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Davi Kopenawa, xamã e co-autor de A queda do céu

 

 

A produção literária indígena é periférica em um nível complexo: além de estar, quase sempre, fora dos centros urbanos, ela existe e persiste destacadamente na tradição oral, “dentro” de uma sociedade que existe e se perpetua pela escrita. “Dentro”, entre aspas, porque eles são aviltados física e simbolicamente há mais de 500 anos– o que permite questionar se houve, em algum momento da História, uma preocupação do Estado em valorizar essas populações.

Viralizou nos últimos dias o sucesso da disciplina de Literatura Indígena na Universidade de Brasília (UnB), ofertada pelo professor Pedro Mandagará. As vagas foram rapidamente preenchidas - talvez por solidariedade à causa indígena e interesse em conhecer melhor a produção artística desses povos. O programa de ensino é baseado na própria produção indígena (a exemplo de autores como Davi Kopenawa ou Daniel Munduruku) e em autores como Mário de Andrade, Claude Levi-Strauss, além dos trabalhos de Claudia Andujar.

Não é a primeira vez que uma disciplina oferta esse conteúdo aos alunos, mas aproveitamos a oportunidade para conversar com Pedro Mandagará sobre a importância dessa arte, nuances da produção oral, a necessidade em discutir o assunto nas universidades e temas afins.

 

 

A busca pela disciplina foi alta e a turma encheu rapidamente. A quê o senhor credita essa procura?

Bem, há alguns fatores institucionais, como a pequena oferta de disciplinas eletivas para o período noturno (a disciplina ocorre no horário das 19h). Fora essa parte, acredito que os alunos têm curiosidade a respeito de outras culturas e boa parte se sente solidário à causa indígena.

 

O senhor se baseou em alguma disciplina de literatura indígena dada em outras universidades para construir o seu programa? Em caso positivo, o senhor tem conhecimento de quais universidades que trabalham a literatura indígena no Brasil?

Na verdade, eu construí do zero. Há, sim, outras universidades que trabalham literatura indígena, como a UFMG e algumas universidades da região Norte, mas não peguei nenhum modelo. Construí minha disciplina como tentativa de explorar a literatura ligada a dois povos específicos, os guarani e os ianomâmi. Parte do que quis enfatizar foi que “indígena” é um termo muito geral e que é necessário, dentro do possível, especificar o tratamento da literatura e das questões culturais de cada povo. Na parte reservada aos guarani, leio algumas obras de escritores desse povo, como Kaká Werá Jecupé e Olívio Jekupé. Na parte ianomâmi a oralidade registrada no escrito comparece mais, com a leitura de mitos. Esta parte culmina com a leitura, capítulo a capítulo, da grande obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2015).

 

A disciplina não deve ser a primeira do tema no Brasil, mas qual a importância em tê-la numa universidade tão conhecida como a UNB?

Não fiz uma pesquisa sobre disciplina anteriores. Com certeza houve outras. Na UnB, que eu saiba, é a primeira a tratar do tema do ponto de vista da literatura. É importante notar, no entanto, que a UnB é um dos grandes polos da pesquisa com povos indígenas, com um dos melhores programas de Antropologia do país e uma tradição sólida de pesquisa sobre línguas indígenas dentro do Instituto de Letras.

 

O senhor trabalha com textos de autoria indígena, mas também de autores mais conhecidos – Mário de Andrade, Levi-Strauss e outros. Além disso, usa fotos de Claudia Andujar nas aulas. Como concilia essas abordagens?

Cada um tem um propósito específico. No caso de Mário de Andrade, parte de um módulo introdutório do programa, o que importa é a comparação com alguns mitos do volume 2 de Von Roraima zum Orinoko (1916), de Theodor Koch Grünberg, que serviu de base paródica para várias situações e personagens do Macunaíma (incluindo o nome do protagonista). Trata-se, da leitura dos mitos pemon registrados pelo autor alemão, de explorar as mudanças de registros e textualidades entre um conjunto heterogêneo de mitos orais e seu aproveitamento dentro da rapsódia de Andrade. Embora, do meu ponto de vista, ambos sejam literatura, há muitas diferenças a serem exploradas. No caso de Claude Lévi-Strauss, o ponto é teórico (discutir o conceito de mito). Sobre Claudia Andujar, sua obra fotográfica caminhou ao lado dos ianomâmi por décadas.

 

Como abordar, em sala de aula, a literatura oral produzida pelos povos indígenas?

Para começar, é preciso defender (e acreditar) que é literatura. Ainda há muita resistência à categorização de produções orais como literatura, como pôde ser visto nas reações negativas ao recente prêmio Nobel concedido a Bob Dylan. Para mim, a literatura é um conceito aberto e que muda historicamente. Embora não seja um conceito que faça parte de muitas culturas indígenas, acredito que, do ponto de vista da universidade, pode haver o esforço de ler literariamente as produções orais, poéticas e narrativas, desses povos. No entanto, é também necessário ter sempre em mente que este é um processo de permanente tradução, um processo instável de deslocamento – não se pode nunca esquecer que estes textos são, ou foram, proferidos em circunstâncias específicas, com propósitos e em culturas específicas, e que, antes da ação de registro alfabético, eram textos mutáveis que eram reatualizados e modificados a cada vez que eram proferidos. Cada vez que lemos um mito em alguma coleção, é apenas um recorte ou snapshot de uma tradição móvel.

 

O conteúdo que o senhor vai ministrar é de literatura indígena, mas ofertado dentro de uma disciplina chamada “Tópicos especiais de literatura”. Na sua opinião, é possível vislumbrar um futuro em que esses escritos deixam de ser encarados como tópicos especiais para passarem a constituir uma disciplina independente e, quem sabe, obrigatória?

