra se colocar no meu lugar, era algo muito inesperado pra aquele círculo crescente de leitores.
Você diz, a determinada altura do livro, que é péssima com imaginação e que seu “negócio é a memória”. Que sabe escrever, de mil maneiras, as formas como os lixos (clientes que te veem como objeto) te tratam. Isso lembra Carolina Maria de Jesus, de quem os vizinhos mantinham distância por medo de entrarem em suas histórias como retaliação por aborrecimentos. Qual o grau de ficcionalidade dos textos?
O trabalho ficcional é grande, mas sempre atravessado pelas minhas vivências. A ênfase que dou a determinada ação transforma totalmente o relato, tanto que cliente algum ia se sentir à vontade com o que escrevi sobre ele. Os pontos que escolhi retratar são os mais desfavoráveis, os que me machucaram mais, e homens, tão pouco habituados a fazer autocrítica, não gostam de se ver retratados justo por esses pontos. Memória pode atrapalhar um pouco a precisão dos fatos, a sequência exata em que tudo se deu, especialmente quando demoro pra registrá-los no papel, e prova disso é eu, um ano depois, me lembrar só vagamente de várias passagens, quando fui reescrever tudo pra publicação em livro, transformando aqueles relatos feitos no calor do momento (os do blog) em relatos feitos com o ponto de vista atual, eu já muito mais consciente da importância de se repensar os termos pra não reproduzir violência por meio deles.
Chama a atenção, no seu livro, o uso de neologismos – que lembram bastante os de Joyce. E, no último capítulo da sua obra, você afirma que o bem mais valioso que os clientes lhe proporcionam não é o dinheiro, mas as histórias. Que, durante os encontros, já imagina as palavras, o recorte, o foco que vai usar para contar as histórias. E, em entrevistas, você disse que a linguagem da obra se quer “poética, melódica”. Gostaria que falasse sobre seus processos de composição dos textos.
João Cabral de Melo Neto usa a imagem da pedra que às vezes a gente encontra no feijão como metáfora pro verso que traz um elemento estranho, esquisito que "obstrui a leitura fluviante, fluvial, / açula a atenção, isca-a como o risco". Esse é o ideal de poesia dele e mexe bastante comigo essa imagem, mas não posso negar o quanto eu gosto de pensar frases cadenciadas, melódicas que vão embalando o leitor, desarmando-o, levando-o onde ele nem imagina. É minha maneira de brincar de sereia, a forma que encontrei de fazer com que as pessoas parassem pra ouvir sobre as vidas trans, tentanssem se sentir no nosso lugar. Eu escrevo lendo cada frase em voz alta, pensando maneira de as palavras causarem uma impressão mais forte, mais impactante, quase um laboratório da linguagem ou, então, uma complexa equação que vou ajustando até que salte aos olhos a revelação que a justifique.
Sente que seus relatos têm chegado a mais gente graças ao livro? O blog me parece uma mídia mais acessível, ainda que não te dê a visibilidade advinda de lançar um livro.
O blog é onde mantenho os originais, registro de um percurso intelectual e profissional. Ali estão os textos que escrevi no calor do momento e tem coisas que hoje me apavoram, mas que preferi manter para que fosse possível acompanhar de forma bem concreta esse percurso. São propostas distintas o livro e o blog, aquele invadindo livrarias e bibliotecas (já constando, inclusive, como bibliografia básica em disciplinas de várias universidades), esse querendo se aproveitar do potencial das redes pra atingir cada vez mais pessoas, ambos desafiando as a forma redutora e excludente com que a sociedade entende prostitutas e travestis. Pretendo voltar a publicar logo, coisa que só ainda não fiz por conta do turbilhão que minha vida virou nesse 2016 e por conta também de estar nos últimos momentos do meu doutorado.
Podes falar sobre o que estuda no doutorado?
Trabalho com a obra de James Joyce, focando sobretudo algumas zonas privilegiadas de indeterminação de sentido no Ulysses, um dos romances mais desafiadores da história da literatura ocidental. As pessoas me perguntam porque eu quis me prostituir, mas às vezes me parece mais absurdo eu ter escolhido esse autor pra fazer doutorado.
Você sempre foi leitora ávida desde criança, como já deixou claro em entrevistas. Seu rol de leituras é extenso e abrange interesses diversos. Mas quais livros (e não apenas os autores) te influenciaram de forma capital?
O Ulysses, de Joyce, me ensinou muitíssimas coisas, mas vou pontuar as talvez duas mais importantes: a primeira é que a minha própria vida pode ser matéria-prima inesgotável pra criação (o que me ajudou a lidar com as angústias de ser pessoa tão desprovida de imaginação), a outra é que poesia e prosa podem caminhar juntíssimas a cada frase. Nenhum livro me impactou tanto, nenhum livro eu precisei reler tantas vezes. Mas há outros muitos que precisaram ser lidos para que esse um dia fosse possível, livros que marcaram a minha trajetória: O Caderno Rosa de Lóri Lamby (Hilda Hilst), Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade), Laços de Família (Clarice Lispector), Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa), Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis), Manual de Boas Maneiras para Meninas (Pierre Louÿs) e A Filosofia na Alcova (Marquês de Sade).
Como foi a experiência de se candidatar a vereadora de Campinas?
Quase ninguém já passou pela experiência de ser parado na rua por uma travesti pra conversar de política, pra pensar os rumos da cidade. Era maravilhoso ver os olhinhos brilhando enquanto eu propunha ações que poderiam transformar Campinas e, em especial, aproximar a população desses espaços políticos institucionais. Comecei a campanha em dúvida se ela fazia sentido, mas ao final dela eu já sabia que era preciso disputar esse espaço, se a gente quiser mesmo alguma mudança. Mil e vinte votos de saldo, terceira candidata mais votada do PSOL na cidade, campanha a custo quase zero, fora os 300 reais de panfleto que o próprio partido produziu, muita mobilização nas redes sociais... acho que esses números são convite para que eu pense com carinho a ideia de me candidatar outras vezes.
Em se tratando de literatura de autoria travesti ou transexual, o que você recomendaria para leitura do público?
Um livro fundamental é o Viagem Solitária, de João W. Nery. Livro pioneiro, cuja primeira edição data ainda dos anos 80, ele narra em detalhe os obstáculos pelos quais teve que passar o autor, o primeiro homem trans operado no Brasil. Outro livro importantíssimo é o Princesa, de Fernanda Farias de Albuquerque, transexual brasileira que escreveu sua poderosa autobiografia nos anos em que esteve presa na Itália. Outro importantíssimo é o Olhares de Claudia Wonder, onde a autora transexual escreve crônicas e histórias variadíssimas, engraçadérrimas, sobre questões que interessam de perto à comunidade trans. Recomendo também O Evangelho de Jesus, Rainha do Céu, texto da dramaturga transexual escocesa Jo Clifford recentemente levado aos palcos no Brasil, onde Jesus é uma poderosa travesti.