Movimentos estudantis, embates entre esquerda e direita, protestos políticos, autoritarismo a impregnar o ar e dúvidas sobre o futuro do país. Com todos esses elementos, o novo romance de Luciana Hidalgo se situa, na verdade, na Paris de 1968. Coincidência?
Maria e Arthur, protagonistas de Rio-Paris-Rio (Rocco), são uma estudante de filosofia, neta de general envolvido no golpe militar brasileiro, e um poeta filho de comunista. São estrangeiros na capital francesa, sonhadores obrigados a se posicionar frente a realidade, um casal tão apaixonado entre si quanto sufocado pela ditadura no Brasil. “É pela ficção que o distanciamento do ‘real’ se torna possível para mim, e aí, sim, dá para começar a tentar compreendê-lo”, diz Luciana sobre sua investigação.
Assim como o casal (e talvez como a própria autora), seus protagonistas anteriores são flâneurs a questionar a realidade. Em O senhor do labirinto (1996), Luciana biografou Arthur Bispo do Rosário, e nos levou além do hospício em que o artista plástico viveu, graças, talvez, à poética própria que criou para narrá-lo. Com um romance, transformou Lima Barreto em O passeador (2011) do Rio de Janeiro da belle époque e nos aproximou dos delírios e da mente afiada do autor.
Autora premiada com dois Jabuti, depois de uma carreira como jornalista, Luciana Hidalgo fala ao Pernambuco sobre a relação entre personagens e situações reais na sua ficção e sobre a escrita como resistência.
Você publicou uma biografia de Bispo do Rosário que foge do livro-reportagem tradicional, uma ficção protagonizada por personagem real (Lima Barreto) e, agora, um romance que tem como pano de fundo situações históricas (Maio de 1968 e a ditadura militar). O que pode nos contar sobre esse percurso?
Trabalhei alguns anos na grande imprensa como repórter. Jovem, acreditava muito no “real”, numa espécie de realidade absoluta, que eu tentava contar e conter, aprisionando-a em textos “objetivos”. Mas, ao longo das reportagens e dos anos, percebi que o tal do real era bem mais complexo e incluía outras realidades, relativas, paralelas, que se sucediam e interagiam, mesmo quando eu tentava ser objetiva. Escrevia cada vez mais textos que pulavam a cerca do fait divers, flertando descaradamente com a ficção. Pedi então demissão do Jornal do Brasil para escrever a biografia de Arthur Bispo do Rosario, e foi durante a pesquisa para o livro, no hospício onde esse artista genial morou, que fui largando de vez a enganosa noção de “real”. O turning point foi o encontro com um psiquiatra que um dia, ao me ver andando de um lado para outro no manicômio, tão jovem, entrevistando dezenas de pacientes e médicos, preocupada em dar um sentido àquilo tudo, me disse: “não tente achar muito sentido nisso aqui, menina, é apenas um hospício”. A partir daí, fui outra. A “loucura” de Bispo talvez tenha avalizado meu salto do fato à ficção. Mais do que isso, seu desprendimento do real, sua ousadia em criar um mundo à parte me abriu a percepção de outros mundos: ficções. O labirinto de Bispo foi também o meu e, claro, não saí ilesa. Mas, acho, dali saí escritora. Passei a trafegar sem medo entre o real e o ficcional. Não inventei nada sobre Bispo, me ative aos fatos jornalisticamente apurados, mas pude criar a minha própria poética para narrá-lo. O personagem exigia isso. E todo esse processo me levaria decididamente à ficção.
Por que pensar que os efeitos do autoritarismo da política e da História que permeiam Rio-Paris-Rio marcam os personagens, na forma de ficção?
Gosto de pensar ficcionalmente. Parece simples, mas nisso cabe todo um mundo – e os tais mundos à parte que Bispo sinalizou. Talvez devido a um desejo de transcendência, a uma tara pelo sublime, eu tenha hoje uma visão mais ampla do cotidiano. Afinal, a vida é uma inflação de narrativas que se acumulam diariamente. Cada pessoa é um carro-bomba carregado das histórias que ouve. Há um convívio diário com todo tipo de ilusão, enquanto o cotidiano está sempre lá nos puxando para o que a princípio seria “real”, concreto. É isso que adoro na literatura: tudo é ilusão e tudo é verdade. Talvez na vida também, mas na literatura isso fica mais evidente – e permitido. Em Rio-Paris-Rio, o que faço é reforçar esse trânsito livre entre mundos ao máximo, ao colocar personagens ficcionais circulando numa Paris tomada pelo movimento estudantil de 1968. É pela ficção, e somente pela ficção, que o distanciamento do “real” se torna possível para mim, e aí, sim, dá para começar a tentar compreendê-lo.
Desde que começou a escrever Rio-Paris-Rio, há cerca de cinco anos, fatos importantes na política e na sociedade brasileira se seguiram, e se relacionam com elementos do romance. De que maneira eles se colocaram no livro e como dialogaram com a questão estética?