Não sei se esse é o melhor futuro, na verdade. Eu gostaria que mais professores incluíssem alguma produção indígena nos seus programas, mas tenho a impressão que a obrigação mais afasta do que ajuda. Não gosto muito do atual modelo brasileiro de universidade, cheio de disciplinas obrigatórias e regras, francamente, inúteis. Creio que nós, da universidade, tutelamos em excesso os alunos. Prefereria que (quase) nada fosse obrigatório e que os alunos trilhassem seus próprios caminhos, com a responsabilidade que isso implica.

 

 

Daniel Munduruku

O escritor Daniel Munduruku

 

 

Vemos que minorias sociais, como pessoas negras ou transexuais, conseguem, a muito custo, espaço no mercado editorial para publicar suas obras. Posso estar enganado, mas me parece que a literatura de autoria indígena é ainda mais invisibilizada que a dessas minorias. Digo isso não só pela ausência desses textos e suas autoras e autores da mídia, mas também por não encontrar essas obras com tanta frequência em livrarias, venda online e espaços afins. Caso concorde, a quê o senhor credita isso?

Concordo com a afirmativa, mas também percebo um cenário de mudança. A literatura indígena já tem algum espaço dentro da produção infanto-juvenil, em parte por incentivos de programas governamentais de compra de livros (particularmente no governo Lula). Houve coleções nesse viés em editoras com uma circulação razoável, como a Cosac e a Paulinas. Na literatura que podemos chamar “adulta”, alguns autores, como Daniel Munduruku, conseguiram espaço. Desde 2015, ao menos, vejo um cenário mais favorável, com a publicação, pela Cia das Letras, de A queda do céu, de Kopenawa e Albert. A coleção Mundo Indígena, em sete volumes bilíngues pela Hedra em 2016 é outro exemplo, assim como a coleção Tembetá pela Azougue Editorial, doze volumes por assinatura que devem sair a partir de maio. Os livros citados, e muitos outros, podem ser encontrados em sites de grandes livrarias, como a Cultura e a Amazon.

Claro que isso ainda é pouco. Esses autores e autoras têm que lidar com o racismo e sexismo estruturais do cenário literário brasileiro, amplamente demonstrado pelas pesquisas empíricas conduzidas por Regina Dalcastagnè, e com a concentração do meio literário em torno da cidade de São Paulo nos últimos anos. Além disso, há uma ideologia anti-indígena que tem crescido muito, em parte por influência do poder econômico ligado ao agronegócio, em parte pela virada intelectual representada por uma nova (extrema) direita conservadora que tem conseguido tanto espaço de mídia.

 

A obra dessas autoras e autores oriundos de minorias sociais inserem no espaço literário outras perspectivas acerca das questões que os afligem enquanto coletividade: empoderam humanizam a mulher transexual (Amara Moira), mostram as complexidades da desfavelização (Conceição Evaristo), resgatam o protagonismo da mulher negra na História e mostram como passado e presente estão muito próximos no Brasil (Ana Maria Gonçalves), entre muitos outras/outros. Pode falar sobre as novas perspectivas (para o leitor comum) que os textos de autoria indígena inserem no espaço literário?

A literatura indígena é uma extensão da luta – pelo território, pela cultura, pela vida. Não consigo ver uma literatura indígena que não seja, de alguma forma, engajada em processos políticos. Dentre as muitas temáticas, eu destacaria a ligação com o território como central. Um exemplo é a história de vida de Kaká Werá Jecupé, Todas as vezes que dissemos adeus, que conta sua fuga de um genocídio na região Norte para ser aceito pelos guarani de São Paulo e, agora como guarani, ter sua comunidade expulsa das margens da represa Billings porque alguém apareceu com um título de propriedade do Império. Ao contrário do que diz o atual Ministro da Justiça, representante ideal de um governo atrasado e inimigo dos povos indígenas, terra enche barriga sim (pois estes povos, quando se lhe permite, continuam cultivando) – e mais do que isso, terra determina a cultura e enche o espírito. Recomendo a todos, inclusive ao Ministro, que (re)leiam a “Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil”, de 2012, na qual os indígenas da região, em reação ao constante ataque de pistoleiros e a decisões absurdas do Judiciário local, expressam o desejo de morrerem coletivamente, desde que seja em seu território. 

 

O que o senhor recomenda para leitura de interessados em textos de autoria indígena?

Em primeiro lugar, eu recomendaria A queda do céu, do xamã ianomâmi Davi Kopenawa em parceria com o antropólogo Bruce Albert, que foi editado pela Cia das Letras e é encontrável em qualquer livraria. Sua descrição da cosmologia ianomâmi e sua narrativa de iniciação xamânica são um desafio à tradição do pensamento (inclusive filosófico) ocidental que levaremos muito tempo para avaliar com toda a justiça necessária. O livro também narra sua luta pela demarcação da Terra Indígena Ianomâmi e contra as ameaças ao território, como a abertura da estrada Perimetral Norte nos anos 1970 e as invasões de garimpeiros nos anos 80-90, incentivadas por figuras com considerável poder político no Estado de Roraima. Dói muito ler o livro quando se vê que muitas dessas histórias se repetem, como nos absurdos projetos de novas barragens e represas na região Norte, ou na continuada invasão de garimpeiros a áreas ianomâmi, que pode ser vista de perto por qualquer pessoa que circule por Boa Vista (pois todo mundo lá sabe quem são os garimpeiros, quem os financia, quem é receptador do ouro roubado pelo envenenamento dos rios da região).

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