Quando comecei a escrever Rio-Paris-Rio, o Brasil estava no auge: economicamente estável, o Lula era “o cara”, seríamos a sede da Copa e das Olimpíadas, e finalmente um governo brasileiro tirava milhões de cidadãos da miséria. Aí a bolha econômica estourou, deu-se o golpe, a imprensa do mundo todo recriminou esse atentado à democracia, e agora o Brasil desce ladeira abaixo com um governo provisório que tira, dia após dia, direitos básicos da população. Acompanhei tudo isso enquanto escrevia o romance e nunca pensei que veria esse retrocesso em tão pouco tempo. Então, me pergunto: lançar uma ficção que se passa no pós-golpe de 1964, exatamente agora, durante o pós-golpe de 2016, é uma coincidência? Talvez não. Quis falar da ditadura justamente por achar que esse é um assunto ainda é tabu. Basta lembrar um fato macabro que ocorreu em 2014 e me deixou estarrecida: no mês do cinquentenário do golpe, um coronel do Exército chamado Paulo Malhães confessou à Comissão Nacional da Verdade que havia torturado e assassinado militantes de esquerda. Diante da confissão inédita de um militar, pensei que aquilo deflagraria um mea culpa por parte das Forças Armadas. Que nada. Um mês depois, o tal coronel foi assassinado. Fiquei muito chocada, pois tudo apontava para uma queima de arquivo, para o “retorno do recalcado”, aquilo que a psicanálise classifica como a volta de traumas e histórias escabrosas, aquelas que tentamos reprimir, mas que um dia retornam e, às vezes, de forma mais violenta. Escrevi Rio-Paris-Rio para falar exatamente dessa violência nos corpos e afetos dos que viveram naquele regime totalitário.
A sonhadora Maria tinha “um método próprio para ordenar o caos dos anos recentes”. Qual a sua forma de resistência?
Escrever é minha principal forma de resistência. E quando escrevo um romance, faço um esforço para que, de alguma forma, esse voo reflexivo e estético retorne ao real, para então questioná-lo. Tento abordar de forma mais sutil, poética, os fatos brutos da História. Em Rio-Paris-Rio isso fica claro: entre os personagens que se encontram em Paris estão Maria, neta de um general; Arthur, filho de um comunista; Marechal, militante de esquerda; José, um português que foge da ditadura de Salazar; e Pablo, um espanhol que foge da ditadura de Franco. O dia a dia deles em Paris, suas discussões políticas, o mal-estar de cada um no exílio, tudo isso fala muito sobre o contexto histórico e como reagiram individualmente às decisões tomadas pelos governos de seus países. Essa investigação mais microscópica dos dilemas morais, emocionais, diante do coletivo é o que me interessa. Eu mesma, que nasci já com o regime militar instaurado e fui uma criança politicamente alienada, só despertei para o horror do autoritarismo ao ler, já na adolescência, O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira. Bastou esse livro, escrito por um militante torturado pelo regime, para eu entender tudo. Por isso, fiquei muito feliz ao saber, recentemente, que uma jovem que participava de uma ocupação de estudantes numa universidade brasileira estava lendo Rio-Paris-Rio.
O sentimento de ser estrangeiro é muito forte nos protagonistas. Como essa sensação de ser “estranho” se colocou nos seus anos em Paris?
A experiência estrangeira é fundadora, embora pareça movediça, instável, destruidora de raízes, hábitos, certezas. Mas é justamente por isso, por nos afastar do que é familiar, que “ser estrangeiro” nos funda, propiciando uma espécie de tabula rasa, de uma reconstrução da nossa visão de mundo. Veja que o termo étranger, em francês, significa ao mesmo tempo “estrangeiro” e “estranho”. Voltemos ou não ao nosso país de origem, passamos a adotar um “estar-no-mundo-entre-mundos”. E esse lugar, para um escritor, não é nada mau, já que escrever é também, e principalmente, estranhar.
Frase de Lima Barreto pinçada do seu Facebook: “(...) o destino da Literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de poucos a todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina”. Que responsabilidade isso coloca para o escritor? A literatura tem alguma obrigação para com as questões político-sociais do país?
Vou dar um exemplo: Rio-Paris-Rio é um romance que discute política diretamente, ou seja, os personagens são tocados, violados pelo autoritarismo, exilam-se em Paris por causa da ditadura no Brasil, então esse é o tema premente. No entanto, meus livros anteriores, embora não abordassem um período político específico, talvez tenham sido tão políticos como esse: em O senhor do labirinto, denuncio as perversas relações de poder no hospício, os métodos violentos da psiquiatria e o preconceito em relação aos pacientes pobres e negros. Em O passeador, traço o contexto histórico da belle époque no Rio por meio de um personagem que faz críticas contundentes à importação de costumes europeus sem o menor respeito à cultura nacional, à reforma urbana de Pereira Passos que expulsou os pobres para a periferia, e ao racismo. Política é tudo, está em tudo. No meu caso, as histórias vão sendo alinhavadas junto com as reflexões, num compasso estético que faz com que o conteúdo seja tão importante quanto a forma, inseparáveis. Não é algo forçado, sai assim. Não conseguiria escrever uma ficção sem tocar em questões político-sociais. Paralelamente, escrevo muito sobre essas questões também no Facebook, sem a menor preocupação de que esses escritos se tornem literatura. Então, acho que o importante é pensar, escrever, denunciar, cada um encontrando seu gênero, espaço, estilo.